• Nenhum resultado encontrado

4.2 CARACTERÍSTICAS DA OBRA DE IDA PFEIFFER 78 

4.2.8 Espaço 105 

Para o pesquisador alemão Ottmar Ette, o relato de viagem é, " em essência, aquela forma de escrita literária e científica na qual a escrita pode estar mais consciente de sua referencialidade ao espaço, de sua dinâmica e de sua necessidade de movimento"69 (ETTE, 2008, p 23). Ou seja, impossível falar de literatura de viagem sem pensar em seu espaço. Ette defende que o espaço nesse tipo de obra é um espaço em deslocamento, já que é prerrogativa do gênero é não só o deslocamento _______________

69 "En esencia, aquella forma de escritura literaria y científica en la cual el escribir quizá tenga más conciencia de su referencialidad al espacio, su dinámica y su necesidad de movimiento".

físico, mas também o deslocamento cultural, social, contextual ao qual o indivíduo (autor, narrador ou personagem principal) se sujeita. A narrativa que resulta da experiência é, para o pesquisador, uma tentativa de transpor para o leitor um modelo espacial dinâmico. " O relato de viagem é um gênero do lugar, ou ainda, de mudança de lugar e determinação permanente de novos lugares "70 (ETTE, 2008, p. 42).

Para Ette (2008, p. 66), "As histórias de viagens dos séculos XVIII e XIX não desenvolvem sua força de atração apenas pela relação que têm com uma realidade extralinguística, com uma certa alteridade cultural ou com a autenticidade histórica do caráter do viajante em si"71. Sua força se dá por um grande movimento de espacialização das estruturas de pensamento – ou seja, as produções científica e filosófica estavam centradas numa espacialização, num deslocamento (um movimento que Pratt [2003] também identificou).

Toda a literatura de Pfeiffer gira em torno disso. E seu deslocamento, ao menos no trecho do qual se ocupa esta dissertação, a traz para um espaço com a qual já teve contato em outras narrativas. Como abordado na parte sobre os imaginários, a descrição espacial de Pfeiffer conta com um espaço imaginário (aquele que se acreditava que seria encontrado) e um espaço real – aquele que a autora de fato encontrou. A contraposição constante entre os dois em forma de comparação é uma das ferramentas narrativas mais frequentes na construção da descrição espacial. Além disso, a autora usa com frequência adjetivos (que, quando se referem à natureza, tendem a ser "exuberante" e assim por diante). Em termos de espaço natural, a descrição de Pfeiffer se aproxima a do paraíso na terra.

A questão muda quando ela descreve o aspecto social do espaço, materializado pelas cidades e colônias. Nesse caso, os adjetivos não costumam ser tão positivos assim. Pelo contrário, Pfeiffer critica a simplicidade da arquitetura, o mau funcionamento das cidades, a pobreza constante, a falta de infra-estruturas culturais, etc. Aqui, o espaço é apresentado quase como uma oposição à ideia de paraíso na terra.

_______________

70 "El relato de viajes es un género del lugar, mejor dicho, de cambio de lugar y de permanente determinación de nuevos lugares".

71 "Los relatos de viajes de los siglos XVIII y XIX no desarrollan su fuerza de atracción sólo por lá relación que mantienen con una realidad extralingüística, con una determinada alteridad cultural o con la autenticidad histórica del personaje del viajero en sí".

Estes espaços do mundo colonial são definidos por Pratt (2003) como zonas de contato: "espaço de encontros coloniais, o espaço em que pessoas separadas geográfica- e historicamente entram em contato e estabelecem relações contínuas, geralmente envolvendo condições de coerção, inequidade racial, e conflito intratável"72 (PRATT, 2003, p. 6). São espaços em que com frequência se observa uma diferença grande de hierarquias.

O Rio de Janeiro, como um dos principais portos do Brasil, era uma das zonas de contato do período colonial. Quando Pfeiffer vem para o país, em 1846, o país era independente há apenas 24 anos. Além da pouca distância temporal, os sistemas econômico e político do país se assemelhavam profundamente às estruturas coloniais. Com isso, o Rio de Janeiro podia ainda ser considerado uma zona de contato.

É justamente neste espaço, com todas as diferenças sociais, culturais e econômicas, que Pfeiffer chega no país. É um espaço que não só é diferente para ela, mas é em si um espaço de confronto de várias diferenças: existem os grupos indígenas nativos do país, os colonizadores portugueses que já estão no país há gerações, os negros escravizados trazidos à força, uma família real portuguesa que se torna brasileira e imigrantes mais recentes de várias origens. A autora não observa somente a diferença entre ela e um outro grupo, mas entre ela e vários grupos e entre os vários grupos.

Pfeiffer começa, como Habinger afirma insistentemente em vários de seus trabalhos, em estado de choque com as diferenças que encontra. Essa é a reação da autora diante da zona de contato. Mas há uma mudança, ainda que leve, em seu pensamento, ao ponto de defender a igualdade de ensino entre negros e brancos, o que mostra o constante processo de transformação e integração de conhecimento novo proposto pela Bildung. Vê neles, portanto, a mesma capacidade intelectual que vê nos outros. A zona de contato tornou essa mudança de pensamento possível – e uma hipótese de leitura dessa mudança é a percepção dela da semelhança entre sua própria situação, em que não tem acesso à educação por conta de seu gênero, com a situação deles, que não têm acesso à educação por conta de sua cor e de sua

_______________

72 “Space of colonial encounters, the space in which peoples geographically and historically separated come into contact with each other and establish ongoing relations, usually involving conditions of coercion, radical inequality, and intractable conflict".

situação social enquanto escravizados. Ao se pôr na zona de contato, se torna passível de transformação e de transformar.