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4.2 CARACTERÍSTICAS DA OBRA DE IDA PFEIFFER 78 

4.2.1 Narrativa em primeira pessoa e ponto de vista narrativo 79 

Pfeiffer constrói sua narrativa na primeira pessoa do singular59 com uma narradora que, até onde é possível afirmar, se assemelha a ela própria (no sentido que a proposta da obra é emitir as impressões, acontecimentos e opiniões da própria autora), ainda que seja impossível afirmar completamente em que nível se dá a relação dos episóedios narrados com o que de fato aconteceu. Até que ponto narradora e autora se assemelham ou se diferem neste texto? O ponto de vista narrativo, porém, é invariavelmente o da própria autora, o que é característica da sua obra. A autora não se preocupa, porém, em passar informações sobre si mesma ou se construir enquanto personagem: não apresenta informações diretas sobre seu passado, sua formação, sobre quem é ou sobre sua família. O mais perto que chega de passar alguma informação sobre si mesma é na introdução do livro, quando afirma não se considerar uma turista60 ou quando atesta sua vontade de viajar: "Viajar era o sonho da minha juventude e a lembrança do que vi é a alegria da minha velhice" (PFEIFFER, 1850, p. I).

Recuperando os dois tipos de narrador de literatura de viagem propostos por Pratt (1985 apud MILLS, 1991), um mais sentimental e um mais descritivo, observa- se que no caso de Pfeiffer há uma predominância da narradora descritivo. Em primeiro lugar, a narrativa de Pfeiffer se constrói a partir da descrição de povos, lugares, fauna, flora e costumes (temas abordados separadamente adiante) e, em segundo lugar, a _______________

59 É preciso destacar que existem ocorrências da terceira pessoa no plural em casos em que a autora se insere em um grupo (o primeiro capítulo é um exemplo de uso de "nós" enquanto os passageiros do navio).

60 No livro Abenteuer reisender Frauen: 15 Porträts [Aventuras de mulheres viajantes: 15 perfis] (2012), Armin Strohmeyer afirma que essa afirmação é uma tentativa de Pfeiffer de se distanciar de um tipo emergente de viajantes: os turistas. Estes eram aqueles que viajavam em grupos (Thomas Cook, uma das primeiras agências de viagem, fora recentemente fundada), ficavam por pouco tempo em seus destinos e tinham uma viagem programada quase que por completo. A oposição seria pensar em si mesma como uma viajante de verdade.

partir da narrativa de eventos e episódios específicos. Nestes casos, usa a primeira pessoa do singular para eventos que aconteceram com ela, a primeira do plural para acontecimentos em grupos nos quais ela se inclui ou terceira pessoa quando registra acontecimentos de outros. Ainda que tenha uma narrativa em primeira pessoa, Pfeiffer não se aprofunda em um aspecto sentimental ou de exploração interna do indivíduo. Em raros momentos revela sentimentos como medo, susto ou felicidade – mencionados sempre num contexto de descrição ou de narração de pequenos acontecimentos e apenas de maneira breve.

Ainda assim, as descrições feitas pela narradora são marcadas de subjetividade. Uma das marcas textuais disso é uso constante de expressões como "o que me chamou atenção", "me acostumei..." ou "foi muito interessante para mim", que registram fortemente as impressões de um "eu". A autora adota também um uso intenso de adjetivos e advérbios, raramente omitindo sua percepção dos lugares que a cercam. Seu texto é permeado por estruturas que mostram as experiências e opiniões da autora de forma pouco explícita, chegando em um estilo que optei por chamar de descrição subjetiva. Esse padrão é quebrado apenas em alguns momentos, quando a narradora se posiciona mais explicitamente.

A questão da subjetividade é explicitada pela própria autora-narradora no prefácio do livro: "Sou capaz apenas de contar de forma simples o que vi e o que presenciei. Se faço algum julgamento, o faço considerando apenas o ponto de vista da minha própria experiência pessoal" (PFEIFFER, 1850, p. 2). Além de ser uma convenção de gênero, no caso de Pfeiffer, este trecho serve também como um atestado de subjetividade, já que a autora afirma que narrará e descreverá aquilo que ela viu, seguindo sua opinião sobre os fatos. Sua narrativa também vai apresentar os aspectos de mudança ou de Bildung sofridos pela autora.

Considerando a formação do narrador apresentada pela narrativa de Pfeiffer, é impossível ignorar o posicionamento dela como viajante e como produtora de conhecimento. As condições de viagem e de produção de conhecimento – pensando aqui em questões de gênero e de geografia – mediam sua experiência no mundo: como se dá a viagem, para onde, sobre o que pode escrever, como seu livro será vendido e por quem será lido. A partir dessa subjetividade da escrita e da condição da autora, gostaria de apresentar algumas perguntas irrespondíveis a não ser com suposições, mas que ainda assim permitem pensarmos como se dá sua formação enquanto narradora: Será que aquilo que Pfeiffer conheceu (como as fazendas

brasileiras e a maneira com que tratavam os escravos, que a austríaca afirma não ser tão ruim quanto esperava) era realmente a verdade? O quanto disso não foi editado e apresentado de uma maneira mais suave e adequada para uma senhora de sua idade? O quanto sua existência enquanto mulher não alterou sua experiência de mundo? O quanto expectativas sociais a uma mulher não delimitaram sua narrativa? Essas perguntas fazem com que tenhamos uma noção da complexidade da formação de Pfeiffer enquanto narradora. São muitos os aspectos a serem levados em consideração e, por questões de tempo e de restrições temáticas, muitas deles não estão mais disponíveis para o leitor de hoje. Ainda assim, gostaria de explorar a maneira com que alguns pesquisadores pensam sobre isso.

É comum pesquisadores destacarem a questão do ponto de vista dos viajantes em relação aos lugares que visitam. A historiadora Miriam Lifschitz Moreira Leite (1997) afirma que por serem estrangeiros e não fazerem parte dos grupos culturais visitados, os viajantes tinham condições de perceber "aspectos, incoerências e contradições" que nem sempre os habitantes conseguem perceber (p. 10). "Em contrapartida, o viajante traz a postura do civilizado diante do povo atrasado, reforçada por uma série de obstáculos linguísticos, culturais e econômicos à compreensão do grupo visitado" (LEITE, 1997, p. 10).

Mas, no caso de Pfeiffer, assim como de outras autoras viajantes, a questão de gênero não pode ser posta de lado quando se pensa no ponto de vista com o qual se posicionam no mundo. A austríaca, como outras autoras, mostra uma certa ambivalência ao ocupar seu espaço enquanto escritora. Ao mesmo tempo apresenta uma superioridade em relação aos povos que encontra por ser europeia e, portanto, civilizada. Por outro lado, a autora ocupa uma posição marginal no seu próprio mundo por ser mulher. E é com um olhar partido que a autora observa, descreve e narra o mundo. Segundo a pesquisadora americana Monika Fischer, "Ida Pfeiffer apresenta atitudes e reforça estereótipos ao ver com uma mente europeia, mas sua 'canção' escrita revela com frequência um mundo desconhecido aberto a novas perspectivas sobre culturas diferentes assim como papéis de gênero"61 (FISCHER, 2016, p. 70). Essa posição ambivalente permite a autora fazer um comentário crítico à escravidão,

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61 "Ida Pfeiffer exhibits attitudes and enforces stereotypes by seeing with an European mind but her written 'song' often reveals an unknown world open to new perspectives on different cultures as well as gender roles".

ao mesmo tempo que não a impede de também passar por um choque cultural e apresentar um racismo em relação aos negros.

É também na descrição dos negros que fica claro que o texto de Pfeiffer mostra uma autora em transformação, em processo de Bildung. Se inicialmente os descreve apenas como “feios e sujos”, admite posteriormente reconhecer beleza nas mulheres. Esse é claramente um exemplo simples, mas uma postura mais respeitosa se vê também em sua defesa da educação dos negros: “Eu admito que eles estão um pouco atrás dos brancos em termos de formação [Bildung no original]; mas acredito que isso não seja causado por uma falta de inteligência, mas sim por uma falta completa de acesso à educação”, afirma. Os três meses que passou no país fazem com que passe pelo processo de Bildung apresentado por Berman: ser-em-si-mesmo (enquanto austríaca e mulher), ser-fora-de-si (ao se por em contato com outros povos e culturas e passar por um processo de alteridade) e um retorno a si (no qual escreve, com seu ponto de vista transformado, sua experiência e sua mudança). Dada a característica de um texto mais descritivo do que sentimental, a narrativa não terá como foco essa mudança; ainda assim, a maneira com que as descrições passam a ser feitas deixam o processo marcado.