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Será que é possível encontrar, entre tantos escritos de viagem, um padrão que diferencie a escrita de mulheres e de homens? Se sim, quais são eles? Esse é uma das principais perguntas do livro Discourses of Difference [Discursos da diferença], da pesquisadora americana Sara Mills, publicado em 1991. Nesta obra, Mills se ocupa em estudar o contexto de produção dessas obras, revisar a literatura crítica já produzida sobre elas e fazer um estudo de caso da obra de três escritoras britânicas: Alexandra David-Neel, Mary Kingsley e Nina Mazuchelli.

É necessário, antes de tudo, fazer uma pequena advertência: Pfeiffer se insere de maneira diferente no contexto imperialista em comparação com as três escritoras analisadas por Mills. Um dos aspectos que Mills leva em consideração no estudo das autoras mencionadas é a maneira com que elas se relacionavam com as colônias de seus próprios países. Esse não é o caso de Pfeiffer. Ainda assim, as características observadas por Mills são válidas em Pfeiffer, pois a austríaca compartilha de um mesmo contexto cultural (etnocentrismo e superioridade da cultura europeia sendo os principais deles). É necessário lembrar também que Pfeiffer foi leitora de livros de viagem, muitos produzidos por escritores de um contexto imperialista, e é influenciada diretamente por eles.

Uma das diferenças apontadas por Mills entre homens e mulheres não está na escrita em si, mas no momento e nos círculos nos quais estão inseridos. Essas diferenças já foram apresentadas no texto – basta lembrarmos da diferença que o termo Bildung vai ter para os dois gêneros. O próprio contexto cultural e social do imperialismo privilegiava o conhecimento produzido por homens – se é que considera a possibilidade de um conhecimento produzido por mulheres. Assim, qualquer escrito delas era tratado de maneira marginal pela sociedade, começando já na possibilidade de publicação de seus livros e nas limitações temáticas da escrita. Não defendo que a escrita de autoras mulheres seja necessariamente diferente da de autores homens,

mas que contextos de produção tão diferentes como os apresentados nesse período e as diferenças sociais impostas aos dois grupos geram resultados diferentes. Isso faz com que as autoras deste período sejam desafiadoras de um ponto de vista teórico: são uma mistura dos estereótipos coloniais e imperialistas e, ao mesmo tempo, não conseguem adotar a voz imperialista por completo.

Dou um exemplo de como as expectativas sociais podem influenciar a produção dos autores e das autoras. Por um lado, características como energia, independência e espírito aventureiro eram creditadas aos homens socialmente. Essas características são aliadas ao gênero de viagem em si: um gênero que exige que o autor viaje, se exponha ao novo, corra riscos. Ao mesmo tempo, se espera que os homens sejam responsáveis pela produção do conhecimento, sejam inovadores e pesquisadores. O mesmo não acontece com as autoras mulheres.

Por outro lado, a escrita de diários e cartas, gêneros pertencentes à esfera do privado e da sociabilidade, eram considerados apropriados para mulheres. Nesses gêneros, as autoras descreviam seus dias, contavam sobre pessoas próximas, narravam acontecimentos cotidianos triviais. Essas expectativas sociais se transferem para a escrita de relatos de viagem: é mais frequente que homens escrevessem tratados científicos e mulheres escrevessem relatos com formato de cartas e diários (contudo, existem contraexemplos para ambos os casos).

Essas restrições são dadas pelos círculos sociais dos escritores, pelo nível e tipo de educação que lhes foram permitidos, pelas questões financeiras (era necessário ter dinheiro para viajar e, sem poderem trabalhar ou receber heranças, eram poucas as mulheres com bens sociais disponíveis) e pelas regularidades do discurso – isto é, por outros textos, em livros e jornais, já publicados.

Apesar dessas dificuldades, algumas mulheres quebraram os estereótipos, viajaram e publicaram seus relatos (em parte pelo espaço que conquistaram no mercado editorial, já discutido no primeiro capítulo da dissertação). Pensando em tudo isso, Mills (1991) afirma que tanto os autores como as autoras estavam expostos a padrões imperialistas, colonialistas e eurocêntricos em sua maneira de interpretar o mundo e escrever. Mas essas "restrições", como chama, se apresentam de forma diferente e têm resultados diversos.

Considerando todo esse contexto de produção, Mills (1991) faz um levantamento de quais marcas textuais diferenciam os discursos entre homens e

mulheres, pontuando, porém, que é difícil fazer uma compartimentalização completa deles:

Algumas escritoras de viagens exibem algumas das características da feminilidade e outras não. No processo de produção textual, existem várias pressões discursivas sobre as escritoras que as incentivam a escrever de maneiras particulares. Isso não quer dizer que todas as mulheres escrevam da mesma maneira, mas que existem pressões às quais elas resistem, negociam ou simplesmente cedem.52 (MILLS, 1991, p. 98-99)

Em um primeiro momento, a autora menciona a formação de um narrador que, segundo ela, é ferramenta para criar uma unidade coerente às várias vozes e discursos. Ainda assim, nem sempre os mesmos instrumentos de análise de um narrador de ficção são úteis para estudar um de não-ficção. Mills menciona, então, Pratt (1985), para quem existiriam dois tipos de narrador em literatura de viagem: um em primeiro plano, enfatizando um aspecto mais sentimental; um em último plano, ocupado em fazer descrições de maneiras e costumes. Mills (1991) ressalta que esses narradores não são excludentes nem são a única forma narrativa dos textos:

Mesmo nos textos de viagem, o narrador não é uma fonte unitária de informação; isto é, todas as declarações contidas na redação de viagens não são da mesma personagem narrativa. Em questões de hábitos e costumes, certas declarações emanam de uma fonte impessoal que não é idêntica ao narrador que viaja entre os lugares.53 (p. 74–75)

Ainda sobre o narrador, Mills levanta que com frequência as autoras estão preocupadas com sua própria interação com outros e estão "normalmente mais conscientes da maneira com que o narrador se apresenta para os outros"54 (1991, p. 97). Isso acontece na narrativa de Pfeiffer: em seu relato acerca do Brasil, menciona uma ocasião em que moradores locais perguntam sobre os motivos de sua própria viagem para o guia.

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52 "Some of the women travel writers display some of the features of femininity and not others. In the process of textual production there are various discursive pressures on women writers which encourage them to write in particular ways. That is not to say that all women write in the same way, but rather that there are pressures which they either resist, negotiate or simply give in to".

53 "Even within travel texts, the narrative figure is not a unitary source of information; that is, all of the statements within travel writing do not issue from the same narrative figure. In the manners and customs figure, certain statements emanate from an impersonal source which is not identical with the narrator who travels from place to place".

Outra questão são os enredos e os temas possíveis. "Existem convenções sobre o tipo de evento que pode ser incluído em um diário de viagem e são muito específicas na escrita de viagens para mulheres"55 (MILLS, 1991, p. 76). Com isso, a autora quer dizer que certos temas, por exemplo os relativos a questões corporais e sexuais, não poderiam ser inseridos por motivos de decoro. " Dentro deste estereótipo, as mulheres deveriam viajar para pintar borboletas e flores"56 (MILLS, 1991, p. 81), afirma. Essa característica frequentemente deixa brechas na nossa leitura atual dessas obras. Questões de higiene, vestimenta e saúde também são tabus (por se referem ao próprio corpo) e raramente são mencionados.

Ainda assim, a escrita não-ficcional era um domínio masculino, principalmente porque até o século XIX a educação formal era basicamente restrita às mulheres. A escrita científica e histórica exigia de um certo grau de "autorização", ou seja, um atestado de qualidade da pesquisa e da escrita – uma autoridade que não era dada às mulheres justamente pela falta de educação formal. Esse é mais um dos motivos pelos quais parte da escrita de viagem de mulheres se baseia em diários e cartas, não em relatos estruturados tematicamente ou cientificamente. "Esse posicionamento problemático desses textos geralmente leva ao prefácio da redação a um aviso que nega qualquer mérito científico, acadêmico, literário ou outro; isso ocorre com muita frequência com as viagens de mulheres que escrevem no século XIX"57, afirma Mills (1991, p. 83).

Socialmente, se creditava às mulheres uma esfera emocional, o que fazia seus textos ficarem limitados a autobiografias, cartas, romances etc. Por isso frequentemente se encontram relatos de viagem em formatos de cartas ou diários – que supostamente teriam sido escritos para uso privado e apenas depois seriam publicados. Isso faria com que relatos de viagem escritos por mulheres soassem mais "naturais" para o público (MILLS, 1991, p. 103). Faço aqui um comentário parentético: nem sempre os livros publicados em formato de carta ou diário foram escritos inocentemente para uso doméstico. Muitos eram escritos em formato epistolar ou diário com a intenção de serem publicados posteriormente – é a maneira com que se _______________

55 "There are conventions about the type of event which can be included in a travel journal, and these are very specific in women's travel writing".

56 " Within this stereotype, women are supposed to travel in order to paint butterflies and flowers ". 57 “This problematic positioning of these texts often leads to the writing being prefaced with a disclaimer

which denies any scientific, academic, literary or other merit; this occurs very frequently with women’s travel writing in the nineteenth century”.

lê esses gêneros que torna a escrita mais condizente com a expectativa social para mulheres. Pfeiffer usa como base o formato de diário – que utiliza durante todo o seu relato de viagem no barco – mas o modifica para narrar sua estadia na capital do Rio de Janeiro. Neste caso, usa-se a justificativa de tornar a narrativa menos enfadonha para seus leitores e, em vez de narrar a estadia dia a dia, prefere-se fazer uma descrição temática. Se vê uma preocupação com o resultado final do texto e uma busca por um formato que dê conta melhor da narrativa, ainda que quebre com convenções do gênero.

Além disso, a declaração de verdades em textos de não-ficção era considerada um terreno masculino, principalmente pela questão do acesso à educação. Uma escrita factual exigia "autorização". Por isso é comum encontrar na escrita das mulheres algumas "advertências", como é o caso de Pfeiffer. Sobre esse tipo de afirmação, Mills declara: " As razões pelas quais eles fazem essa afirmação são que os textos das mulheres não devem ser ‘científicos’ e autorizados, mas sim amadores"58 (1991, p. 83). Com esse tipo de afirmação, negam seus méritos científicos, acadêmicos, literários e qualquer outro. De certa forma, isso é uma estratégia de legitimação destes textos. Por outro lado, elementos socialmente ligados à noção de feminino – como preocupação com relacionamentos, descrições domésticas, preocupação com o cristianismo e questões de moralidade – são com frequência incluídos nos textos. Pfeiffer, por exemplo, faz uma crítica à postura dos padres jesuítas no Brasil que, segundo ela, realizavam batizados em indígenas para "contar almas para o céu" sem se preocupar com a prática cristã ou uma moralidade. Ainda assim, não se ocupa tanto de temas como relacionamentos e suas descrições domésticas não são tão aprofundadas. Outra noção frequente era de quais seriam os espaços apropriados para mulheres (o que Pfeiffer não parece levar completamente em consideração, pois viajava sozinha com um guia por mata fechada, entre outros).