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Importância da lealdade nas negociações coletivas

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 169-174)

4 O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E OS DIREITOS

5.4 O Venire no direito coletivo

5.4.1 Importância da lealdade nas negociações coletivas

No direito contemporâneo e no Brasil, especialmente a partir da CF de 1988, se consagrou a importância das negociações coletivas como a melhor alternativa para solução dos conflitos trabalhistas.

Como ressalta Maurício Godinho Delgado (2005, p.1370), “a importância da negociação coletiva trabalhista transcende o próprio direito do trabalho”, pois a história revela que desde o século XIX, a exemplo do que aconteceu nos países ocidentais, a utilização desse mecanismo de solução de conflitos “influenciou, positivamente, a estruturação mais democrática do conjunto social.”

O legislador constituinte reconheceu expressamente a importância dessa modalidade autocompositiva, consagrando a validade das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7o, XXVI), permitindo a redução de salário (artigo 7o, VI) e o revezamento de turnos de oito horas (artigo 7o, XIV) através da negociação coletiva.

Por meio da negociação coletiva se obtém a solução mais adequada para os conflitos, já que a conciliação encontrada pelos interessados é a que mais aproxima as partes do estado de paz social.

O processo negocial, mais que qualquer outro, deve ser norteado pela boa- fé objetiva. Os conflitos são eternos, a luta pela melhoria de condições de trabalho é constante e a necessidade empresarial de negociação com o sindicato para superar momentos de crise é cada vez mais frequente.

A negociação é, portanto, indispensável e importante para todos os atores sociais. E para que esta seja exitosa é imprescindível assegurar o comportamento ético e leal no processo negocial. É justamente a falta de confiança que desestimula e impede a concretização de uma negociação e a falta de lealdade e ética, se toleradas, comprometem não só o processo em curso, mas os vindouros, desestabilizando as relações que precisam de harmonia para atingir seu objetivo social.

Para a solução do conflito através de uma conciliação contínua é fundamental a tutela da confiança. Se uma das partes, que teve sua legítima confiança vilipendiada, não for protegida, o futuro das negociações estará comprometido, prejudicando toda a coletividade.

Como ressalta Renato Rua de Almeida (2012, p.140), “a boa-fé objetiva, como atitude comportamental dos sujeitos da negociação coletiva, seja na fase pré- contratual, seja na fase da execução contratual, é fundamental para o bom êxito da negociação coletiva”.

Gilberto Carlos Maitro Júnior (2012, p.243) lembra que:

A relevância da boa-fé, na negociação coletiva, é tamanha que o anteprojeto de Emenda Constitucional para fim de reforma sindical, debatida no Fórum Nacional do Trabalho realizado em Brasília, em 2005, em seu art. 99, caput, traz “a conduta de boa-fé constitui princípio de negociação coletiva”.

O princípio da boa-fé objetiva se apresenta, portanto, essencial para o êxito das negociações coletivas, servindo de postulado ético a nortear as condutas das partes na solução do conflito pela via autocompositiva.

A partir dessa inafastável premissa, torna-se fácil concluir que a proibição do venire contra factum proprium também segue a mesma diretriz, funcionando como norma de conduta que deve guiar as entidades sindicais responsáveis pelo processo negocial. Não se pode tolerar que um dos sujeitos durante as tratativas assuma comportamentos incoerentes, em desrespeito à legítima confiança indispensável para o sucesso de uma negociação e na solução amigável e pacífica dos conflitos coletivos.

Uma negociação frustrada prejudica todos os envolvidos no conflito. O empregado deixa de receber salários, o empregador interrompe sua produção e a sociedade muitas vezes sofre as consequências de uma paralisação. Em razão disso, o venire e seu fundamento constitucional – o princípio da solidariedade social – apresentam-se como importantes fundamentos para fortalecer as relações na busca da paz social.

O interesse na negociação coletiva é, portanto, público e nenhum comportamento que comprometa sua concretização pode ser tolerado ou admitido pelo Direito.

Uma determinada empresa não pode, portanto, durante uma negociação, criar expectativas e adotar um comportamento contraditório, como, por exemplo, pedir um prazo para apresentar uma contraproposta e nesse ínterim demitir um grupo de trabalhadores, ou mesmo ajuizar um dissídio coletivo.

Por outro lado, age o sindicato profissional de maneira contraditória quando, em mesa de negociação, acena positivamente com relação a uma proposta de consenso e, ao apresentá-la na assembleia dos trabalhadores para aprovação, faz críticas, insuflando a realização de um movimento paredista.

No julgamento do processo nº 20001-2003-000-02-00-0, o Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região102 aplicou o instituto do venire, embora sem mencioná-lo

expressamente, quando, com base na boa-fé objetiva, deixou de acolher uma preliminar apontada na defesa que pretendia a extinção do processo sob a alegação de que o dissídio foi ajuizado no curso da negociação coletiva, porque ficou comprovado que houve, pela mesma parte, recusa em negociar. Nesse caso, ao declarar que não iria mais negociar, a empresa criou no sindicato uma legítima expectativa do encerramento das negociações e, ao alegar esse óbice para se defender, a empresa se mostrou totalmente incoerente com a conduta anterior.

Também se insere como espécie de venire qualquer comportamento que se mostre incoerente com os termos da convenção ou acordo coletivo. Assim, por exemplo, se determinado sindicato regulamenta, através de um acordo coletivo, as metas para o pagamento de uma participação nos resultados, não pode criticar ou acionar judicialmente a empresa por suposto assédio moral decorrente da cobrança excessiva de metas.

Quando os sujeitos celebram um instrumento normativo, criam, reciprocamente, uma legítima confiança de que os termos e condições estabelecidos serão respeitados. Qualquer comportamento posterior, incoerente com essa conduta inicial, que frustre essa legítima expectativa, não pode ser tolerado pelo Direito.

Nesse caso, na esfera coletiva, respalda o venire o interesse público nas negociações coletivas, pois a tutela da confiança revela-se importante, não só para corrigir uma injustiça no caso concreto, mas para assegurar o futuro das negociações, pois se não houver expectativa de que o ajuste normativo terá valor, nenhuma negociação coletiva fará sentido, retirando desse importante mecanismo de paz social o seu sentido e o valor, constitucionalmente reconhecido – artigo 7º, XXVI, da CF/88.

102 Negociação de boa-fé. Arguição que não se ajusta com o procedimento adotado. Não procede de boa-fé a parte que recusa a conciliação aceita pelo adversário e, ainda assim, insiste na alegação defensiva de não ter esgotado a negociação coletiva (AC 2003001750, DJ 08.08.2003, Relator: Des. José Carlos da Silva Arouca).

Por outro lado, permanecem os limites impostos à autonomia coletiva já consagrados na doutrina e jurisprudência. Desta forma, tratando-se de direitos indisponíveis, assim considerados aqueles amparados nas normas de ordem pública absoluta – como os dispositivos que regulam a Medicina e Segurança do Trabalho –, não se pode alegar a existência de justa expectativa, requisito fundamental para caracterização do venire.

Nesse contexto, sob a ótica do princípio da adequação setorial negociada, citado por Maurício Godinho Delgado (2005), as negociações coletivas podem se sobrepor às normas imperativas trabalhistas, desde que estabeleçam condições mais vantajosas ou que tratem de parcelas asseguradas por normas públicas relativas. Nessa segunda hipótese, o ajuste envolveria apenas parcelas revestidas de indisponibilidade relativa que, na ótica do autor, seriam, por exemplo, a modalidade de pagamento salarial, o tipo de jornada, a repercussão no fornecimento de utilidades ou ainda aquelas parcelas que por expressa autorização constitucional podem ser negociadas (redução salarial, jornada etc.).

Já os direitos revestidos por normas de ordem pública absoluta e, portanto, de indisponibilidade absoluta, não podem sofrer alteração por ajuste normativo, na medida em que constituem, de acordo com Maurício Godinho Delgado (2005, p.1400):

[...] um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico- profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (arts. 1o, III e 170, caput, CF/88).

Nesse rol estariam os direitos assegurados pela CF/88, observadas as exceções estabelecidas pela própria Carta, as normas de tratados e convenções internacionais em vigor no país, as normas infraconstitucionais regulatórias da Medicina e Segurança do Trabalho e aquelas relacionadas ao trabalho do menor e da gestante.

Com relação a essa última categoria, onde se inserem os exemplos acima citados, não se admite eventual negociação que implique redução de direitos ou proteção e, portanto, não justificam qualquer legítima expectativa necessária para caracterização do venire.

Assim, nos demais casos em que a negociação é permitida em sua amplitude, o comportamento contraditório que se mostre incoerente com a negociação coletiva concluída deve ser rechaçado, inclusive restringindo eventual exercício de direitos ou posições jurídicas.

Por outro lado, é bastante delicada a situação em que o comportamento posterior, que caracterizaria o venire, foi praticado por quem não participou da negociação que resultou no instrumento normativo, mas estava naquela ocasião legitimamente representado. Tal situação ocorreria quando algum membro da categoria agisse de modo contraditório com a conduta inicial do seu sindicato, econômico ou profissional. Nesse caso, poder-se-ia obstar o exercício de algum direito com base no venire?

Essa situação não descaracterizaria o requisito da identidade de sujeitos necessária à contextualização do venire pois, como já se sustentou no item 3.3.4, quando o sindicato legitimamente representa os membros da categoria, com os poderes deliberados em assembleia, e adota comportamento dentro dos limites de sua esfera de atuação, seguindo a diretriz do princípio da adequação setorial negociada, o comportamento inicial também vincula aqueles sujeitos que estavam representados e se beneficiaram do ato.

Na verdade, os trabalhadores se beneficiam e se sujeitam às normas e ao comportamento do sindicato porque se inserem como membros de uma categoria profissional, que não tem personalidade jurídica e por essa razão são legitimamente representadas pelo sindicato.

Nesse contexto, como revela Anderson Schreiber (2007, p.158), a doutrina civil contemporânea “já registra o exercício de pretensões e comportamentos exercitados por centros de interesses desprovidos de personalidade”, como nos casos de sociedade de fato. Em seguida conclui que, em relação ao venire, o mais relevante é que os comportamentos emanem do mesmo “centro de interesses”, sendo que, nessa situação hipotética, o sindicato está agindo em nome da categoria, cujo centro de interesses são os próprios trabalhadores.

O mesmo ocorre em relação à coerência exigida pelos empregados, membros da categoria, quando o empregador adota um comportamento contraditório em relação a uma conduta inicial que envolveu o sindicato profissional que os representa. Nesses casos, quando a confiança foi despertada em várias

pessoas que foram atingidas pela primeira conduta, a coerência pode ser exigida por qualquer uma delas, sem que isso implique a ruptura da identidade dos sujeitos.

Neste sentido, Anderson Schreiber (2007, p.157) conclui que não se pode exigir a identidade dos sujeitos passivos das condutas praticadas. Bastaria que aquele que exige a coerência “seja titular de uma legítima confiança a partir de um comportamento inicial” que foi praticado, via de regra, pelo mesmo sujeito ativo.

Assim, na esfera coletiva, o requisito da identidade dos sujeitos deve ser analisado de modo mais flexível, impedindo que o instituto deixe de ser aplicado por excesso de rigor na análise desse requisito.

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