• Nenhum resultado encontrado

4.2 CARACTERÍSTICAS DA OBRA DE IDA PFEIFFER 78 

4.2.2 Gênero literário 82 

Em termos de gênero narrativo, a literatura de viagem é tida como um gênero misto (LUBRICH, 2010), composto de relato pessoal e ficção e no qual o autor é também narrador da própria história. Assim, não existe um formato fixo em que é escrito – Cecília Meireles escreveu relatos de viagem em formato de poemas, Ina von Binzer os escreveu em formato de cartas e assim por diante. Nesse sentido, Pfeiffer traz uma certa alternância entre ao menos três estilos em sua escrita: a) diário; b) descrições temáticas; c) dicas de viagem.

O diário, gênero que atrela acontecimentos a datas específicas usando a cronologia como organização do conteúdo, é usado nos capítulos em que a autora se dedica à descrição das viagens de barco ou pequenas excursões – a marcação da data tem, em parte, a função de marcar a passagem do tempo. Um exemplo é o começo do primeiro capítulo: "No dia 01 de maio de 1846, parti de Viena e fui, com exceção de algumas paradas em Praga, Dresden e Leipzig, direto para Hamburgo, onde embarcaria para o Brasil" (PFEIFFER, 1850, p. 1). Há uma variação grande de

tamanho entre o que é narrado a cada dia (os com mais eventos são mais longos) e, por vezes, há a aglomeração de dias com uma descrição simples. Por mais que essas partes sejam organizadas diariamente, elas são repletas de descrições e dados: Pfeiffer registra a velocidade do barco, o clima, a localização geográfica e as distâncias percorridas, os lugares pelos quais o barco passa e as mudanças de paisagem, assim como os passageiros ou as pessoas que conheceu em paragens.

O segundo estilo, que chamei de descrição temática, se ocupa do relato das experiências sem uma organização cronológica ou temporal. É o caso do segundo capítulo do livro, Chegada e Estadia no Rio de Janeiro. A própria narradora descreve essa mudança para o leitor: "Mas não quero cansar meu leitor com uma lista completa de todos os acontecimentos cotidianos e insignificantes – descreverei apenas as maravilhas gerais da cidade e as maneiras e costumes de seus moradores, da mesma forma que tive a oportunidade de conhecer durante minha estadia" (PFEIFFER, 1850, p. 29). Assim, abandona noções temporais restritas e passa a dar impressões da cidade, explicações sobre seu funcionamento ou comentários sobre as pessoas de maneira puramente temática, juntando para isso a experiência de várias semanas. Nesses casos, a autora opta por marcar somente a data de acontecimentos importantes que tenham ocorrido nesse longo período – como o batizado da princesa ou o aniversário do imperador – mas ignora as datas dos eventos cotidianos e apresenta, em contrapartida, descrições colhidas ao longo dos dois meses que passou no país. Essa opção também mostra que a narrativa da autora passou por um processo de Bildung – ou seja, uma transformação do gênero padrão para escrita de viagem feminina, que se modifica na percepção a autora de que outro estilo pode ser mais condizente com o conteúdo que quer narrar. Não é uma mudança drástica, mas é uma mudança estrutural.

As dicas de viagem pertencem ao terceiro estilo identificado na escrita de Pfeiffer e hoje seriam mais condizentes com guias de viagem. Nestes trechos específicos, ela dá sugestões práticas para possíveis viajantes em trajetos semelhantes. Um exemplo é quando ela está na jornada de barco até o Brasil:

Para melhorar a qualidade da comida, especialmente em viagens longas, é recomendável levar alguns itens para complementar o cardápio do navio. Os mais adequados são caldo de carne e torradas finas – ambos devem ser armazenados em latas para evitar que fiquem úmidos ou entrem em contato com insetos –, uma quantidade razoável de ovos que, caso a viagem seja até o hemisfério sul, devem ser mergulhados em um recipiente com água ou embalados em pó de carvão, além de arroz, batatas, açúcar, manteiga e todos os ingredientes necessários para se fazer uma sopa de vinho e uma salada de batatas. A primeira fortalece, a segunda refresca. Aqueles que viajam com crianças fariam bem em viajar com uma cabra (PFEIFFER, 1850, p. 4).

Outros exemplos desse tipo de estrutura são as dicas de hospedagem e lugares de alimentação e seus preços, além da descrição de alguns costumes típicos que podem ajudar os viajantes a se relacionar melhor com os habitantes locais, como a maneira adequada de se pedir hospedagem para fazendeiros quando hoteis ou pousadas não estão disponíveis.

Cabe também mencionar uma outra característica da literatura de viagem enquanto gênero: as convenções de veracidade. Como a narradora indica em seu texto, ela se propõe a contar o que de fato aconteceu com ela – e para tanto usa vários dados informativos que garantam a ocorrência do que é narrado. Esse tipo de convenção é comum no gênero e chegou a ser usado ironicamente em obras fictícias, como Robinson Crusoe, de Daniel Defoe.

Uma outra tensão do período de produção e publicação da obra de Pfeiffer é a maneira com que os relatos de viagem eram lidos. "A crítica fervilhava de discussões sobre como os livros de viagens deveriam ser escritos em uma era iluminada, as duas principais tensões entre a escrita “ingênua” (popular) e a escrita culta, e entre a escrita informativa e a experimental"62, afirma Pratt (2002, p. 87). Enquanto uma produtora de conhecimento mulher, Pfeiffer está submetida a algumas restrições, como acesso à educação – como já foi apresentado neste trabalho – e com isso ela também está entre essas forças opostas: de fazer um trabalho informacional ou sentimental, um trabalho científico ou pessoal. Acredito que o livro não se encaixe completamente em nenhum destes dois pólos. Sua escrita é bastante informacional, mas provavelmente seria mais tivesse ela as mesmas oportunidades que seus colegas homens. Essa

_______________

62 "Review literature teemed with discussions of how travel books ought to be written in an enlightened age, the two main tensions being between “naive” (popular) and lettered writing, and between informational and experiential writing".

limitação a leva a uma escrita diferente de uma informacional. Sua escrita deriva de um espaço intermediário.