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4.2 CARACTERÍSTICAS DA OBRA DE IDA PFEIFFER 78 

4.2.6 Imaginário 98 

Outra característica da obra de Pfeiffer que merece destaque é a menção – seja para concordar ou discordar – de um imaginário europeu sobre o Brasil. Muitas vezes essas menções são acompanhadas por comparações, tema que será explorado a seguir. Neste momento, identifico e comento somente trechos em que a narradora nos conta o que imaginava ver no Brasil. Ter acesso a esses conhecimentos prévios é uma maneira de entender melhor o ponto de vista da autora em relação aos países que visita, além de possibilitar uma compreensão de quais informações poderiam ser consideradas pressupostos pelos leitores de sua obra, assim como imagens compartilhadas entre a autora e seu possível público.

Começo citando um trecho que se alinha com a discussão anterior sobre outremização e preconceito. Ao descrever o trabalho realizado por pessoas escravizados, a autora se surpreende com a capacidade de algumas delas trabalharem com a manufatura de diversos objetos:

No Brasil, todos os tipos de trabalhos pesados e sujos, internos ou externos, são realizados pelos negros, que ocupam, na realidade, o espaço das classes mais baixas. Muitos, porém, aprendem alguns ofícios, e com frequência são comparáveis aos mais talentosos europeus. Vi negros trabalhando na maioria das lojas elegantes, produzindo roupas, sapatos, tapetes e artigos em ouro ou prata; e conheci várias negras com roupas finas produzindo os vestidos mais belos, com bordados delicados. Com frequência achei que estava sonhando, quando contemplei essas pobres criaturas, que eu imaginava que estariam em suas florestas nativas, exercendo tais ocupações em lojas e cômodos! (Pfeiffer, 1850, p. 34–35).

No parágrafo, a realidade brasileira não corresponde à expectativa da narradora e, mais, a habilidade dos negros de realizarem trabalhos que ela considerava civilizados ou que exigissem capacidades mais específicas a surpreendia. Revela, assim, um imaginário de que negros seriam selvagens ou até semelhantes a animais. Essa revelação, que aumenta a semelhança entre os negros e ela mesma (eles são capazes de realizar trabalhos que ela admira) pode ser um dos fatores que sustentam seu posicionamento posterior em favor do acesso dos negros a educação.

Um dos imaginários europeus frequentes sobre o Brasil se refere à descrição da natureza e do espaço físico. A imagem de um "paraíso na terra" foi uma constante em escritos sobre o país desde a época colonial e foi estudada por outros

pesquisadores. Em Visões do Paraíso, livro lançado em 1959, Sérgio Buarque de Holanda estuda como os escritos do descobrimento criaram e mantiveram um mito edênico, ou seja, associam o novo continente ao Jardim do Éden. Para o autor, os fatores que justificam essa aproximação são a ausência das enfermidades europeias entre os indígenas que mudou com a colonização), a ausência de um mal explícito, a natureza abundante, a nudez dos habitantes e assim por diante. Essa imagem se mantém na época de Pfeiffer, em grande parte, pela ausência de relatos mais baseados em experiências empíricas por conta do fechamento dos portos – que impedia viajantes de virem ao país. Isso faz com que detalhes sobre a colonização portuguesa sejam desconhecidos para a população europeia e uma ideia de paraíso intocado se perpetue amplamente (HOLANDA, 2000). O espaço vazio era preenchido por narrativas muitas vezes imaginárias e até fantasiosas, que só começam a rarear com o crescimento do Naturalismo, dando espaço a um pensamento mais científico (PRATT, 2003).

Abaixo, um exemplo de descrição de uma floresta feita por Pfeiffer (1850, p. 88):

A uma légua de Canto Gallo chegamos em uma pequena cachoeira e então continuamos pela floresta mais bonita que já vi. Uma pequena subida na orla de um riacho nos levou até ela. Palmeiras com suas copas altas e majestosas se erguiam sobre as árvores floridas, que estavam tão entrelaçadas que formavam uma espécie de telhado; orquídeas se multiplicavam pelos ramos e galhos; plantas trepadeiras e samambaias subiam pelas árvores, se misturando aos galhos e formando grandes muros de flores com as cores mais bonitas e com o mais doce perfume; delicados beija-flores voavam por todos os lados; acima, os tucanos com suas belas cores voavam timidamente; papagaios e periquitos se equilibravam nos galhos; vários outros pássaros de cores maravilhosas, que eu vira somente no museu, também viviam neste bosque encantado. Parecia que eu estava passeando por um parque de fadas, e achei que a qualquer momento veria silfos e ninfas.

A descrição feita por Pfeiffer conta com fatores naturais, como os tipos de plantas e animais, até que apresenta um grupo lexical do campo semântico do fantástico ou mitológico. Ao evocar esse campo semântico, a autora afasta a floresta de um campo do natural ou botânico e lhe confere um status onírico que corresponde a um imaginário do "paraíso na terra".

Porém, essa imagem tão presente no imaginário europeu sobre o Brasil começa a mudar com o período colonial e a sociedade que se forma no país. Esse é

um contraste observado por Flora Süssekind (1990). Em sua pesquisa sobre a origem do narrador na literatura brasileira e a relação que faz entre a produção nacional e a literatura de viagem produzida sobre o país, Süssekind menciona um deslocamento por parte de vários viajantes europeus, que buscam um "Brasil-só-natureza" (SÜSSEKIND, 1990, p. 28) e encontram, na realidade, uma sociedade complexa e cheia de camadas de compreensão. Em outras palavras, o sistema de exploração português e a situação social e econômica que ele acarreta são criticados pelos viajantes, que imputam a eles a corrupção de uma natureza tão exuberante quanto era.

Pfeiffer não tece nenhum comentário mais elaborado sobre o tema – afirma ter conhecido "muito pouco das maneiras e costumes do país para estar na posição de dar algum juízo de valor" (PFEIFFER, 1850, p. 53) – mas dá alguns indícios de seu pensamento. Em determinado momento, afirma que "o aspecto mais marcante no europeu transformado em americano é a busca por riqueza" (idem). A autora também chama atenção para a riqueza da família imperial, principalmente quando assiste às cerimônias de batismo da princesa ou comemoração de dia onomástico do imperador. Ao mesmo tempo, insiste em ressaltar a pobreza em que vivem negros e índios e até de imigrantes de outros países que, não inseridos nos sistemas latifundiários e escravocratas, têm poucas condições de desenvolver seu terreno. Ainda que não dê nome ao fenômeno nem sistematize sua descrição, a desigualdade social fica clara em sua escrita.

Além da imagem de um paraíso na terra e sua corrupção pelos portugueses, outras imagens presentes no imaginário aparecem ao longo da narrativa. Quando o barco atravessa a linha do Equador, Pfeiffer conta dos vários cenários que os passageiros temiam que se concretizassem (como o barco pegar fogo ou as pessoas enlouquecerem). Além disso, várias outras superstições, principalmente dos marinheiros, são registradas. Mais adiante comenta sobre o clima: "Dias claros e sem nuvens foram tão raros entre os dias 16 de setembro e 9 de dezembro que poderia tê-los contado; e não consigo entender como tantos viajantes falam sobre o céu sempre bonito e azul do Brasil. Isso deve ser verdade em alguma parte do ano" (PFEIFFER, 1850, p. 50). Aqui a autora relata explicitamente o que leu em outros relatos (e como isso diverge de sua própria experiência). Essa é uma transformação de sua percepção sobre o Brasil – ao contrastar o que conhecia de outros relatos com sua experiência pessial, ela forma sua posição discursiva – um processo de Bildung.

A menção constante ao imaginário europeu, seja em relação a características essenciais – como o sistema econômico ou a natureza –, seja em relação a detalhes menores, como o clima, mostra que a própria narradora é também receptora de uma imagem já formada sobre o Brasil, como não poderia ser diferente. Ao evocar esses discursos para sua própria obra, explicita como sua experiência corrobora ou diverge dessa imagem anterior. Esse artifício tem um impacto na formação de Pfeiffer como narradora. O primeiro deles é ativar o pré-conhecimento de seu leitor (que pode ter vindo de livros ou outras informações factuais sobre o Brasil mas que também pode ser baseado num conhecimento informal ou fantasioso), criando um diálogo com ele e seu contexto cultural, o que faz com que a narrativa seja acessada com um conhecimento zerado.

Ao mesmo tempo, essa técnica cria empatia do leitor com a narradora, pois compartilham esses conhecimentos prévios. Porém, Pfeiffer nem sempre corrobora com essas imagens apresentadas. Assim, ao contrapor constantemente sua percepção com um imaginário já existente, ela se afirma como um par de olhos mais frescos para seus leitores, já que pode recriar as descrições de uma dada realidade, mudando ou acrescentando informações ao que já era conhecido. Cria então uma oposição capaz de diferenciar e destacar seu trabalho para quem a lê. Mas, ao mesmo tempo, não nega completamente esse imaginário, dialogando constantemente com ele – o que torna seu relato mais verossímil e simpático. Como Flora Süssekind (1990) afirma, o viajante se pretende um narrador confiável – e o estilo de Pfeiffer com frequência converge para isso.