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2.2 LITERATURA DE VIAGEM E VIAJANTES MULHERES 31 

2.2.1 Condições da Viagem 38 

O século XIX apresentou condições melhores e mais seguras para se viajar do que em outros momentos. Ainda assim, os deslocamentos não eram simples e cotidianos. Serrano (2017, p. 50) afirma:

Era um perigo viajar, sim. Enfrentava-se o desconhecido e muitas vezes partia-se com o pressentimento de não mais voltar. 'Fiz meu testamento e tratei de todos os meus assuntos mundanos, de tal forma que no caso de morrer (evento que considero mais provável do que meu regresso em segurança) a minha família encontrará tudo tratado'. Assim escrevia Ida Pfeiffer, em 1842, nas vésperas da sua viagem à Terra Santa, Egito e Itália. Pressentimento gorado, a viajante acabou por dar a volta ao mundo várias vezes.

Grande parte dos perigos e desafios eram, certamente, compartilhados por todos os viajantes. Condições de higiene e alimentação, por exemplo, eram precárias para todos. Mas com frequências mulheres lidavam com condições mais particulares. Por serem menos numerosas nos espaços de viagem, muitas vezes eles não estavam preparados para recebê-las – como locais de hospedagem que não tinham banheiros separados, por exemplo. Além disso, sendo um espaço fortemente masculino, o pudor e a falta de acesso a espaços apropriados podem afetar a maneira com que as mulheres viajavam – tanto que, segundo Serrano (2017) um guia de viagens específico para mulheres foi publicado em 1889. Lillias Campbell Davidson e seu

Dicas para mulheres viajantes faziam várias recomendações, incluindo quais roupas

A incerteza e a falta de segurança dos transportes, do itinerário ou ainda da hospedagem eram compartilhadas por todos os viajantes. Sem um sistema de hotéis formado e com vários imprevistos no caminho, as viagens não tinham datas ou itinerários bem definidos, e muito era arranjado no próprio lugar. Viagens raramente tinham um roteiro pré-definido, sendo muitas vezes repensadas e adaptadas conforme o caminho progredia. Questões linguísticas também podiam ser delicadas e com frequência se fazia uso de guias.

Outra questão delicada era de saúde, afinal, os viajantes se expunham a doenças diferentes às dos seus lugares de origem, para as quais não tinham anticorpos; além do mais, muito do que se sabe sobre contágio e cura ainda não havia sido descoberto e desenvolvido. Mas Serrano (2017) afirma que a questão pode ter sido ainda mais delicada para as mulheres, pois não eram tão numerosas em navios, hotéis e outros ambientes de viagem: "a falta de privacidade nos acampamentos, aliada ao excesso de pudor, impediam um asseio frequente" (p. 60), o que causaria infecções. O mesmo vale para a higiene pessoal: "sei, por exemplo, que Ida Pfeiffer, numa travessia de barco até Alexandria, não se lavou ou mudou de roupa durante dez dias. Entre a higiene, o conforto, a virtude e o recato, percebemos quais eram as principais condicionantes para as mulheres no século XIX" (SERRANO, 2017, p. 61). A segurança era outra questão para todos os viajantes, mas era mais particular para as mulheres que viajavam sozinhas. Além do medo de roubos e acidentes, encaravam o medo de assédio e estupro. Para Serrano, esse medo era grande entre as inglesas vitorianas que, "fruto do rigor de costumes de que eram vítimas em seu país, sofriam especialmente com o medo de perder a virtude" (2017, p. 47). Esse é, segundo a autora, um dos motivos pelos quais era raro que jovens mulheres viajassem, principalmente sozinhas. Mulheres mais velhas, por outro lado, quase perdiam seu estatuto de feminilidade para a sociedade, deixando de ser alvo de "olhares masculinos". Quanto mais ganhavam em rugas, mais ganhavam em liberdade de se locomover pelo mundo.

Há também a questão da vestimenta. Para muitas viajantes, as roupas que lhe eram impostas socialmente (vestidos longos e pesados) não permitiam facilidade de locomoção, além de nem sempre serem apropriadas para o clima do destino da viagem e ainda exigirem grandes e numerosas malas para armazenamento. O problema tinha ao menos duas soluções: procurar roupas locais, mais leves e condizentes com o clima, ou a opção por vestimentas masculinas (tornando-as menos

identificáveis como mulheres nos espaços públicos e, em alguns contextos sociais, lhes proporcionando maior segurança). Mas até isso era visto com maus olhos para as viajantes do XIX e algumas do XX: "o fato de adotarem roupas masculinas representava uma ameaça para a estrutura social, na medida em que as calças eram vistas como símbolo do poder do homem e do domínio do masculino na sociedade" (SERRANO, 2017, p. 67). Pfeiffer também teve de lidar com isso:

Ida Pfeiffer fora aconselhada a se vestir como homem para sua jornada pela Terra Santa, mas tudo o que ela precisava fazer era olhar para si mesma para ver quão ridículo seria o resultado. Ela escreveu que ‘minha figura baixa pareceria pertencer a um juvem e meu rosto a um homem velho’. Então, ela se vestiu com uma blusa e calça turca e foi tratada com respeito durante toda a viagem, embora as mulheres pensassem que seus cabelos, que ela cortou por conveniência, eram estranhos.27 (HODGSON, 2002, p. 120)

A saída encontrada por Pfeiffer foi agregar peças e tecidos encontrados nos países que visitava, buscando roupas mais adequadas aos climas e flexível. Ainda assim, costumava cobrir-se quase por completo e voltava para suas vestimentas conservadoras e europeias usuais tão logo retornava para casa. Segundo Habinger (2006), as roupas da autora pareciam ser de grande interesse público, e uma litografia publicada na revista Die Wiener Elegante [O Vienese Elegante] a mostrava em suas roupas de viagem.

Por fim, uma questão importante para a compreensão das viajantes mulheres é a questão financeira. Dois dos autores mencionados neste capítulo – Humboldt e Darwin – eram de famílias ricas e tinham meios próprios para financiar as viagens. E não só: depois da morte dos pais, podiam inclusive administrar o dinheiro da forma que lhes aprouvesse. Essa era raramente a situação das viajantes que, mesmo quando eram de famílias abastadas, raramente tinham acesso às decisões financeiras, diminuindo consideravelmente sua independência. Diversas viajantes acompanharam pais e maridos e, embora tenham deixado uma obra relevante, não tiveram espaço para opinar quanto à natureza da viagem (em muitos casos, nem quanto à existência da própria viagem). E uma saída para tantas outras, inclusive para

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27 “Ida Pfeiffer had been advised to dress as a man for her journey through the Holy Land, but all she had to do was look at herself to see how ridiculous the result would be. She wrote that 'my short, spare figure would have seemed to belong to a youth, and my face to an old man'. So she outfitted herself in a blouse and Turkish trousers, and was treated with respect throughout her voyage, though women thought her hair, which she cut short for convenience' sake, odd”.

Pfeiffer, foi buscar maneiras de lucrar com as próprias viagens: "É verdade que o dinheiro era um problema, como é agora, mas muitas mulheres tinham renda, e às vezes de heranças, mas frequentemente proveniente do trabalho, incluindo a escrita de relatos de viagem"28 (HODGSON, 2002, p. 2). A venda dos relatos de viagens ou de itens coletados em lugares exóticos eram com frequência a maneira que encontravam para continuarem viajando.

Desde Egéria, autora do primeiro relato de viagem conhecido escrito por uma mulher, várias escritoras se aventuraram pelo mundo: em peregrinações, acompanhando maridos, em missões de colonização, para pesquisar, pelo simples prazer de viajar. A seguir, encontraremos aquelas que, em algum momento de sua vida, resolveram se aventurar pelas terras que hoje são território brasileiro.