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4.2 CARACTERÍSTICAS DA OBRA DE IDA PFEIFFER 78 

4.2.7 Comparação 101 

Outra técnica frequente na escrita de Pfeiffer é o uso de comparações, que se dão tanto entre o Brasil e a Europa ou outros países conhecidos da autora como entre o Brasil e o imaginário europeu sobre o Brasil, tema abordado anteriormente. As comparações são mais um dos momentos que explicitam o ponto de vista da autora, já que revelam quais são os parâmetros com os quais faz suas críticas e comentários sobre o país. Um exemplo: "As casas são construídas com um estilo europeu, mas são pequenas e insignificantes" (PFEIFFER, 1850, p. 38). Pequenas comparações como essa são frequentes na descrição de pessoas, espaços e costumes. É uma maneira de construir uma imagem para o leitor, presumidamente europeu, que se dá

pelo contraste ou complementação, retomando o conhecido e apontando o que se assemelha ou difere dele.

Para observarmos mais atentamente a maneira como as comparações se constituem como técnica narrativa em Pfeiffer, apresento e comento exemplos do livro. Exponho uma distinção entre duas maneiras de se comparar presentes na escrita de Pfeiffer. Começo com a descrição das ruas do Rio de Janeiro, feita no segundo capítulo do livro:

Das demais ruas, a Rua Misericordia e a Rua Ouvidor são ainda as mais interessantes, sendo que a última contém empórios maiores e melhores, embora não se deva esperar encontrar nem vitrines tão belas quanto as das cidades europeias, nem nada particularmente bonito ou valioso. A única coisa que chamou a minha atenção foram as lojas de flores, que expunham as mais maravilhosas flores, feitas de penas de pássaros, escamas de peixes e asas de besouros. (PFEIFFER, 1850, p. 31)

A comparação aqui se dá de forma clara: a Rua Misericórdia e a Rua Ouvidor são mais interessantes que as outras ruas; ao mesmo tempo, suas lojas mais interessantes não têm vitrines tão belas quanto as das cidades europeias. Ela então apresenta para o leitor a loja que acha mais interessante, que vende flores feitas artesanalmente. Apresentada nesta sequência, a loja não é vista de maneira muito favorável, ainda que a autora lhe faça elogios; ela não será considerada boa quando comparada com as europeias.

Esse tipo de estrutura é usado com frequência para descrever a arquitetura, as vestimentas ou a paisagem. E, apesar de quase sempre favorecerem a Europa, esse nem sempre é o caso. Em sua descrição da comemoração do dia onomástico do imperador, Pfeiffer ressalta a riqueza da família real brasileira: "Tamanha riqueza e abundância de bordados em ouro, dragonas, ordens e assim por diante não pode ser facilmente concebida e não acredito que nada similar possa ser encontrado em qualquer corte da Europa" (PFEIFFER, 1850, p. 43).

As comparações nem sempre são feitas com a Europa Ocidental, mas também com outros lugares que a autora visitou. A autora compara a sujeira do Rio de Janeiro com a de Constantinopla; a condição dos escravos do país com os servos russos, poloneses ou egípcios; a paisagem sul-americana (quando a autora já está no navio de partida) com a Islândia e assim por diante. A comparação se dá mesmo internamente, como por exemplo quando compara negros e indígenas ou diferentes cidades brasileiras.

Em todas os exemplos mencionadas até aqui, as comparações parecem ser uma ferramenta narrativa usada para criar uma imagem para o leitor (considerando que ela escreve para um público europeu). Assim, as casas são como as europeias, mas menores; as lojas não são tão boas; a ostentação da família real é maior. Com esse tipo de estrutura, ela toma como base seu próprio conhecimento de mundo, que supõe ser similar ao do leitor, construindo sua descrição do novo lugar a partir disso. Isso permite que o leitor construa esse novo espaço com a mediação do que já é familiar a ele ou ela.

Ainda pensando em comparações deste tipo, apresento mais um exemplo. Neste caso, a proposta da autora é fazer uma comparação explícita:

Ao se instituir uma comparação entre Brasil e Europa, tanto no que se refere a uma impressão produzida pelo todo quanto à vantagens e desvantagens de cada um, podemos achar, em um primeiro momento, que a balança vai pender ao primeiro, apenas para que depois vire, com grande certeza, em favor do segundo. Para viajantes, o Brasil é, provavelmente, o país mais interessante do mundo – como lugar para residência permanente eu escolheria decididamente a Europa. (PFEIFFER, 1850, p. 52)

A comparação teve como objetivo ser um fim em si mesma, explicitando onde Pfeiffer enquanto narradora preferiria morar. Todas as comparações que mostrei até agora são feitas textualmente – ou seja, existem palavras ou estruturas gramaticais que caracterizam estes trechos como comparações: "estilo europeu", "tão belas quanto as das cidades europeias", "nada similar possa ser encontrado em qualquer corte da Europa", "mais feios" e assim por diante. Esses são exemplos de evidências textuais que explicitam uma comparação. São adjetivos (incluindo comparativos e superlativos), aliados com locuções adverbiais ou advérbios de lugar e conectores. Chamei este tipo de comparação, feita com o auxílio de evidências textuais, de

comparações diretas.

Em oposição às comparações diretas, há também um outro tipo de comparação, mais difíceis de se perceber em uma primeira leitura. As chamo de comparações indiretas. Dou um exemplo, também da descrição de Pfeiffer do Rio de Janeiro:

Desembarcamos na Praya dos Mineiros, uma praça suja e repulsiva povoada por algumas dúzias de pretos sujos e repulsivos acocorados no chão, gritando a todo pulmão as ofertas de frutas e doces que vendiam. De lá fomos direto para a rua principal (Rua direita), cuja única beleza é a largura. Ela abriga várias construções públicas, como a Alfândega, os Correios, a Bolsa, a Guarda e outros. Elas são, porém, tão modestas que mal seriam notadas caso um aglomerado de pessoas não estivesse constantemente em sua frente. (PFEIFFER, 1850, p. 30)

Neste trecho, não há nenhuma evidência explícita de comparação, nenhum dos marcadores linguísticos presentes nos exemplos anteriores. Pfeiffer não afirma que esta praça é mais suja que praças de outros lugares – até mesmo o advérbio ou locução adverbial de um outro lugar está ausente da frase. Tanto que poderíamos ler a frase sem considerá-la uma comparação, identificando-a apenas como uma descrição neutra. Porém, proponho aqui considerá-la também como uma comparação. Explico: quando um autor, ou qualquer pessoa, visita um lugar novo, a tendência geral é que note as características que lhe pareçam diferentes. Neste exemplo: Pfeiffer visita um espaço que reconhece como uma praça. Isso quer dizer que é similar ao padrão de praça que ela conhece de sua experiência pessoal – ou de praças austríacas ou europeias no geral, assim como de outros lugares que conheceu durante suas viagens. Mas, ao mesmo tempo em que ela caracteriza a Praya dos

Mineiros como uma praça, ela nota diferenças entre esse espaço e a imagem que ela

tem de uma praça – e com isso em mente ela caracteriza o espaço novo com adjetivos e advérbios: uma praça "suja e repulsiva". Ao fazer a descrição de uma praça, ela não a descreve como um ambiente amplo a céu aberto, por exemplo, pois essa é a característica compartilhada que caracteriza o espaço como uma praça. Mas o fato dela ser suja e repulsiva é o que a diferencia da imagem de praça anterior. A diferença posta é tanto uma descrição do novo lugar quanto é de seu lugar de partida, ao qual ela compara tudo que lhe é novo. Se sua imagem padrão de praça fosse um lugar sujo, ela não sentiria a necessidade de destacar essas qualidades. É justamente por isso que afirmo que esse tipo de frase também é um tipo de comparação, mas de um tipo indireto, já que não contém evidência linguística explícita de que uma comparação é feita naquele momento.

Apresento mais alguns exemplos de comparações. A citação a seguir foi retirada da narrativa da autora sobre sua visita aos Puris, um grupo indígena, que exigiu da autora uma viagem árdua de alguns dias pela mata fechada. Sua descrição do lugar começa com sua surpresa quanto à pobreza do lugar: "Ali encontrei a grande

pobreza, a grande miséria! – Durante minhas viagens já vi muitas imagens da pobreza, mas nunca vira algo assim" (PFEIFFER, 1850, p. 100). Essa frase é uma comparação direta – já que declara não ter visto em suas viagens uma pobreza como essa. Adiante, depois de descrever as cabanas, a comida e as pessoas, descreve também o idioma que usam: "A língua deles é muito pobre: eles só conseguem, por exemplo, contar até dois, por isso precisam repetir os números um e dois continuamente quando desejam expressar um número maior" (PFEIFFER, 1850, p. 102). O adjetivo pobre só pode ser usado se a autora considera sua própria língua, ou alguma outra que conheça, como rica. É tomando a sua realidade como base que ela caracteriza a nova realidade – nesse caso, pobre. Ainda que a autora não faça uma comparação explícita entre a língua puri e o alemão, a comparação está presente em seu discurso.

As comparações indiretas são uma categoria importante porque mostram quanto do texto é construído em torno da subjetividade e como os relatos de viagem descrevem tanto os lugares novos quanto os lugares de partida dos autores. A própria escolha do que registrar e publicar já mostra essa subjetividade, e a possibilidade de pensar a comparação indireta enquanto uma categoria é um jeito de ressaltar que essas narrativas são comparações constantes entre pelo menos dois lugares e duas culturas.

Além disso, as comparações guardam uma relação com o processo de

Bildung – já que explicitam o próprio processo da autora de contrastar aquilo que já

lhe era conhecido com o novo, muitas vezes com o processo de transformação do que já lhe era conhecido.