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2.1 UM BREVE HISTÓRICO DA LITERATURA DE VIAGEM 13 

2.1.3 Relação da Literatura de Viagem com o Brasil 26 

O Novo Mundo – ou os territórios já ocupados por povos nativos encontrados e colonizados pelos europeus – só se tornou acessível para a maioria dos europeus por meio de relatos de viagem, já que eram poucos os que de fato viajavam até os novos territórios. Essa produção escrita é, portanto, responsável pela criação da imagem desses locais para os europeus. Nesse contexto, o Brasil se mostra como um caso muito particular. Depois do descobrimento, permanece por muitos anos longe das penas dos escritores, principalmente na época da União Ibérica, durante a qual questões de política colonial proibiram a vinda de viajantes e pesquisadores para as colônias espanholas e portuguesas na América do Sul. Com isso, o continente era pouco conhecido pela maioria dos europeus. Essa seção do trabalho busca, portanto, fazer um breve histórico da relação entre literatura de viagem com o Brasil por meio de uma revisão bibliográfica sobre o assunto. Uma das principais fontes para isso é a obra A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII:

Antologia de textos (1591–1808), na qual o historiador Jean Marcel Carvalho França

(2007) apresenta o resultado de seu levantamento de 100 relatos de viagem escritos e publicados no período proposto sobre o Brasil, apresentando também pontos de convergência e divergência entre os diferentes textos.

Mas começo um pouco antes, com o que hoje entende-se como o primeiro relato escrito sobre o país: A Carta de Pero Vaz de Caminha15.

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15 Trabalhos históricos recentes apresentam importantes revisões sobre o descobrimento do Brasil. Manuel da Silva Rosa, em seu livro Portugal e o segredo de Colombo (2019), propõe que a América já tinha sido encontrada muito antes do que o anunciado – e defende ainda que Portugal era muito discreta em relação às suas descobertas. Com isso em vista, é muito provável que a Carta de Pero Vaz de Caminha não tenha sido o primeiro documento sobre o Brasil. Ainda assim, apresento a carta neste momento por ela ainda ser considerada enquanto tal pela maior parte da historiografia literária brasileira.

Alfredo Bosi (2015), por exemplo, define a carta como "uma autêntica certidão de nascimento" do país (p. 14), e a insere dentro do gênero de literatura de viagem: "Espírito observador, ingenuidade (num sentido de realismo sem pregas) e uma transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval" (p. 14) seriam as características principais do documento histórico.

Já Sílvio Castro (2007) afirma:

A Carta se inscreve na particular expressão cultural portuguesa que se afirmou entre o fim do século XIV e o começo do XVI com as viagens e as descobertas marítimas. Um sentido universalista do comportamento, uma atitude realista diante dos fatos, uma aguda atenção para os menores detalhes, a abertura intelectual em relação ao diverso, a participação racional com os limitados confins do próprio universo conhecido e a correspondente ambição de conquista dos espaços materiais desconhecidos mas desejados, a capacidade de unir o sacro e o profano, o real e o abstrato, são algumas das características da nova cultura portuguesa. Nova em relação àquela típica, mais integrada nas tradições ibéricas, todavia confinada dentro dos limites de um isolamento sofrido por demasiado tempo. (p. 29).

Essas duas descrições, porém, não levam em conta uma informação crucial: embora tenha sido escrita em 1500, o documento permaneceu até 1773 guardado em arquivos reais e teve sua primeira publicação apenas em 1817, quando a família real portuguesa já estava no Brasil. Assim, apesar do peso do texto na história do país hoje – presente na definição de Bosi (2015) –, a carta teve uma relevância consideravelmente menor até o século XIX, pois ficou guardada por mais de 300 anos e, portanto, distante do amplo público leitor16. Assim, apesar de ser o primeiro relato de viagem sobre o Brasil conhecido e ter um impacto grande na historiografia sobre o Brasil depois da vinda da família real para o país, a Carta não tem um impacto grande na produção de relatos de viagem no período colonial.

Ainda antes do fechamento dos portos, os escritos do português Pero de Magalhães Gândavo também chamam a atenção. Segundo França:

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16 Em termos de um efeito comparativo, as cartas de Américo Vespúcio, ainda que tenham autoria e veracidade questionáveis, tiveram uma circulação muito mais ampla. "As cartas de Vespúcio se multiplicaram feito um folhetim de sucesso. Não se têm, hoje, muitas notícias sobre as edições de então das cartas de Sevilha e de Lisboa. Mas, quando a "Mundus Novus", entre 1503, ano em que já se podia encontrar nos livreiros de Paris numa versão em latim, e o seguinte, treze edições foram tiradas nessa língua. Entre 1505 e 1506, fizeram-se dez edições no alemão. Em 1508, já tinham sido feitas várias edições no holandês" (MARTINS, 1984, p. 19, in: VESPÚCIO, 1984).

(...) No Prólogo ao leitor de Histórias da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, publicado em 1576, lamentava o pouco-caso com que seus conterrâneos vinham tratando a província de Santa Cruz e observava, não sem preocupação, que os estrangeiros tinham a terra "noutra estima" e sabiam suas "particularidades melhor e mais de raiz" que os próprios lusitanos. (FRANÇA, 2007, p. 91)

Apesar dessas duas menções, poucos escritos sobre o país foram produzidos em Portugal. Os próprios escritos de Gândavo não tiveram uma circulação ampla. Segundo França (2007), a obra parece ter enfrentado "problemas com a censura e foi retirada de circulação, daí – cogita-se – ela nunca ter sido reeditada e ter se mantido desconhecida do público europeu até o século XIX" (p. 96). Com isso, os relatos portugueses sobre sua própria colônia são escassos e de pouca relevância fora do país:

Os lusitanos, em tão extenso período, não publicaram uma única narrativa sobre o país que tenha ultrapassado os limites do pequeno reino e conquistado o público europeu – público, como vimos, ávido por escritos do gênero. Das grandes coleções de viagem, nenhuma saiu pelas prensas portuguesas ou ganhou uma tradução na língua de Camões. Nem mesmo a vasta correspondência jesuíta produzida nos trópicos conheceu edições em língua portuguesa (...). (FRANÇA, 2007, p. 96)

Exceções neste contexto são, segundo França (2007), os escritos na França Antártica (1555–1570), uma tentativa de invasão francesa no Rio de Janeiro, que foram mais disseminados pela Europa, ou ainda o relato de Hans Staden, alemão que veio ao Brasil duas vezes entre 1548 e 1549 em busca de riquezas. Seu livro foi publicado em 1557 e narra suas experiências no país, incluindo descrições de hábitos e costumes indígenas.

Com o fechamento dos portos em 1605, medida que buscava a preservação das riquezas da colônia para o Império Ibérico, a vinda de estrangeiros é limitada, fazendo com que as narrativas sobre o Brasil ficaram ainda mais restritas. As invasões estrangeiras no país são brechas do fechamento: a França Equinocial (1612–1615) e na Nova Holanda (1630–1654). Essas foram tentativas de outros reinos de estabelecerem colônias no território atualmente brasileiro que deixaram escritos (entre relatos de viagem e bélicos).

Durante o período em que os portos permaneceram fechados (até 1808), alguns poucos relatos sobre o país se popularizaram na Europa e criaram a imagem do Brasil e de seu povo para os europeus. Em seu estudo sobre os relatos de viagem

publicados durante o período colonial brasileiro, França (2007) identifica os seguintes padrões

Durante esse longo período, quase dois séculos e meio, as menções ao país em relatos de viagem serão breves, geralmente descreverão uma, duas, no máximo três cidades brasileiras, incidirão majoritariamente sobre regiões do litoral da colônia, farão diminutas referências e serão pouco simpáticas aos índios, trarão muitas informações marítimas e militares sobre os portos portugueses, concederão um enorme espaço às riquezas que eram ou que poderiam ser extraídas do país e, sobretudo, dedicarão especial atenção ao mundo, físico e moral, que os colonos lusitanos estavam edificando no novo mundo. (FRANÇA, 2007, p. 112)

Além desse padrão reconhecível entre as obras levantadas por França (2007), o autor menciona também o pequeno número de publicações e participações em coletâneas de viagem etc. Com isso, a criação de uma imagem de Brasil seria dada com base em alguns poucos relatos, com "descrições [que] primam pela mesmice, primam pela repetição dos mesmos temas, dos mesmos objetos e das mesmas abordagens" (p. 191). A única mudança diacrônica entre estes textos seria uma alteração de foco: se no começo a natureza e os índios estavam em primeiro plano, eles começam aos poucos a dar espaço para a sociedade construída pelos colonos em regiões mais próximas à costa.

Ainda segundo o historiador, as narrativas analisadas por ele mostram um país de extremos: de um lado uma natureza deslumbrante e abundante, por outro o grande problema da sociedade brasileira, simbolizado principalmente pelo colono. "O raciocínio é simples: a terra, em se plantando, tudo dá, no entanto, a qualidade do colono é tal que ela não rende nem a pálida sombra do que renderia – e progrediria – se estivesse nas mãos de um povo ordeiro e trabalhador" (FRANÇA, 2007, p. 283). Outra crítica frequente feita nesses relatos era a presença dos africanos escravizados e "incivilizados", que andavam pelas ruas e traziam um ar de "barbárie" para o país (FRANÇA, 2007).

Com essa descrição feita por França (2007), é possível ver a imagem do Brasil criada por esses relatos – um país de natureza incrível, mas socialmente desestruturado. Considerando o impacto dos relatos de viagem na produção intelectual do período, essa é uma imagem replicada constantemente por obras artísticas, filosóficas etc.

As narrativas de viagem – escritas por homens de países e grupos sociais variados, em estilo pouco cuidadoso e, na sua maioria, produzidas a partir de observações apressadas – criaram, praticamente sem qualquer concorrência, um vocabulário sobre o Brasil para os homens do Velho Mundo, um vocabulário que apresentou poucas variações ao longo dos três séculos que se seguiram à viagem cabralina e que se nutriu, em larga medida, de repetições, de dar a conhecer o conhecido, de reiterar, com pequenas variações, os mesmos temas e os mesmos personagens. Não obstante esse gosto pelas repetições – a "pouca originalidade", diríamos hoje –, tratou-se de um discurso com larga aceitação entre o público culto e que desfrutava, entre esse mesmo público, do estatuto de um discurso verdadeiro, ainda que passível de dúvidas, críticas e contestações. (FRANÇA, 2007, p. 284–285).

Vale ainda mencionar sobre o estudo de França (2007) que apenas 1 dos 100 relatos levantados tem a autoria de uma mulher: Jemima Kindersley, cujo livro foi publicado em 1777. Falaremos mais sobre ela adiante.

Os relatos de viagem começam a surgir com mais frequência quando a política isolacionista começa a se flexibilizar – a corte espanhola, por exemplo, permite a vinda de Alexander von Humboldt para a realização de suas pesquisas na América Latina. Mas a grande mudança aconteceria somente em 1808, quando a família real portuguesa se muda para o Brasil, tornando-o sede do Império ao fugir das Guerras Napoleônicas. Os portos são reabertos e mais estrangeiros têm permissão para entrar no país, fazendo com que as narrativas sobre o país também aumentem.

Existem pelo menos dois exemplos de expedições conhecidas que passaram pelo Brasil já citadas nesse trabalho: La Condamine e o Beagle. Mas mais do que somente listar esses acontecimentos, é importante também pensar como esses relatos escritos por diversos autores estrangeiros tiveram alguma influência no país. Mary Louise Pratt (2003), por exemplo, explora a maneira com que os escritos de Humboldt melhoraram a imagem que vários sul-americanos tinham de seus territórios e criou uma base argumentativa para movimentos de independência. Mas e quanto ao Brasil?

Um dos marcos dessa reabertura foi a Expedição Austríaca no Brasil, que ocorreu entre 1817 e 1835. O então imperador austríaco, Francisco I, era um grande entusiasta das descobertas naturais. "O casamento de sua filha Leopoldina com o sucessor do trono de Portugal D. Pedro I foi uma oportunidade excelente para enriquecer as coleções de História Natural e Etnográficas do Real Gabinete [Austríaco] e enviar uma grande expedição científica para o Brasil", relata Claudia Augustat (2016, p. 83). A equipe envolvia especialistas de diversas áreas, como minerologia ou zoologia. "Além de 9 répteis, 436 insetos, 200 conchas, 1.758 plantas,

110 diferentes sementes, 338 minerais e diversos peixes, a coleção continha também, segundo o inventário do museu, 112 objetos etnográficos" (AUGUSTAT, 2016, p. 84). E esta é a soma dos objetos recolhidos somente num primeiro momento da viagem – conforme avançavam, mais queriam avançar, e a soma final foi muito maior, podendo chegar a mais de dois mil objetos etnográficos.

O noivado da princesa austríaca Leopoldina com D. Pedro I foi um grande motivador da vinda de vários pintores para o país, como Thomas Ender (1793–1875). Além disso, despertou um certo conhecimento e interesse pelo país na Áustria.

Outro marco na expedição de viagem ao Brasil foi a Expedição de G. H. von Langsdorff, realizada de 1822 a 1829. Liderada pelo Barão Langsdorff, um alemão, percorreu 15 mil quilômetros, chegando a pontos recônditos dos atuais Mato Grosso e Amazonas. Com a participação de três pintores distintos, o objetivo era criar um catálogo imagético da natureza do país.

Uma das pesquisas sobre o impacto dessas narrativas na literatura brasileira é o livro O Brasil não é longe daqui, de Flora Süssekind (1990). A pesquisadora defende que as narrativas de viagem, pensando principalmente nos registros dos naturalistas, influenciaram a formação do narrador na prosa ficcional brasileira:

É, em especial, com dois gêneros diversos e às vezes associados, a literatura não-ficcional de viagens – sobretudo a que se refere ao Brasil – e o paisagismo – sobretudo o que tematiza vistas e exuberâncias tropicais ou cenas pitorescas do cotidiano ou na 'história' local –, que se constrói essa figuração inicial do narrador de ficção na produção literária da primeira metade do século XIX. (SÜSSEKIND, 1990, p. 20)

Um dos motivos para isso seria a imagem de superioridade intelectual dada aos naturalistas no meio brasileiro, que apenas começava a andar em termos de letramento e academicismo. Com isso, muitas das narrativas conhecidas e consumidas sobre o Brasil fossem produzidas por um olhar estrangeiro em vez de um olhar local.