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Compreensão do brocardo – delimitação

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 60-63)

A compreensão exata deste instituto será analisada neste capítulo, destacando-se sua história, seus fundamentos, espécies e requisitos. O venire contra factum proprium está inserido dentre as espécies de condutas inadmissíveis, que impõem restrições ao exercício de direitos aparentemente lícitos.

A expressão significa a oposição de “vir contra o fato próprio”, mas na compreensão jurídica significa agir contra seus próprios atos. Trata-se da proibição ao comportamento contraditório, numa sequencia lógica de dois atos encadeados. Um segundo ato – o venire - se mostra incoerente e incompatível (contraditório) com o primeiro – o factum proprium -, embora ambos, em linha de princípio, aparentem licitude.

Judith Martins-Costa (2004, p.116) reconhece que, embora já aplicado pela jurisprudência brasileira, a proibição do comportamento contraditório recebeu com o código civil de 2002 “um renovado impulso que carece, contudo, para tornar-se operativo, da compreensão acerca da “ilicitude de meios” como forma de ilicitude objetiva, derivada do exercício inadmissível de posição jurídica”.

Sob essa ótica, também é considerado ilícito o exercício de um direito se a prática desse ato se mostrou incoerente com um comportamento anterior, que tenha criado na contraparte uma expectativa de que um determinado comportamento não ocorreria. Assim, se o meio encontrado para o exercício de um direito é contrário à boa-fé, é abusivo e, portanto, ilícito.

Nesse contexto, determinada conduta que seria considerada lícita, se isoladamente analisada, não será tolerada pelo Direito em dadas circunstâncias, pois é incoerente em relação a uma conduta anterior a ela ligada e construída por uma relação de confiança. Objetiva-se, portanto, a proteção da boa-fé, na sua vertente limitativa do exercício dos direitos subjetivos.

A ideia albergada pela locução do venire contra factum proprium revela o exercício de uma posição jurídica contrária a um comportamento anterior que, na ótica de Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.745), se refere a “dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém contrariado pelo segundo.”

O objetivo da proibição do venire contra factum proprium é impedir comportamentos contraditórios, ainda que tais comportamentos sejam lícitos se isoladamente considerados, quando a atuação de um dos sujeitos da relação jurídica cria expectativas e confiança legítimas na parte adversa, que não poderá ser surpreendida pela incoerência.

Atento às proibições subjacentes ao venire contra factum proprium, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a) esclarece que o objetivo principal da ordem jurídica não é a manutenção do comportamento inicial ou dos seus efeitos, mas a tutela do sujeito que confiou que a incoerência não ocorreria.

Há que se esclarecer que essa diretriz não impede apenas o comportamento contraditório de modo a manter a coerência. Seu principal propósito é impedir a violação das expectativas despertadas na outra parte por aquele primeiro comportamento do sujeito envolvido na relação, tutelando a confiança legítima, decorrente da esperança que se incutiu na contraparte a partir da primeira conduta.

Portanto, “a incoerência em si mesma [...] se mostra irrelevante, apenas interessando as suas consequências quanto ao outro sujeito, vale dizer, se houve, ou não, o surgimento da confiança” (DANTAS JÚNIOR, 2007, p.294). Ausentes tais expectativas e, portanto, distante tal atentado à legítima confiança capaz de gerar prejuízo a outrem, não há razão para que se imponha a quem quer que seja coerência com um comportamento anterior.

Pablo Stolze Gangliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p.121) revelam que “parte-se da premissa de que os contratantes, por consequência lógica da confiança depositada, devem agir de forma coerente, segundo a expectativa gerada por seus comportamentos”.

Importa frisar que, para a caracterização do venire, não importa a investigação de culpa, uma vez que a atuação decorre da violação da boa-fé objetiva, exigindo-se para tanto, apenas, que haja o desrespeito à legítima confiança incutida na contraparte. Fica configurado, assim, que a proibição do venire contra factum proprium passa a exigir dos sujeitos de uma relação obrigacional um maior cuidado com as suas posturas que possam criar uma legítima expectativa.

É interessante notar, como pondera Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011b, p.283), que a “proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra pacta sunt servanda”. Desta forma, pode-se apontar que o brocardo latino do pacta sunt servanda é reafirmado pelo princípio do venire. A diferença entre os dois institutos, entretanto, reside no foco de proteção. Enquanto no primeiro a preocupação se direciona em assegurar o compromisso firmado, o venire preocupa-se com a tutela da confiança daquele que de maneira legítima criou expectativas que foram frustradas com o comportamento contraditório.

Sabe-se, contudo, das relativizações sofridas pela máxima do pacta sunt servanda. Segundo a teoria da imprevisão, todavia, como os negócios jurídicos têm de ser celebrados e executados de boa-fé, não se permitirá uma conduta contraditória ao pacto firmado quando se violar confiança legítima depositada na contraparte, capaz de lhe gerar prejuízos, exigindo-se, consequentemente, o fiel cumprimento do contrato.

Judith Martins-Costa (2004, p.113-115) utiliza a denominação “vedação da contrariedade desleal” para definir o venire contra factum proprium, afirmando que, apesar de ser da essência humana a contradição, deve o Direito sancioná-la em

determinadas hipóteses, quando implicar “efeitos danosos na esfera jurídica alheia.” Pontua, ainda, a associação da vedação do comportamento contraditório com o princípio da boa-fé objetiva, por aquele representar um verdadeiro atentado contra as expectativas fundamentais decorrentes das “virtudes da lealdade, da legítima confiança despertada no alter e da constantia, que tornam incompatível a contradição própria com a responsabilidade jurídica”.

Essencial ressaltar que não se trata de proibição genérica de contradição. Essa, por si só, não viola o Direito. Para isso é preciso que o elemento da confiança, fruto de uma legítima expectativa, seja violado. Insuficiente, portanto, para caracterização do venire contra factum proprium, a existência simples e única de comportamentos contraditórios.

A incoerência é inerente à natureza humana e é, até certo ponto, compreensível e tolerada pelo Direito. Pode o Direito, porém, em razão da tutela da confiança inerente à boa-fé, regular o comportamento contraditório, impedindo os seus efeitos prejudiciais. A figura do venire contra factum proprium se enquadra justamente nas hipóteses em que a incoerência não é tolerada pelo Direito.

Weber (apud MENEZES CORDEIRO, 2011a, p.754) indica com precisão que:

Ninguém pode exercer um direito ou tomar uma posição jurídica com consequências, em contradição com o comportamento anterior, quando este justifique a conclusão de que não o iria fazer e ele, nessa ocasião, tenha despertado na outra parte determinada confiança.

Assim, o bem jurídico tutelado pelo venire é a confiança despertada em um sujeito, que foi surpreendido com um comportamento contraditório, desleal e, portanto, contrário à boa-fé objetiva.

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 60-63)