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2 ASPECTOS CONCEITUAIS E JURÍDICOS DA PRODUÇÃO DE BIOCOMBUSTÍVEIS NO BRASIL: OS FATORES DO DESENVOLVIMENTO E DO

2.2 A PRODUÇÃO DOS BIOCOMBUSTÍVEIS COMO FATOR DE DESENVOLVIMENTO

2.3.2 Biocombustíveis, Desenvolvimento Sustentável e a Crise do Estado

Na política energética brasileira é dado um grande enfoque aos agrocombustíveis de primeira geração, dos quais se extrai o bio-óleo por meio do esmagamento das sementes dessas plantas oleaginosas, contudo, o plantio para obtenção considerável de óleo demanda grandes extensões de terra, causando um inegável impacto ambiental.

Diversos são os impactos causados pela ênfase nos agrocombustíveis, a exemplo da dicotomia biocombustíveis versus segurança alimentar; da expansão das fronteiras agrícolas elevando os índices de desmatamento; da grande utilização de insumos agrícolas e agrotóxicos; da necessidade de grandes volumes de água para irrigação das plantações somada à crise hídrica, visto que nem todas as espécies se adaptam ao regime de sequeiro101; da queima mecânica da colheita (no caso da cultura da cana-de-açúcar; da utilização de sementes transgênicas (na cultura da soja, por exemplo) e da ausência de estudos que atestem ou neguem o malefício de tais sementes para a dinâmica ambiental; etc102. Alguns pontos serão brevemente explanados aqui.

Entretanto, apesar do potencial impacto que os agrocombustíveis causam no meio ambiente, são defendidos tanto nacional, quanto internacionalmente como combustíveis verdes, alinhados com a lógica do mercado de captura e crédito do carbono e em pleno fomento por meio de políticas públicas no Brasil. Existem, inclusive, novos projetos de políticas públicas para aumentar sua participação na matriz energética nacional e instituir oficialmente o mecanismo de compensação de carbono comercializado em bolsa de valores103.

101 Em regime de “sequeiro” é termo bastante utilizado na agricultura e quer dizer sem irrigação plena, sem

sistema de irrigação próprio.

102 Sobre a questão ambiental, o rapper Criolo, ícone da música atual, menciona e dá voz a preocupação popular

e de ambientalistas sobre a crise hídrica, a poluição, o problema das mutações genéticas e do impacto dos alimentos transgênicos, entre outros, na composição intitulada “Chuva ácida”: “Nem água pra beber a gente não tem/ Como que nós vamos viver?/ Num universo de horrores, tuberculose, câncer, tumores, chagas que a prata não repara/ Vidas cujo respeito, não viram nada/ O homem sendo a imagem da besta/ Crack é fichinha, estão destruindo o planeta/ Em breve nascerão vacas sem tetas/ Nos cafezais, milharais, a praga dominando a colheita/ A água que é pouca sumirá totalmente/ Suas sacolas de dinheiro não comprarão seu copo de aguardente/ Porque destruíram a cana, que adoça os doces, que adoça o amargo da vida/ Olhar em volta e ver tanta burrice reunida”.

103

Na concepção de José Eli da Veiga, a agenda para uma economia de baixo teor de carbono é, de fato, uma agenda para o desenvolvimento, acreditando o autor que seria a única a assegurar ao Brasil uma inserção competitiva na economia mundial104.

Quanto à questão da segurança alimentar, o Brasil ainda não conseguiu retirar toda a sua população da faixa da fome, embora esforços governamentais tenham acontecido para mitigar tal problemática, a exemplo do Programa Fome Zero (2010), entre outros. Além de ainda haver faixa da população nessa situação, o cultivo de matéria-prima para obtenção de biocombustíveis utiliza grande parte da terra mais produtiva do Brasil, localizada na zona da mata litorânea e no cerrado. Tal questão é agravada porque as principais reservas de água estão localizadas no Centro-Oeste brasileiro, correndo potencial risco de contaminação em virtude dos insumos agrícolas utilizados105.

Um grande exemplo que correlaciona a produção de biocombustíveis à precarização da segurança alimentar é o da plantação de milho nos EUA para produção de etanol, que afetou o preço do frango e da carne suína; além dos subsídios indiretos à produção de etanol terem afetado a economia leiteira, provocando seu encarecimento e a adulteração de produtos lácteos; encarecendo ainda a alimentação humana proveniente dele106.

Contudo os biocombustíveis podem se tornar realmente mais independentes da questão da segurança alimentar, desde que seja mudado o foco de agrocombustíveis107 para o desenvolvimento de biocombustíveis provenientes de resíduos, por exemplo.

Segundo o Relatório de Atividades, do ano de 2016, da Comissão Mista Permanente sobre Mudanças Climáticas, entende-se que não haveria conflito entre o uso de biodiesel e a segurança alimentar, uma vez que no caso da soja, por exemplo, o subproduto do biodiesel é o farelo, utilizado como ração animal. E usá-la para produzir biodiesel é uma forma de agregar valor ao produto, em vez de exportar os grãos não processados108.

Sobre a questão da fome, Amartya Sen argumenta que a fome tem mais a ver com a falta de poder de acesso aos alimentos pelas populações mais vulneráveis economicamente do que com as diversas fomes em si consideradas. Nos moldes de algumas políticas públicas

104 VEIGA, José Eli da; VIANNA, Sérgio Besserman; ABRANCHES, Sérgio. A sustentabilidade do Brasil. In:

GIAMBIAGI, Fábio; BARROS, Octávio de. Brasil pós-crise: agenda para a próxima década.p. 304-323. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

105 Como exemplo tem-se o Aquífero Guarani.

106 PROCÓPIO, Argemiro. Subdesenvolvimento sustentável. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 74-75. 107

Talvez devam ser feitas ressalvas ao etanol proveniente da cana-de-açúcar, pois esse possui a maior eficiência energética entre os agrocombustíveis.

108 CONGRESSO NACIONAL. Relatório de atividades – 2016. (Comissão Mista Permanente sobre Mudanças

Climáticas) p. 47-48. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?11&codcol=1450>. Acesso em: 20 jul. 2017.

brasileiras, é possível que os biocombustíveis se tornem mais aliados do que vilões na questão da segurança alimentar109.

Apesar do exposto no Relatório, algumas iniciativas, incluindo projetos de lei, já foram propostas na tentativa de mitigar a competição entre cultivares alimentares e cultivares voltados para a produção de biocombustíveis por terra agricultável, como o Projeto de Lei nº 3680/2008, de autoria de Pedro Eugênio – PT/PE, entretanto não prosperaram nas Casas Legislativas, e desde 2008 estão na espera por uma análise110.

Vale ressaltar que, no Brasil, devido à extensão de seu território, ainda não parece haver nenhum confronto mais sério entre a cadeia produtiva dos biocombustíveis e a de produção de alimentos, mas em países de menores dimensões territoriais, os embates podem se tornar frequentes mais rapidamente.

Recentemente, a iniciativa que prosperou foi o Zoneamento Agroecológico da cana- de-açúcar – ZAE, instaurado pelo Decreto Presidencial nº 6.961/2009111, figurando como um instrumento a ser utilizado em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção da biodiversidade, por meio dele serão realizadas a avaliação, indicação e espacialização do potencial das terras para a expansão da produção da cultura da cana-de-açúcar em regime de sequeiro para produzir etanol.

O ZAE objetiva fornecer subsídios técnicos para formulação de políticas públicas com foco no ordenamento da expansão e da produção sustentável de cana-de-açúcar no território brasileiro. Ele se configura uma medida que possibilita a concretização de um desenvolvimento mais sustentável porque por meio dele, o Estado receberá contribuições técnicas acerca da melhor forma de ampliação da geração de cana-de-açúcar, de modo a gerar o menor impacto possível, tal situação não seria viável se não houvesse esse aparato técnico.

Outra pontuação que deve objeto de reflexão é a estrutura produtiva, pois grande parte dos biocombustíveis brasileiros provém de latifúndios monocultores, que não são a

109

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 189.

110 BRASIL. Projeto de Lei nº 3680/2008. Dispõe sobre o ordenamento do cultivo de cana-de-açúcar e dá outras

providências. Estabelece critérios para o gerenciamento do cultivo da cana-de-açúcar de modo a evitar que seu cultivo prejudique o abastecimento de produtos alimentares. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=403585>. Acesso em: 24 jun. 2017.

111 Em conformidade com o Decreto nº 6961/2009, o ZAE compreende: oferecimento de alternativas

sustentáveis aos produtores rurais; disponibilização de base de dados espaciais para o planejamento do cultivo sustentável das terras com cana-de-açúcar, respeitando-se a biodiversidade e a legislação em vigor; fornecimento de subsídios para o planejamento de futuros polos de desenvolvimento no espaço rural; alinhamento do estudo com as políticas governamentais sobre agroenergia; a indicação e das áreas aptas à expansão do cultivo de cana- de-açúcar sob o regime de sequeiro; e o fornecimento de bases técnicas para a implantação e controle das políticas públicas.

melhor unidade de produção quando se busca a sustentabilidade e a inclusão social. Aliada a essa questão, tem-se que os cultivares fomentados, sob a ótica de Castro e Castro, tem íntima relação com o capital internacional, elucidada no Gráfico 6, a seguir112:

Gráfico 6. Principais empresas e mercados de produção (CASTRO, 2015) 113.

Não que seja um fator completamente negativo a exportação de biodiesel, até porque no momento atual, a recessão econômica fez o consumo cair, mas a dependência internacional pode gerar agravante. A dependência dessas produções às condicionantes econômicas internacionais se faz tão presente que a crise econômica iniciada em 2008 repercutiu intensamente na redução da produção de toneladas de dendê, soja e de carvão de eucalipto.

112

CASTRO, Raifran Abidimar de; CASTRO, Edna Maria Ramos de. As Monoculturas e a Sustentabilidade: Análises de três Regiões do Brasil. Sustentabilidade em Debate, [s.l.], v. 6, n. 2, p.228-248, 31 ago. 2015. Editora de Livros IABS. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18472/sustdeb.v6n2.2015.14975>. Acesso em: 24 jun. 2017.

113 CASTRO, Raifran Abidimar de; CASTRO, Edna Maria Ramos de. As Monoculturas e a Sustentabilidade:

Análises de três Regiões do Brasil. Sustentabilidade em Debate, [s.l.], v. 6, n. 2, p.228-248, 31 ago. 2015. Editora de Livros IABS. p. 234. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18472/sustdeb.v6n2.2015.14975>. Acesso em: 24 jun. 2017.

Esse último sentiu ainda mais os efeitos da crise, por ser destinado à fabricação do ferro-gusa nas siderúrgicas maranhenses, setor que sofreu de maneira mais concreta114.

Ainda em conformidade com Castro e Castro, há quem defenda que todo o investimento público nas três monoculturas traga um retorno social para as comunidades que se localizam em seus entornos. Mas, como demonstrado no Gráfico 6, essas culturas refletem os interesses diretos de grandes empresas internacionais, nem sempre gerando modificações concretas ou positivas nas estruturas em seu entorno115.

Paradoxalmente, entre as soluções apontadas para a crise econômica, está o reforço do papel de fornecimento de produtos agrícolas pelo Brasil no mercado global, a exclusão de direitos trabalhistas, previdenciários e de parte da assistência social, e a manutenção de riquezas pela elite dominante em detrimento do empobrecimento da população. Soluções essas que colocam a população e o meio ambiente brasileiro em situação de grade vulnerabilidade. Fica a ponderação de que a recuperação de uma crise econômica talvez exija soluções mais complexas.

Quanto à questão social, não se pode ignorar que grande parte das lavouras monocultoras possui elevado grau de mecanização, não gerando tantos empregos ou gerando empregos precários (são recorrentes denúncias sobre usinas e produtores que tratam trabalhadores em verdadeiros regimes de escravidão moderna). Como pondera Gandhi, “não há tecido que seja belo se ele causa fome e miséria”. Ou seja, sem causar o mínimo de inclusão qual o custo social deste desenvolvimento que se propõe a ser sustentável?

Ignacy Sachs aponta como seria a melhor forma de inclusão social dos pequenos agricultores: primordialmente disponibilizando a biotecnologia moderna aos pequenos fazendeiros, capacitando-os a participarem da segunda Revolução Verde. Tal atitude não é em si só suficiente, mas exige uma série de políticas complementares (acesso justo à terra, ao conhecimento, ao crédito e ao mercado, e à educação rural). Ademais, são necessários esforços direcionados em favor do desenvolvimento de uma química verde, como complemento ou até como substituto pleno da petroquímica, trocando energia fóssil por biocombustíveis116.

114 CASTRO, Raifran Abidimar de; CASTRO, Edna Maria Ramos de. As Monoculturas e a Sustentabilidade:

Análises de três Regiões do Brasil. Sustentabilidade em Debate, [s.l.], v. 6, n. 2, p.228-248, 31 ago. 2015. Editora de Livros IABS. p. 234. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18472/sustdeb.v6n2.2015.14975>. Acesso em: 24 jun. 2017.

115 Ibidem, p. 233. 116

Na esteira do que mencionou Sachs, alguns estudiosos argumentam que diversas alternativas estão em desenvolvimento para incentivar a transição para um setor de transportes de baixo carbono, os biocombustíveis avançados, tais como o etanol de cana-de-açúcar e o etanol celulósico ou de segunda geração, representam uma solução de mais rápida implementação por sua elevada compatibilidade com os veículos atuais (flex-fluels) e a infraestrutura de distribuição e abastecimento energética. Artur Milanez também menciona a superação definitiva da equivocada polêmica “biocombustíveis x alimentos” por meio da utilização de resíduos agrícolas e urbanos como fonte de matéria-prima, entretanto tal superação não é uma realidade no todo brasileiro117.

Como visto, são muitos argumentos que põem em xeque a sustentabilidade dos biocombustíveis. Entretanto, ainda há uma intensa defesa dos biocombustíveis, incluindo os agrocombustíveis, como opção sustentável para compor nossa matriz energética em percentual crescente. Mas quais os argumentos utilizados para tanto? Seguem, agora, breves aspectos técnicos para melhor entendimento desta defesa.

No que concerne à produção de etanol, essa apresenta como fatores ambientalmente positivos: a absorção de CO2 pelas plantações de cana-de-açúcar; a alta potencial energético

comparativamente a outros biocombustíveis, assim como uma energia mais eficiente118. Quanto à produção de biodiesel, figuram como fatores positivos: energia renovável, constituída de carbono capturado por meio da fotossíntese vegetal, ou pelo anabolismo dos animais, na produção de gorduras; alternativa econômica ao combustível de origem fóssil; na sua combustão gera apenas água e gás carbônico; potencial poluente inferior ao óleo diesel fóssil porque não possui em sua estrutura compostos sulfurados, não gerando, portanto, compostos secundários sulfurados, altamente contaminantes da atmosfera terrestre119.

117 MILANEZ, Artur Yabe et al. O Acordo de Paris e a transição para o setor de transportes de baixo carbono: o

papel da Plataforma para o Biofuturo. BNDES Setorial: biocombustíveis, Rio de Janeiro, n. 45 , p. 285-340, mar. 2017. Disponível em: <https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/11756>. Acesso em: 20 maio 2017. p. 289.

118 JANK, Marcos Sawaya; NAPPO, Marcio. Etanol da cana-de-açúcar: uma solução energética global sob

ataque. In: ABROMOVAY, Ricardo (Org.). Biocombustíveis: A energia da controvérsia. São Paulo: Editora SENAC, 2009, p. 19-57.

119 Ainda a respeito do biodiesel: contribui para a geração de empregos no setor primário (agricultura familiar),

pode ser utilizado como óleo vegetal ou ser transformado em combustível; reduz de custos de produção agrícola, já que o óleo vegetal não necessita de transporte por longas distâncias, nem recolhe impostos; é um excelente lubrificante, aumentando consideravelmente a vida útil do motor; possui mais cetanos que o óleo diesel, oferecendo maior torque ao motor a combustão; é um potencial gerador de trabalho e renda para o homem do campo, e, por conseguinte, potencial minimizador do êxodo rural, pois agrega valor à cadeia agrícola. [NODARI, Rubens Onofre. Sobre os biocombustíveis: impactos, benefícios e alternativas. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato. Biocombustíveis: Fonte de energia sustentável? Considerações jurídicas, técnicas e éticas. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 51-67.

Tecnicamente, portanto, há uma grande viabilidade dos biocombustíveis enquanto fontes de energia limpa, mas devem ser observados os gargalos de sustentabilidade (os pontos controversos mencionados acima), de forma que todas as fases das suas cadeias produtivas obedeçam a critérios técnicos planejados ambientalmente e socialmente, para que o potencial de sustentabilidade não se torne apenas mero discurso retórico de proteção ambiental, e que no final utilizem-na para privilegiar alguns poucos em detrimento da maioria, via políticas públicas distorcidas.

Conforme visto, a produção de biocombustíveis está intimamente ligada à questão ambiental; por sua vez, o Direito ao meio ambiente positivado na Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, carrega em sua essência o direito intergeracional. Por tal razão, o capítulo 3 se debruçará sobre aspectos relativos à justiça intergeracional, correlacionando-a com a produção de biocombustíveis.

3 BIOCOMBUSTÍVEIS: A IMPORTÂNCIA DA PRODUÇÃO NACIONAL SOB O