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Horas extras decorrentes da redução de intervalo – previsão

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 179-183)

4 O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E OS DIREITOS

5.4 O Venire no direito coletivo

5.4.3 O venire na solução de conflitos coletivos

5.4.3.3 Proibição do comportamento incoerente com as Normas

5.4.3.3.1 Horas extras decorrentes da redução de intervalo – previsão

Se estabelecido, em acordo coletivo, a redução do intervalo intrajornada, incorre em venire o sindicato que posteriormente ajuíza uma ação, na condição de substituto processual, para pleitear horas extras sob a alegação de que o referido pacto é ilegal e não produz efeitos.

No julgamento da Reclamação Trabalhista de nº 0000598- 17.2010.5.04.0761, se analisa e debate a situação de uma empresa que, após alguns anos, de forma contrária à vontade do sindicato obreiro, resolve alterar a

cláusula normativa referente ao intervalo intrajornada, ampliando-o para fixar em 01 hora diária, e é surpreendida com uma ação pleiteando horas extras, decorrentes da supressão do intervalo referente ao período de vigência do acordo que assim previu.

A situação se agrava quando, em momento anterior, o mesmo sindicato ajuíza uma primeira reclamação trabalhista, objetivando a manutenção da jornada, pretendendo impedir a empresa de aumentar o intervalo para 01 hora.

Após o resultado negativo da liminar pleiteada na primeira demanda o sindicato desistiu da ação e, meses depois, ajuizou outra reclamação contra a empresa, dessa vez pleiteando horas extras, sob a alegação de que a redução praticada é ilegal.

Essa postura, inegavelmente desleal, foi corretamente enquadrada como contrária à boa-fé objetiva e rechaçada pela sentença de piso, com base nos seguintes fundamentos:

O moderno Direito Privado, influenciado pelo princípio da eticidade que rege o atual Código Civil, consagra como expressão desses deveres a máxima romana “venire contra factum proprium”, que nada mais é do que a obrigação legal de que os atos jurídicos sejam pautados pela coerência com os comportamentos anteriormente assumidos, de modo a não defraudar expectativas justificadamente geradas.

[...]

Manifestando o Sindicato insurgência quanto à possibilidade de a ré modificar o intervalo intrajornada de 45min, praticado há longa data, aviando judicialmente essa irresignação, não pode, logo após requerer desistência dessa ação, opor nova reclamatória com objeto absolutamente contrário à pretensão inicial.

O comportamento do autor – quando ajuizou a demanda anterior, em que requeria a manutenção do intervalo reduzido- gerou na ré uma determinada expectativa, mais à frente frustrada com o ajuizamento da presente ação.

No caso concreto, a desistência da primeira ação, com a interposição da presente, caracteriza ato ilícito por abuso de direito, por violar a boa-fé objetiva (artigo 187 do CC) e por traduzir conduta contraditória (venire contra factum proprium).

Temos, assim, que a violação à lealdade restou evidente no comportamento contraditório que caracteriza a quebra da boa-fé objetiva.

Inconformado com a decisão, o Sindicato autor recorreu ao TRT da 2a

Região, que convencido da possibilidade jurídica da ação, mesmo condenando a postura do sindicato, admitiu o apelo, reformando a sentença de 1o grau, com o seguinte fundamento:

Nesse contexto, diversamente do entendimento exarado na sentença, entendo que o Sindicato, na qualidade de substituto processual, pode, eis que nada existe legalmente que o impeça, ingressar com uma ação solicitando um direito, posteriormente pedir a desistência da referida ação, seja porque convencido de ser a mesma equivocada ou pela inutilidade do provimento final em face do indeferimento da liminar pretendida, ingressando, posteriormente, com outra demanda versando tese oposta.

Diante disso, apenas está o Sindicato reclamante a exercitar o seu direito constitucional de ação, assegurado pelo art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal, não havendo falar, por conseguinte, em conduta ilícita ou abusiva por parte do recorrente. Destaco, como já referido anteriormente, que o autor não questiona a existência ou a validade da cláusula normativa que autoriza a redução do intervalo intrajornada, mas, sim, busca o pagamento de horas extras pela aplicação do art. 71, § 4o, da CLT, discutindo tão-somente a eficácia das normas coletivas diante dos dispositivos legais que regulamentam a matéria.

Assim, no entender desta Desembargadora Relatora, tal situação, apesar de reprovável, não chega a acarretar afronta ao princípio da boa-fé.

Esse caso concreto é de inegável violação à boa-fé objetiva, haja vista a reprovável postura desleal do sindicato, se encaixando perfeitamente como exemplo de venire, mais ainda, como hipótese de estoppel, retratado no item 3.6.1.

Além de contar com o amparo desses dois institutos, que se distinguem apenas pelo seu alcance, pois o segundo se restringe a proibir contradições decorrentes de ações judiciais, seria possível ainda socorrer-se à figura do tu quoque, que também se pauta na boa-fé objetiva e traduz a proibição do exercício de um direito, em razão da atuação abusiva daquele que violou a norma e que pretende beneficiar-se desse ato.

Por outro lado, há de se analisar que efetivamente está em discussão o direito de ação assegurado pela Carta Magna e se esse exercício pode sofrer limitação em determinado caso concreto, mesmo tratando-se de uma hipótese típica de venire.

Como destacado pela decisão regional, a postura do sindicato foi “reprovável”, porém, mais do que isso, foi incoerente com sua conduta inicial – celebração de um acordo coletivo e também com o ajuizamento de uma ação pleiteando a manutenção da cláusula. Esses dois atos se caracterizam como factum proprium, pois criaram na empresa uma legítima expectativa de que o Sindicato jamais ajuizaria uma ação alegando a ilegalidade de um pacto que ele próprio celebrou e que defendeu judicialmente.

Seja como venire, seja como estoppel, porque a contradição se materializou no curso de um processo judicial, a incoerência é manifesta e inequívoca, contrariando os ditames da boa-fé objetiva. Isso sem prejuízo de enquadrar esse comportamento como torpe, já que o sindicato pretende se beneficiar da própria torpeza ao defender em juízo que a cláusula que criou é contrária à lei. Nesse sentido, reforça o entendimento a máxima do tu quoque que considera como exercício abusivo de direito a tentativa daquele que dá causa à violação da norma e depois tenta tirar vantagem dessa situação.

Essas três figuras respaldadas pelos institutos da boa-fé objetiva e do abuso de direito impõe, como demonstrado nesse trabalho, limites ao exercício de direitos subjetivos – item 3.5.2.

Judith Martins-Costa (2004, p.114-115) aponta que o venire se assemelha à figura do Verwirkung, na medida em que os dois institutos têm como prioridade a tutela da confiança nas relações jurídicas e ressalta que, para assegurar esse propósito o judiciário tem aplicado diferentes soluções, “mas cujo efeito geral consiste na paralisação do exercício de um direito como meio sancionatório da deslealdade e da torpeza.”

Assim, com base nos argumentos defendidos nesse trabalho, é possível concluir que, mesmo o direito de ação pode sofrer limitação se exercido abusivamente, como ocorreu nesse caso concreto, revelando-se equivocada a decisão do Tribunal que reformou a sentença de piso, que acertadamente rejeitava a pretensão do sindicato.

Já no julgamento da Reclamação Trabalhista 0000171-97.2011.5.05.0036, movida por um sindicato, a Juíza da 36a Vara do Trabalho de Salvador, aplicando a máxima do nemo potest venire contra factum proprium, julgou improcedente a ação em que o sindicato, na qualidade de substituto processual, pleiteava diferenças salariais com base no princípio da isonomia.

A ação estava calcada em uma cláusula do acordo coletivo celebrado entre a reclamada e o sindicato, que estabelecia diferentes reajustes para os empregados de cargos distintos da mesma empresa. Ou seja, o mesmo sindicato que negociou e concordou com o tratamento diferenciado para determinados empregados veio, posteriormente, exigir diferenças salariais, alegando que essa distinção era ilegal.

Na análise do caso concreto em apreço decidiu-se que:

Em relação ao princípio da isonomia, a pretensão não pode ser acolhida. Neste sentido tem reiteradamente decidido a Corte Regional, com arrimo no princípio da boa-fé objetiva segundo a fórmula latina do venire contra factum propium. Tal princípio é consectário da repressão ao abuso de direito, vedando o comportamento contraditório de alguém, que em oposição ao próprio proceder procura obter vantagem.

A decisão aplicou corretamente a diretriz extraída do instituto jurídico objeto deste trabalho. O segundo comportamento do sindicato, revelado através de uma ação pautada no princípio da isonomia, se isoladamente analisado, seria um ato lícito, pautado no exercício de um direito. Contudo, quando examinado em conjunto com a primeira conduta, a celebração do acordo coletivo que teria ensejado a suposta discriminação se revela desleal e inteiramente contraditória.

Quando assinou o acordo coletivo, o sindicato criou uma legítima expectativa de que o conflito estava solucionado, a ação posterior, por isso, frustrou a confiança depositada, merecendo tutela jurídica, pautada justamente na função limitativa de direitos subjetivos da boa-fé objetiva, de onde se insere a proibição do comportamento contraditório.

5.4.3.3.2 Cumprimento espontâneo de norma coletiva e sua posterior

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 179-183)