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Boa-fé Objetiva como Cláusula Geral

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 39-47)

2.3 Boa-fé objetiva no Brasil

2.3.1 Boa-fé Objetiva como Cláusula Geral

O Código Civil de 2002 tem como mérito a utilização de cláusulas gerais na positivação da boa-fé objetiva como regra de conduta. A sua abertura semântica, com conceitos indeterminados, permite uma maior liberdade na interpretação e aplicação do referido princípio no caso concreto.

Essa configuração, decorrente da influência do culturalismo defendido por Miguel Reale (2002), permitiu a ruptura do ultrapassado modelo positivista clássico até então vigente. A técnica das cláusulas gerais permite a constante comunicação entre os valores e a norma, graças à cultura e à experiência jurídica da convivência do homem em sociedade. O culturalismo permitiu a interpretação e aplicação da lei considerando os valores sociais da ética, solidariedade e justiça social.

Para o culturalismo o Direito é um bem cultural e a norma decorre da concreção de fatos e valores e essa condensação é dinâmica, relacionada às experiências humanas do convívio em sociedade. A norma decorre da experiência jurídica que vai se formando e evoluindo em virtude dos dados culturais, daí a

conclusão que a essência do Direito é necessariamente valorativa e, portanto, cultural.

A nova metodologia proposta por Miguel Reale através do CC altera a compreensão do fenômeno jurídico, que deixa de se basear apenas em dados fáticos, para considerar valores, que direcionam o exame dos fatos sob a ótica da ética, da solidariedade, justiça e lealdade.

Ao positivar o valor da boa-fé objetiva, foi possível conectar o Código Civil com a Constituição Federal e seus princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, permitindo uma maior normatividade das diretrizes constitucionais.

Nesse contexto, a grande importância do culturalismo foi a sua influência no CC que permitiu a positivação de valores e a mudança de paradigmas, a exemplo dos novos ditames da função social do contrato e da boa-fé objetiva e, para assegurar a efetividade desses valores no campo das relações obrigacionais, foi necessária a utilização das cláusulas gerais.

Assim, partindo do culturalismo e da tridimensionalidade do Direito, foge o Código Civil da unidade sistemática fechada em que se fundava a antiga codificação de 1916, partindo para a ideia de um sistema aberto para as modificações da realidade, e mais completo,28 com a inserção de cláusulas gerais e conceitos

jurídicos indeterminados.

O CC, portanto, rompe em definitivo com as ideologias dos códigos oitocentistas, de que era fruto o CC/16, deixando para trás o modelo fechado à vivência social e apego à precisa definição dos institutos jurídicos. Surge, desse modo, a nova codificação, pautada noutros valores, inspirada na Constituição do ponto de vista técnico-legislativo, com a introdução de situações jurídicas abertas. E, para atender a estes intentos, funda-se a nova ordem jurídica privada em três princípios vetores, que orientam a leitura e interpretação de todo o sistema, quais sejam: socialidade, eticidade e operabilidade.

28 A respeito da inauguração de um sistema mais aberto e completo com o novo código civil, esclarece Gerson Luiz Carlos Branco (2002, p.55): “Completo porque as condutas que foram vedadas por algum „suporte fático em abstrato‟ ou por algum comando que não contenha previsão de consequência jurídica expressa encontram como resultado primeiro a nulidade do negócio jurídico, com todos os possíveis efeitos que as nulidades provocam. Por outro lado o sistema fica aberto para regular condutas que não foram e não podiam ser previstas em qualquer dispositivo legal. Se o negócio jurídico tiver por fim fraudar imperativo de lei, ainda que o objeto seja lícito e que em si não haja qualquer ilicitude, tal ato será nulo”. [grifos do autor]

O novo CC veio num momento de constitucionalização do direito privado, ultrapassando a visão estática e encerrado em si mesmo, que vigia no antigo diploma substantivo. Nesta perspectiva, com a Constituição como ápice do sistema, deve o CC estar conformado e aplicado segundo os ditames constitucionais. Sobre esta nova orientação hermenêutica, refere-se Paulo Luiz Netto Lôbo (2007, p.22):

A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição, segundo o Código, como ocorria com frequência. [...]

A mudança de atitude também envolve uma certa dose de humildade epistemológica. O direito civil sempre forneceu as categorias, os conceitos e classificações que serviram para a consolidação dos vários ramos do direito público, inclusive o constitucional, em virtude de sua mais antiga revolução (o constitucionalismo e os direitos públicos são mais recentes, não alcançando um décimo do tempo histórico do direito civil). Agora, ladeia os demais na mesma sujeição aos valores, princípios e normas consagrados na Constituição. Daí a necessidade que sentem os civilistas do manejo das categorias fundamentais da Constituição. Sem elas, a interpretação do Código e das leis civis desvia-se de seu correto significado.

Importa salientar, ainda, que o código civil não se resume a matéria civil. A complexidade das relações sociais exige, atualmente, a coexistência de “minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil” (LÔBO, 2007, p.26). Assim, gozando desta natureza multidisciplinar, tem-se os direitos do consumidor, o direito da criança e dos adolescentes, dentre outros.

Para que se alcance esta função multidisciplinar, portanto, surge um novo código que “[...] tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extra-jurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais” (MARTINS- COSTA, 2011)29.

Esta nova concepção traz consigo os princípios que orientam as normas jurídicas expostas no Código Civil, que devem ser analisados sob a luz da socialidade, eticidade e operabilidade.30 Para José Augusto Delgado (2003, p.170),

29 MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/martins1>. Acesso em: 01 out 2011.

30 É esta a intenção que deixa Miguel Reale, Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, conforme mensagem de exposição de motivos do Novo Código Civil: “Se se quer um Código Civil que seja expressão dos valores da comunidade, mister é o concurso de representantes

“é inconcebível direito sem ética, direito sem conteúdo de socialidade, direito sem força de operosidade e direito que não tenha objetivo de praticidade em menor tempo possível”.

O princípio da socialidade altera o paradigma individualista do CC/16, passando a privilegiar o homem como ser social no centro do sistema, voltando-se para a promoção da dignidade da pessoa humana – de todas as pessoas –, vale dizer, abraçada à solidariedade social, fundamento e objetivo da ordem constitucional, respectivamente. Enfatiza esta preocupação Rodrigo Reis Mazzei (2006, p.27):

Na verdade, passa o indivíduo a ser visto como célula da sociedade e se busca preservar um conteúdo mínimo de proteção nas relações privadas, justamente em razão da necessidade de proteção à dignidade de cada partícipe da ciranda social.

A socialidade instrumentaliza-se no CC, enquanto concretizadora da solidariedade social, por meio, principalmente, da função social da propriedade e do contrato. Pautando-se no paradigma da socialidade, evidencia-se que, hoje, o contrato pode ser concebido como um acordo de vontades com repercussão social, com núcleo na solidariedade recíproca. Esta solidariedade deixa implícita a vedação do contrato de prejudicar terceiros, ou mesmo um prejuízo coletivo. Vê-se, então, que esta finalidade social do contrato não pode gerar efeitos danosos à coletividade, surgindo, assim, as facetas da função social do negócio jurídico, que impede seja este prejudicial a terceiros, prejudicial à coletividade, bem como não podem afetar negativamente contratos alheios.

Outro vetor trazido pela sistemática do código civil é a operabilidade, a qual busca ser de fácil compreensão, aplicação e execução de suas normas. Nesta

dos distintos “campos de interesse”, num intercâmbio fecundo de idéias. Para tanto, todavia, requer- se espírito científico, despido de preconceitos e vaidades, pronto a reconhecer falhas e equívocos, mas sempre atento para discernir o que representa apenas pretensões conflitantes com as necessidades coletivas.[...] Essa unificação, inclusive no tocante à linguagem, tinha, é claro, valor provisório, tendo por escopo fornecer a primeira e indispensável visão de conjunto, o que importou a eliminação de normas porventura conflitantes, bem como a elaboração de outras destinadas a assegurar ao Código o sentido de “socialidade” e “concreção”, os dois princípios que fundamentalmente informam e legitimam a obra programada. Não se compreende, nem se admite, em nossos dias, legislação que, em virtude da insuperável natureza abstrata das regras de direito, não abra prudente campo à ação construtiva da jurisprudência, ou deixe de prever, em sua aplicação,

valores éticos, como os de boa-fé e equidade” (Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/senadores/senador/fatimacleide/Educacao/Codigocivil.pdf>. Acesso em 20 nov. 2011).

medida, objetiva-se alcançar a concreção do direito por meio de fácil enunciação e aplicação das normas dispostas no diploma civil, evitando-se embaraços e dúvidas interpretativas, a fim de possibilitar meios de pacificação social (MAZZEI, 2006).

Nota-se que o texto do CC pautou-se na tendência da simplicidade, a fim de permitir, com maior facilidade, a interpretação e aplicação do Direito Civil, tornando possível a sua maior efetividade e, com isso, maior concretude de suas normas. Este objetivo foi alcançado pela utilização de cláusulas gerais, conceitos abertos e dinâmicos, que possibilitaram a incorporação e solução de problemas de maneira constante.

A eticidade, como terceiro princípio enunciativo do Código Civil, tem amplo sentido, correspondendo à orientação norteadora realizada pelos critérios éticos (boa-fé, equilíbrio na relação jurídica etc.) e à possibilidade do julgador poder buscar uma decisão mais justa e equitativa (MAZZEI, 2006). Exige, ainda, que as condutas humanas sejam pautadas segundo os ditames da equidade, boa-fé e probidade, constituindo-se estas orientações como verdadeiros deveres jurídicos positivos. É como sustenta Judith Martins-Costa e Gerson Branco (2002, p.133):

[...] a determinação de “valorização dos pressupostos éticos na ação dos sujeitos de direito, seja como consequência da proteção da confiança que deve existir como condição sine qua non da vida civil, seja como mandamento de equidade, seja, ainda, como dever de proporcionalidade.

A boa-fé como decorrência da eticidade espalha os seus efeitos por todo o diploma civil, constituindo-se como cláusula geral do sistema, pautada na confiança e lealdade como norma de conduta e, portanto, também determinadora de deveres jurídicos e limitadora de direitos subjetivos.

Ao lado dos princípios norteadores do novo diploma civil, na busca para que este tenha a capacidade de ser um sistema móvel e duradouro,31 capaz de atender aos anseios e mudanças da complexa sociedade, foi necessária a utilização de cláusulas gerais em seu texto.

31 Neste contexto, as palavras do Senador Josaphat Marinho, no relatório final do projeto do Código Civil, merecem destaque: ”Em verdade, a prudência, se aconselha o prosseguimento do trabalho legislativo, também recomenda proceder-se com espírito isento de dogmatismo, antes aberto a imprimir clareza, segurança e flexibilidade ao sistema em construção, e portanto adequado a recolher e regular mudanças e criações supervenientes. O raciocínio prudente

Como ressalta Miguel Reale,32

[...] o resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juízes.

Apesar das semelhanças que permeiam os institutos da cláusula geral e conceito jurídico indeterminado, estes não se confundem. Os conceitos jurídicos indeterminados apresentam-se com conteúdo vago, mas essa imprecisão situa-se apenas no antecedente da norma, o que lhes permite serem aplicados numa variedade maior de casos. A sua consequência, contudo, já vem expressa e determinada em lei, a exemplo do artigo 927 do CC.

Anotando esta diferenciação, encerra Judith Martins-Costa (2009, p.326- 327):

[...] os conceitos formados por termos indeterminados integram, sempre, a descrição do “fato” em exame com vistas à aplicação do direito. Embora permitam, por sua vagueza semântica, abertura às mudanças de valorações (inclusive as valorações semânticas) – devendo, por isso, o aplicador do direito averiguar quais são as conotações adequadas e as concepções éticas efetivamente vigentes, de modo a determiná-las in concreto de forma apta -, a verdade é que, por se integrarem na descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa. [...] O caso é, pois, de subsunção. Não haverá, aí, “criação do direito” por parte do juiz, mas apenas interpretação.

As cláusulas gerais podem ser vistas como “uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado”. Ocorre, na situação enunciada pela cláusula geral uma “indeterminação legislativa em ambos os extremos da estrutura lógica normativa” (DIDIER JR., 2011, p.02). Funcionariam, assim, as cláusulas gerais como “janelas abertas” para a mobilidade cotidiana ligando as normas jurídicas e as situações concretas.

32 REALE, Miguel. A boa-fé objetiva no Código Civil. Disponível em: <http://miguelreale.com.br/>. Acesso em: 05 set. 2012.

Nas palavras de Judith Martins-Costa e Gerson Branco (2002, p.118-119):

Estas “janelas”, bem denominadas por Irti de „concetti di collegamento‟ com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais, técnica legislativa que conformam o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, codificado, de princípios valorativos ainda não expressos legislativamente, de standards, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretrizes econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo.

Assim, têm as cláusulas gerais o papel principal de dar mobilidade ao ordenamento jurídico, deixando de lado a ideia de normas fechadas e encerradas apenas em uma hipótese fática. Extrai-se do contexto que o legislador intentou, na realidade, que o próprio juiz preenchesse o sentido da lei, devendo extraí-lo de acordo com os princípios constitucionais e valores sociais, situação que se contrapõe com a maioria das normas legais que encerram a técnica da casuística, na qual há exata tipificação da conduta e sua consequência imediata.

Apesar da abertura semântica que contém as cláusulas gerais, não significa que elas sejam hábeis a responder todos os problemas. Na verdade, como seu efeito jurídico é indeterminado, dependerá, para a sua aplicação nos mais variados casos, da construção jurisprudencial pautada na experiência, bom senso e precedentes.

Contrariamente às normas constitucionais, que muitas vezes dependem de normas complementares para dar sentido a determinados termos e dotar de eficácia plena a regra, as cláusulas gerais permitem o seu esclarecimento e solução de problemas, não apenas pela colmatação legislativa, mas também pela via da construção jurisprudencial.

Como bem lembra Judith Martins-Costa33 (2011):

O objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes objetivamente vigorantes em

33 MARTINS-COSTA, Judith.

O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/martins1>. Acesso em: 01 out 2011.

determinada ambiência social. Em razão destas características esta técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial, e não legal.

Nota-se, diante da necessidade de construção jurisprudencial do sentido e alcance das cláusulas gerais, que houve avanço do seu poder criativo que, porém, não é ilimitado. Isto porque não poderá o julgador pautar-se unicamente no seu íntimo para fundamentar a decisão judicial em que se utilizou de alguma das normas abertas. Deverá o julgador, no caso, seguir o norte dos precedentes judiciais para a definição, ainda que larga, do conceito mais preciso para aquela cláusula aberta, que será extraído do sentido prevalente na sociedade, situação que exige o necessário conhecimento da comunidade em que vigora a norma a ser aplicada. Será decisivo, portanto, para alcançar a legitimidade da decisão judicial, que haja o pré-entendimento, que “frente a frente, coloca a via desejável, face ao estádio juscultural disponível a e a realidade da insuficiência do sistema” (MENEZES CORDEIRO, 2011a, p.1266).

Seria correto afirmar, destarte, que as cláusulas gerais se apresentam como verdadeiras “células-tronco dos princípios constitucionais e dos valores observados pela sociedade, pois permitem que esses princípios e valores assumam a forma que se mostre mais adequada ao caso concreto onde se dará a sua aplicação” (DANTAS JÚNIOR, 2007, p.98).

Nesse sentido, conclui-se que a boa-fé objetiva se enquadra como princípio e verdadeira cláusula geral do sistema, sendo tarefa do julgador avaliar se esta ou aquela conduta se amolda dentro do espectro de sentido e alcance da boa-fé objetiva.

Assim, graças a essa abertura decorrente da técnica das cláusulas gerais se permitiu a efetiva concretização da boa-fé objetiva em todas as fases da relação contratual e, seguindo essa diretriz, viabiliza-se a consagração das regras que direcionam os sujeitos ao comportamento ético, leal e solidário, a exemplo da proibição do venire contra factum proprium, que tem como foco a tutela da confiança.

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 39-47)