• Nenhum resultado encontrado

4.2 CARACTERÍSTICAS DA OBRA DE IDA PFEIFFER 78 

4.2.5 Construção narrativa do preconceito e o pensamento sobre a escravidão 92 

Entre outras coisas, o próprio processo de outremização é uma espécie de preconceito narrativo – a imagem do outro cria uma distância que implica uma diferença. Uma vez dada a diferença, não cabe ao outro o mesmo que cabe a si mesmo.

É difícil ler a escrita de Ida Pfeiffer hoje sem considerá-la preconceituosa. A autora define negros escravizados como "feios e sujos"68, e acha "os índios ainda mais feios que os pretos" (PFEIFFER, 1850, p. 101). Diante o processo constante de outremização e descrições como essa, não há outro veredito. Gostaria, porém, de contextualizar essa produção e a complexidade da escrita de Pfeiffer, não com o objetivo de justificar, mas de debater e criticar. Além disso, essa é uma imagem que continua sendo disseminada – a obra de Pfeiffer está publicada na Áustria, assim como de outros autores do mesmo período, o que promove um processo de renovação e reforço da imagem caso ela não seja problematizada.

Começo com a impressão de Pfeiffer acerca da escravidão como um todo. Ainda pensando sobre a outremização, mas buscando aproximá-la do contexto brasileiro, Bosi (2014) afirma: "A presença ubíqua dos negros nivelava, sob um certo aspecto, todos os brancos, pois os chamava para um espaço comum, que os opunha, em bloco, à raça subordinada. O trabalho escravo se constituía em condição primeira para a existência social do branco livre e proprietário" (p. 231). Em outras palavras, os brancos colonizadores, exportadores e latifundiários só existiriam com um outro que trabalhasse de maneira muito barata. Todo o sistema colonial dependia dessa oposição.

Pelo seu texto, não fica claro o conhecimento de Pfeiffer sobre as leis escravistas no Brasil. Por exemplo, menciona não ter visto nenhum mercado ou comércio explícito de pessoas – o que provavelmente era verdade, pois esse comércio era repudiado em grande parte do mundo e proibido no Brasil desde 1831 por meio da Lei Feijó. Quando feito, era longe dos olhares da população em geral. A única _______________

68 Um comentário sobre a palavra "hässlich", que optei por traduzir como feios. Leicher, ainda no artigo sobre o humor em Pfeiffer, relaciona essa palavra com uma sensação de estranhamento – que para ela também se relaciona com humor. "Interessant ist auch Pfeiffers Verwendung des Adjektivs „hässlich“, welches sie in unmittelbaren Bezug zum Lächerlichen stellt" (Leicher, 2008, p. 98). Em tradução minha: "Também é interessante o uso de Pfeiffer do adjetivo 'hässlich' [feio], que ela coloca em relação direta com o risível".

menção a isso é feita no último capítulo apresentado nesta tradução, quando Pfeiffer descreve uma conversa com o capitão do navio, que afirma ser provavelmente negreiro o navio sem bandeira próximo a eles.

Pfeiffer não tece em seu texto um pensamento sistemático sobre a escravidão, nem relata ter tomado atitudes contrárias a ela, mas ao longo do texto revela sua opinião sobre a situação brasileira por meio de alguns comentários esporádicos. Em suas descrições iniciais identifica vários negros como livres – são os de uma praça pública, provavelmente moradores de rua, sem acesso à mínima infraestrutura sanitária. Porém, não problematiza a questão: não se questiona como e por que estão ali, ou como se encaixam em um complexo sistema escravocrata que não permitia espaços alternativos para os negros a não ser o espaço da escravidão ou o da marginalidade.

Mais adiante, confessa ter sentido uma surpresa com o tratamento dado aos escravizados:

Apesar de tudo, os escravos estão longe de serem tão maltratados como imaginamos na Europa. No Brasil eles são normalmente bem tratados; não trabalham demais, têm uma alimentação boa e nutritiva e não recebem punições que sejam muito pesadas ou frequentes. [...] Eu realmente duvido que, no todo, a maioria desses escravos sejam pior tratados do que os servos na Rússia, Polônia e Egito, onde não são chamados de escravos (PFEIFFER, 1850, P. 36–37).

Neste parágrafo, a narradora apresenta e reforça uma imagem que seria mais tarde definida por Schwarcz (2018) como "boa escravidão", uma escravidão em que os escravizados eram bem tratados e minimamente felizes. "Como se fosse possível, a qualquer sistema do tipo, não se pautar pela violência" (SCHWARZ, 2018, p. 44). Essa ideia do bom tratamento é retomada por Pfeiffer quando realiza visitas a fazendas no interior do país. Contudo, em que circunstância um fazendeiro teria mostrado para uma dama visitante europeia uma cena de castigo violento? Ou a falta de cuidados com os escravizados? É provável que essa descrição passe pelo filtro do que é mostrado à Pfeiffer, uma mulher viajante.

Em determinado momento da narrativa, a própria Pfeiffer levanta um questionamento sobre a quantidade de negros escravizados, índios e brancos. Inicialmente, em um trecho destinado a estatísticas do Brasil, apresenta as seguintes informações sobre a constituição populacional do país (sem crédito de fonte): "6 milhões de habitantes, entre os quais 900 mil são brancos; o resto é constituído por

negros, mulatos, mestiços, nativos e indígenas. Se contam cerca de três milhões de escravos negros e 500 mil indígenas" (PFEIFFER, 1850, p. 57). Em um momento posterior da narrativa, quando está visitando fazendas distantes entre si, Pfeiffer se questiona sobre a diferença numérica: os escravizados poderiam tomar o controle das fazendas sem muitos problemas, pois eram mais em número do que os fazendeiros.

Em alguns momentos da narrativa a autora afirma ser a favor da abolição. Ao deparar-se com um possível navio negreiro, mostra seu repúdio por este tipo de comércio. "Eu sou certamente uma grande opositora da escravidão, e saudaria sua abolição com grande alegria na alma" (PFEIFFER, 1850, p. 92), afirma em outro momento. Sobre a capacidade intelectual dos negros, relata:

Entre a chamada classe educada local, existem muitos que, apesar das muitas provas de capacidade mecânica e inteligência geral mostradas com frequência pelos negros, insistem em afirmar que eles são inferiores aos brancos em poder mental, tanto que só poderiam ser considerados como uma ligação entre a tribo dos macacos e a raça humana. Eu admito que eles estão um pouco atrás dos brancos em formação; mas acredito que isso não se deva a uma falta de compreensão, mas sim da falta completa de acesso à educação. Nenhuma escola é erguida para eles, eles não assistem nenhuma aula; não se oferece o mínimo para desenvolver suas capacidades. Suas mentes são mantidas aprisionadas, como era o caso em países antigos déspotas, já que o despertar deste povo deve deixar os brancos com medo. Eles são quatro vezes mais numerosos que os últimos e, se se tornarem conscientes desta discrepância, os brancos facilmente ocupariam a posição que os infelizes negros ocuparam até então.

Mas me perco em suposições e ensaios que podem, talvez, pertencer à pena de um homem educado, mas certamente não à minha, já que não tenho formação suficiente para tal; meu objetivo é apenas apresentar o que vi (PFEIFFER, 1850, p. 35-36).

Este trecho é quase como um contra-exemplo da discussão da outremização ou mesmo do preconceito. Neste momento, a autora se opõe ao pensamento corrente da classe alta local, afirmando que os negros teriam a mesma capacidade dos brancos fossem dados as mesmas chances. Em um momento raro de alteridade e empatia, vê-se a semelhança entre a situação dos escravizados e da sua própria que, enquanto mulher, não teve acesso à educação que gostaria. Isso só se confirma quando ela afirma não ter a capacidade de fazer tal crítica – o que, obviamente, é dito ironicamente depois de fazê-la. A aproximação não é explícita, mas é possível. Além disso, é um momento que explicita uma Bildung da autora-narradora: a alteridade faz

com que consiga ver o outro não só como um selvagem, mas como uma vítima de um processo imperialista.

Segundo a pesquisadora Grada Kilomba (2019), em seu livro Memórias da

Plantação: Episódios de racismo cotidiano, o racismo é definido por três

características: 1) construção da diferença: alguém é visto como diferente por conta de sua origem racial e/ou sua pertença religiosa, na qual alguém "só se torna 'diferente' porque se 'difere' de um grupo que tem o poder de se definir como norma – a norma branca" (KILOMBA, 2019, p. 75); 2) As diferenças construídas inseparavelmente de valores hierárquicos, articuladas "através do estigma, da desonra e da inferioridade" (idem); 3) Os dois processos anteriores acompanhados pelo poder "histórico, político, social, econômico [... na] combinação do preconceito e do poder que forma o racismo" (KILOMBA, 2019, p. 76).

Considerando essa definição, podemos dizer que a narrativa que Pfeiffer apresenta é racista: ela cria uma diferença narrativa entre a narradora e os escravizados ou indígenas; a diferença está ligada a um valor hierárquico (mundo civilizado x mundo selvagem); e existe uma diferença de poder histórico e social. O aparato descritivo de Pfeiffer é impregnado pelo pensamento de sua época, ainda assim, a pouca sistematização que a autora elabora ao longo do texto sobre essas questões mostra um pensamento um tanto mais amigável do que se suporia.

Com isso, quero mostrar que o preconceito é uma questão complexa na escrita de Pfeiffer. Ele é presente estruturalmente pela construção narrativa da autora dessas personagens – o vocabulário para descrevê-los é agressivo. Ainda assim, a autora se afirma abolicionista, defende o acesso à educação e não se abstém de viver sua experiência no país (quando viaja pelo interior, por exemplo, conta com a ajuda exclusiva de um guia negro – com o qual viaja sozinha por florestas fechadas por vários dias – mesmo depois de ter sido atacada por outro negro em uma excursão anterior).

Isso fica explícito em sua narrativa sobre os indígenas da tribo puri. Por mais que os descreva como "feios e pobres", Pfeiffer não mede esforços para visitá-los. A viagem é longa, exaustiva e perigosa. Mas, quando chega lá, compartilha com eles o espaço e a refeição. Ressalta de maneira semelhante a pobreza da língua e a maestria com que caçam. E critica abertamente o comportamento de religiosos que batizam indígenas de forma leviana apenas para contar almas para o céu.

A narrativa de Pfeiffer não parece ser coerente nem em seu pensamento preconceituoso, nem em seu pensamento abolicionista. Me parece que ela apresenta um conflito de sua época, uma complexidade destoante, em que existem forças abolicionistas e humanitárias de um lado e forças de uma superioridade cultural europeia de outro. Habinger (2014), em sua biografia sobre Pfeiffer, credita o comportamento da autora a um choque de cultura. Essa talvez seja uma peça do complexo quebra-cabeça, mas acredito que é mais do que isso. Todo o repertório descritivo disponível na época se baseia numa cultura de outremização, de diferença, de superioridade. "O racismo não é biológico, mas discursivo", afima Kilomba (2019, p. 130). E todo o processo de outremização e escolha lexical para descrever aqueles considerados diferentes por Pfeiffer é um exemplo disso. Pfeiffer pode ser considerada por muitos como uma mulher a frente do seu tempo pela sua coragem em viajar, mas é mais: ela é uma mulher com todos os conflitos do seu tempo, e o preconceito é certamente um deles.

Uma maneira mais completa de explorar esse debate seria fazer um estudo comparativo, considerando obras de viajantes, tratados da época e textos de mídias impressas, como jornais (inclusive a produção jornalística em alemão publicada no Brasil) para identificar em vários exemplos sincrônicos qual o vocabulário e estruturas adotados em descrições deste mesmo tema. Dado o escopo desta dissertação, tal aprofundamento se torna uma sugestão para trabalhos futuros. Exploro, a título de exemplo, as comparações possíveis entre a obra de Pfeiffer e o Diário do Beagle, de Charles Darwin.

Em seu diário, Darwin se ocupa muito mais de descrições naturais do que sociais, ainda que essas também tenham um certo espaço. Destaco a descrição de uma refeição realizada em uma fazenda no Brasil, nas redondezas do Rio de Janeiro:

Espera-se que cada pessoa prove de todos os pratos. Tendo um dia calculado direitinho, segundo pensava, de modo a não deixar coisa alguma intocada, para meu total desconsolo, um peru assado e um porco surgem em sua substancial realidade. Durante as refeições, era tarefa de um certo homem expulsar diversos velhos cães e dúzias de crianças negras que entravam juntos a cada oportunidade. Desde que se banisse a ideia de escravidão, havia algo imensamente fascinante neste simples e patriarcal estilo de vida: eram um retiro e uma independência tão perfeitos em relação ao resto do mundo… (DARWIN, 2006, p. 74).

A aproximação entre crianças e cachorros na cena descrita choca. Excetuando um leve comentário sobre a escravidão, Darwin não problematiza nem

questiona a cena que presenciou. Em um momento posterior do texto, depois de explicitar seu repúdio ao modelo de vida dos brasileiros (considerando-se aqui os portugueses e descendentes de portugueses), Darwin comenta:

O estado da imensa população escrava deve interessar a qualquer um que entre nos Brasis. (...) Os escravos têm de se comunicar, entre si, em português e consequentemente não ficam unidos. Não posso deixar de crer que serão eles um dia a dar as cartas. Opino baseado em seu número, em suas belas figuras atléticas (principalmente se comparadas com os brasileiros) que provam estarem eles em um clima favorável, e em ter visto com clareza que seus intelectos têm sido muito subestimados: são trabalhadores eficientes em todos os ofícios necessários. (...) Acredito que os escravos sejam mais felizes do que esperavam ser ou do que as pessoas na Inglaterra pensam que eles sejam. Receio, no entanto, haver muitas terríveis exceções. (...) Espero que chegue o dia em que eles garantam seus próprios direitos e esqueçam-se de vingar o que lhes fez (Darwin, 2006, p. 100-101).

Nesta seleção da opinião de Darwin, sua descrição, bem menos polida do que de Pfeiffer, tende a uma posição semelhante: ao mesmo tempo adota uma linguagem preconceituosa e um ponto de vista superior para descrever a situação e reitera a imagem da boa-escravidão apresentada anteriormente, acreditando que haverá uma mudança social. Mas, ao contrário de Pfeiffer, ele não chega a defender essas mudanças (como ela defende a abolição), apenas afirma que a abolição é provável por um número de fatores identificados.

Para encerrar essa discussão, retomo Pratt (2002). Em Imperial Eyes, quando fala sobre o sistema natural de classificação de Linée, a autora comenta que o projeto adâmico do sueco chegou a propor uma separação para os homens: homo sapiens é uma nomenclatura dele. Mas, além disso, ele criou cinco variedades de homo sapiens: o selvagem, o americano, o europeu, o asiático e o africano. Cada um deles é determinado por questões fisiológicas (como cor de pele), estéticas (os americanos, por exemplo, "se pintam com linhas vermelhas finas" – PRATT, 2002, p. 32) ou ainda sociais (europeus são governados pela lei, enquanto americanos são governados por costumes e asiáticos por opinião). A classificação em si cria uma justificativa científica para ver as pessoas em categorias diferentes, o que mais uma vez permite e aprofunda a outremização. Pratt ressalta que a própria categorização é baseada na comparação (tema que será abordado mais adiante). Classificar e, portanto, nomear, também é uma forma de dominação.