• Nenhum resultado encontrado

DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS"

Copied!
196
0
0

Texto

(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Valton Doria Pessoa

A Incidência Do Venire Contra Factum Proprium nas Relações de

Trabalho

DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Valton Doria Pessoa

A Incidência Do Venire Contra Factum Proprium nas Relações de

Trabalho

DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito das Relações Sociais sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio João.

(3)

Valton Doria Pessoa

A Incidência Do Venire Contra Factum Proprium nas Relações de Trabalho

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito das Relações Sociais sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio João.

Aprovado em:____ de ______________________de 2013.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

___________________________________

___________________________________

___________________________________

(4)
(5)

AGRADECIMENTOS

Nenhuma etapa importante da vida profissional é concluída sem muito trabalho, muito sacrifício pessoal e sem a valiosa ajuda de pessoas que direta e indiretamente contribuíram para sua realização.

Escrever essa mensagem confere-nos a prazerosa sensação de dever cumprido e permite-nos demonstrar nosso imenso reconhecimento e gratidão.

Aqui temos a oportunidade de registrar e externar para a comunidade acadêmica nossa gratidão àqueles que foram fundamentais para a concretização deste sonho.

Muitas pessoas contribuíram para a conclusão deste projeto e fico muito satisfeito em registrar meus sinceros e inesquecíveis agradecimentos.

Inicialmente àqueles que me incentivaram a aceitar o desafio. O meu orientador, brilhante professor e advogado, Dr. Paulo Sérgio João, que também contribuiu com valiosas observações que muito enriqueceram o trabalho e teve compreensão nos momentos de dificuldade para concluir esta tese. Ao meu colega e amigo Fredie Didier Jr., que nos momentos de fragilidade sempre reforçou seu apoio e destacou a importância deste projeto acadêmico

Aos meus sócios, colegas e funcionários do escritório, que deram importante apoio nos momentos de ausência dedicados ao acompanhamento do curso e da construção da tese. Trabalhar com essa compreensão e energia tornou possível esta missão.

Às minhas colegas Flávia Muniz e Fernanda Campelo, que nos momentos cruciais me deram o apoio necessário para enfrentar o desafio, com auxílio nas pesquisas, revisões de texto e constantes discussões que permitiram firmar as conclusões expostas neste trabalho.

(6)

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar os impactos do comportamento contraditório nas relações de trabalho, a partir do estudo da boa-fé objetiva e do seu apêndice, o venire contra factum proprium – núcleo do estudo. Assume-se a contradição como inerente ao homem, passando-se ao estudo das limitações ao comportamento incoerente, como forma de proteção à justa confiança e aos meios de tutela existentes para evitar ou reparar os danos. Nesse contexto analisa-se o princípio da a boa-fé objetiva e os seus reflexos nas relações obrigacionais, especialmente na limitação ao exercício de direitos subjetivos. Em seguida, o instituto do venire é examinado nos seus requisitos e fundamentos, bem como diferenciado das demais figuras tratadas pela doutrina, relativas ao exercício abusivo de direitos, a exemplo do tu quoque e da supressio. Trata-se da base necessária para o estudo posterior quanto às consequências jurídicas da aplicação do venire na solução dos conflitos trabalhistas. O trabalho analisa ainda o conflito entre o venire e os direitos fundamentais, acerca de uma possível antinomia. A pesquisa segue abordando o venire nas relações jurídicas laborais, analisando a compatibilidade com os princípios e normas trabalhistas, a incidência nas relações individuais e coletivas e a jurisprudência. O resultado obtido com este estudo aponta no sentido de que tanto a empresa, quanto o empregado devem respeitar, em todas as fases do contrato, a confiança despertada em razão do seu comportamento inicial, propiciando que a justa expectativa criada não seja frustrada por uma conduta posterior e contraditória. O Direito do Trabalho, apesar das suas peculiaridades, não está imune à aplicação do venire contra factum proprium.

(7)

ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to examine the impact of contradictory behavior under labor law, and how it relates to objective good faith. Contradiction is viewed as inherent to human behavior, whereby the limitations to inconsistent conducts are studied as a way to protect legitimate trust. Based on the study of objective good faith, as a limiter to the exercise of rights and its various forms of protection, there follows an attempt to defend the need for fair and ethical behavior in employment relationships, wherein the venire contra factum proprium lies -- the core of this study, in the employment context. Then the requirements of, and grounds for, venire are examined, as it is set apart from other doctrines pointed out by jurists, concerning the abusive exercise of rights. This is the necessary basis for the ensuing study on the application of venire to solve labor disputes, never failing to address its delicate conflict with the fundamental rights. The research continues by addressing the venire in employment relations; by analyzing its compatibility with labor law regulations and principles; the impact on individual and collective relations; and legal precedents. The results obtained from this study indicate that both companies and employees must abide, at all stages, in a given contract, by the trust that arises out of their initial behavior, thereby ensuring that the fair expectation stemming there from is not frustrated by any subsequent and contradictory conduct. Labor Law, despite its peculiarities, is not immune to the application of the venire contra factum proprium.

(8)

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

art. Artigo

AC Acórdão

CC Código Civil

CC/16 Código Civil de 1916

CDC Código de Defesa do Consumidor CF Constituição Federal da República

CF/88 Constituição Federal da República de 1988 CLT Consolidação das Leis do Trabalho

CPC Código de Processo Civil

DES Desembargador

DJ Diário de Justiça

FGTS Fundo de Garantia por tempo de serviço Min. Ministro (a)

OJ Orientação Jurisprudencial

PDV Plano de demissão voluntária REsp Recurso Especial

RO Recurso Ordinário

RR Recurso de Revista

SDI Sessão de Dissídios Individuais SRT Secretaria de Relações do Trabalho STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

Rel. Relator

(9)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...

2 A COMPREENSÃO CONTEMPORÂNEA DA BOA-FÉ OBJETIVA... 2.1 Boa-fé objetiva e subjetiva – necessária distinção... 2.2 História da boa-fé objetiva... 2.3 Boa-fé objetiva no Brasil... 2.3.1 Boa-fé Objetiva como Cláusula Geral... 2.3.2 Boa-fé Objetiva nas fases pré e pós-contratual... 2.4 Funções da boa-fé objetiva... 2.4.1 Interpretativa e Integrativa... 2.4.2 Criadora de Deveres Anexos... 2.4.3 Limitativa do Exercício de Direitos...

3 VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM... 3.1 Compreensão do brocardo – delimitação... 3.2 História do Venire... 3.3 Fundamentos... 3.3.1 Boa-fé objetiva (ética – lealdade)... 3.3.2 Confiança... 3.3.3 Abuso de Direito... 3.4 Pressupostos... 3.4.1 Factum Proprium... 3.4.2 Venire... 3.4.3 Legítima Expectativa... 3.4.4 Identidade de Sujeitos... 3.4.5 Dano... 3.5 Consequências Jurídicas... 3.5.1 Negócio Jurídico – nulidade e celebração forçada... 3.5.2 Limitação ao Exercício de um Direito... 3.5.3 Restabelecimento da coerência... 3.6 O Venire contra factum proprium e as demais figuras limitadoras do exercício de direitos...

(10)

3.6.1 Venire X Estoppel... 3.6.2 O venire contra factum proprium como exercício tardio de um direito – VERWIRKUNG... 3.6.3 Supressio/Surrectio... 3.6.4 Tu Quoque – Torpeza... 3.6.5 Duty to mitigate the loss - Dever do credor de mitigar as próprias perdas/prejuízo... 3.6.6 Substancial Performance - Adimplemento Substancial... 3.6.7 Exceptio Doli - Exceção do dolo (Exercício Desequilibrado de Direitos)... 3.6.8 Abuso das nulidades por motivos formais ou inalegabilidade de nulidades formais... 3.6.9 Desequilíbrio do Exercício Jurídico...

4 O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E OS DIREITOS

FUNDAMENTAIS... 4.1 Dos direitos fundamentais...

4.1.1 Delimitação e Origem... 4.1.2 Dimensões de Direitos Fundamentais... 4.1.3 Perspectivas subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais... 4.1.4 Importância dos Direitos Fundamentais para o Estado Democrático de Direito... 4.1.5 Direitos Fundamentais Laborais... 4.1.5.1 Eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas... 4.1.5.2 Princípio da Máxima Efetividade... 4.2 Fundamento \constitucional do Venire – Princípio fundamental da Solidariedade Social...

(11)

5 A INCIDÊNCIA DO VENIRE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO... 5.1 Compatibilidade com os princípios e normas trabalhistas... 5.1.1 Compatibilidade com a CLT... 5.1.2 O Factum Proprium Trabalhista... 5.2 Venire contra factum proprium no direito individual... 5.2.1 Reintegração por contradição às próprias regras do PDV – Plano de Desligamento Voluntário...

5.2.2 Anulação de eleição sindical – Sindicato de modo incoerente proibiu trabalhadores de concorrer nas eleições...

5.2.3 Dispensa abusiva após transferência do empregado... 5.2.4 Empregado que alega estabilidade e rejeita oferta de reintegração no emprego... 5.2.5 Ressarcimento à empresa de despesas efetuadas – cláusula de permanência... 5.3 A diretriz do Venire nas súmulas do TST... 5.4 O Venire no direito coletivo...

5.4.1 Importância da lealdade nas negociações coletivas... 5.4.2 O venire e as greves... 5.4.3 O venire na solução de conflitos coletivos... 5.4.3.1 Recusa à negociação coletiva e o pressuposto constitucional do comum acordo para julgamento de Dissídio Coletivo... 5.4.3.2 Demissão Coletiva – garantia frustrada – reintegração... 5.4.3.3 Proibição do comportamento incoerente com as Normas Coletivas... 5.4.3.3.1 Horas extras decorrentes da redução de intervalo – previsão em norma coletiva – Ação do Sindicato... 5.4.3.3.2 Cumprimento espontâneo de norma coletiva e sua posterior impugnação... 5.5 Venire nas fases pré e pós contratuais...

(12)

1 INTRODUÇÃO

A proposta desse trabalho é analisar os impactos do comportamento contraditório desleal nas relações trabalhistas, na esfera individual e coletiva, por meio de um estudo interdisciplinar com o direito civil, mais precisamente da boa-fé objetiva.

A contradição é característica comum da natureza humana, seja pela volatilidade das opiniões em razão do decurso do tempo, pela mudança dos elementos que compõem o seu convencimento ou mesmo por força do arrependimento. A princípio, portanto, ninguém será socialmente condenado ou excluído por agir ou pensar de modo contraditório, pois é natural e tolerável que alguém eventualmente adote posturas incoerentes, desde que a conduta não tenha sido tomada de modo proposital, com o objetivo de obter vantagem, mediante má-fé, deslealdade ou dolo.

Existem também contradições que decorrem do exercício de um direito ou da prática de um ato lícito e causam danos na esfera de outro sujeito de uma dada relação jurídica. Muitas vezes um ato contraditório, se isoladamente analisado, é lícito, mas contextualmente abala a justa confiança despertada em outrem. Essa deslealdade é reprimida pelo direito, que encontrou no princípio da boa-fé um escudo axiológico que procura tutelar a legítima confiança, valorizando a ética, a lealdade e a coerência em todas as fases de um contrato.

O estudo da boa-fé objetiva está bastante disseminado na doutrina e algumas obras já contextualizam sua influência no contrato de trabalho. Essa pesquisa utiliza desse vasto acervo da doutrina civil e de alguns estudos trabalhistas dirigidos à boa-fé objetiva para enfrentar um aspecto ainda não explorado: a incidência do venire contra factum proprium nas relações de trabalho. Embora existam algumas posições isoladas e superficiais na doutrina e jurisprudência acerca da aplicação da teoria da proibição dos comportamentos contraditórios nos contratos de emprego, inexiste produção dedicada exclusivamente a este tema e com abordagem direcionada à relações laborais, analisando com profundidade a possibilidade de sua influência no direito individual e coletivo do trabalho.

(13)

normas trabalhistas, além de uma abordagem das consequências jurídicas e das tutelas que objetivam impedir e reparar os danos causados pela prática da incoerência comportamental lesiva.

Nesse sentido, considera-se que a liberdade de mudar de opinião ou de comportamento não é absoluta, devendo ser limitada, especialmente quando afetar a esfera patrimonial de alguém que, em razão da sua conduta inicial, criou legítimas expectativas.

No ordenamento jurídico positivado inúmeras contradições são consideradas ilícitos e devidamente sancionadas, como a prevista no art. 619, parágrafo único do CC, que proíbe o dono da obra de se recusar a pagar ao empreiteiro eventuais acréscimos ao valor inicialmente ajustado, se sempre presente à obra, portanto não podendo ignorar o que estava se passando, e nunca protestou. Outras incoerências, todavia, são toleradas, a exemplo do art. 428, IV do CC, que permite ao proponente desistir da proposta feita se, antes dela ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a sua retratação.

Com o passar do tempo, porém, percebeu-se que algumas contradições não decorriam de um fato jurídico, assim considerado um acontecimento decorrente da vontade humana a que a lei confere consequências ou efeitos jurídicos. Embora contraditórios com um comportamento anterior, não possuíam consequências jurídicas estabelecidas em lei, mas violavam a confiança e/ou o patrimônio de outrem em razão de uma relação jurídica existente.

Uma determinada conduta, apesar de desleal seria lícita, à luz do direito positivo, se isoladamente analisada. Por essa razão surgiu a necessidade de se estudar e desenvolver uma teoria capaz de tutelar a confiança daquele que fora prejudicado com a incoerência. Assim nasceu a teoria dos atos próprios, que se dedicou a estudar e aplicar a máxima do venire contra factum proprium nas relações jurídicas obrigacionais.

O trabalho desenvolve-se ao redor desse instituto, que fixou a regra proibitiva dos comportamentos contraditórios lesivos, transportando, em seguida, esse estudo para as relações trabalhistas, no âmbito individual e coletivo.

(14)

objetivamente a máxima do venire contra factum proprium. Será abordado a abertura semântica das cláusulas gerais que contemplam a boa-fé objetiva no direito positivo, de modo a permitir diferentes e inusitadas soluções que dependerão da atividade criativa do juiz na análise dos diferentes conflitos causados pelas práticas de condutas contraditórias.

No segundo capítulo o estudo é dirigido para o instituto do venire contra factum proprium, especialmente seus requisitos, fundamentos, sua base normativa, suas consequências jurídicas e sua aplicação na solução dos diferentes casos. Importante ainda contextualizar o venire com as demais figuras previstas pela doutrina para coibir o exercício abusivo de direitos, a exemplo do estoppel, do tu quoque e da supressio, diferenciando-os do instituto foco deste trabalho.

Antes de enfrentar o corte proposto no tema, transportando as conclusões encontradas nos tópicos anteriores para a seara trabalhista, faz-se necessário adentrar no delicado e espinhoso conflito entre o venire e os direitos fundamentais, na medida em que, como figura que impõe limites ao exercício de direitos, podem ocorrer situações em que o objeto da restrição seja um direito fundamental, como, por exemplo, a intimidade e vida privada.

Assim, o terceiro capítulo desviou-se um pouco da sequência lógica traçada para firmar posição acerca dessa possível antinomia. Haja vista que, não raro, mesmo nas relações trabalhistas essa discussão será necessária.

O quarto e último capítulo apresenta o estudo do venire nas relações jurídicas laborais, analisando sua compatibilidade com os princípios e normas trabalhistas, sua incidência nas relações individuais e coletivas, além da análise da jurisprudência, que mesmo ainda tímida e superficial, já aplica esse instituto na solução de alguns conflitos.

(15)

2 A COMPREENSÃO CONTEMPORÂNEA DA BOA-FÉ OBJETIVA

A ideia de boa-fé no Direito surge, inicialmente, da fides romana, que era definida como “ter palavra”, “ser uma pessoa de palavra”.1Assim, a comunicação

intersubjetiva era pautada na crença, na fé depositada na palavra do próximo e que vinculava os sujeitos envolvidos.

Conforme lição de Humberto Theodoro Júnior (1997, p.248):

[...] historicamente, o direito contratual romano se caracterizava pela dicotomia entre contratos de direito estrito e contratos de boa fé [consensuais]. Os primeiros eram formais (do direito civil, ou quiritário) e os de boa fé, os que não dependiam de forma ou solenidade para produzir sua eficácia.

Percebe-se que a boa-fé, desde o seu surgimento, encontra-se atrelada à ideia de tutela da confiança, de alguém que acreditou em algo. Essa crença pode ser de índole subjetiva, quando o lesado confiou numa situação aparente, ou objetiva, quando se acreditou que a contraparte agiria de acordo com os padrões de conduta exigíveis do homem comum. Tendo como elemento comum a confiança, a doutrina apresenta a boa-fé no direito sob a ótica objetiva e subjetiva, sendo a primeira o objeto de estudo desse trabalho.

2.1 Boa-fé objetiva e subjetiva – necessária distinção

A boa-fé objetiva deriva da fórmula germânica Treu und Glauben, em que Treu possui o sentido de lealdade e Glauben, de crença, significando “boa-crença”, noção histórica que traduz bem os ideais de lealdade e confiança que permeiam e se misturam neste instituto jurídico.

Fernando Noronha (1994, p.136), entende que a boa-fé expressa uma regra de conduta, um “dever de agir de acordo com determinados padrões,

(16)

socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade, para [...] não frustrar a confiança legítima da outra parte.”

Tratando a boa-fé objetiva como cláusula geral do sistema, decorrente da força expansionista de sua interpretação no código civil alemão, Judith Martins-Costa (2000, p.411) afirma:

Já por boa-fé objetiva se quer significar [...] modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual „cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade‟. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.

Traduz-se a boa-fé objetiva, portanto, em padrões de comportamentos socialmente estabelecidos que se impõem aos contratantes, desde a fase negocial, até a fase pós-contratual. A abertura do seu conceito permite que diretrizes jurisprudenciais sejam estabelecidas, de maneira a impor aos contratantes o cumprimento de certos deveres secundários, que passam a integrar o que se entende por “conduta devida” no âmbito da relação obrigacional.

A definição da boa-fé objetiva traz implícitas as ideias de “honestidade, retidão, lealdade, e consideração com os interesses do outro, englobando situações impossíveis de tabulação ou arrolamento a priori” (GONÇALVES, 2008, p.126). Esta é a razão pela qual o seu real significado – como cláusula geral do sistema – dependerá da casuística, pois a boa-fé objetiva comporta valoração de conteúdo que não pode ser fixado de forma rígida, justamente no intuito de garantir a sua permanente construção e controle ao longo da história, sem necessidade de alteração legislativa, segundo o entendimento que a jurisprudência extrai da realidade social em cada época.

Karl Larenz (1956, p.103-104), analisando a base do negócio jurídico objetiva, afirma que:

(17)

comprensión de sus fundamentaciones que el hombre moderno exige para aceptar la autoridad de las sentencias. La sentencia según la equidad y en consideración a todas las circunstancias del caso concreto queda, por tanto, como la ultima ratio.

Camila Gonçalves (2008, p.127), anota qual seria a definição para os Standards:

Os Standards são formas de comportamento social típico, com caráter normativo integrado na consciência daqueles que atuam ou julgam de acordo com os costumes de determinada comunidade, identificados com os usos do tráfego e comerciais, assim como com a moral social dominante, referida na fórmula de “bons costumes”.

Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p.96) entende que o “standard jurídico não impõe uma conduta a ser seguida, mas apenas funciona como parâmetro com o qual será feita a comparação da conduta adotada em um caso concreto.” Não se pode limitar, entretanto, a boa-fé objetiva apenas com o standard, pois aquela, como norma de conduta, não se aplica somente em determinados casos, mas espraia o seu valor principiológico por todo o sistema, orientando as condutas de uma forma geral.

O standard se apresenta como uma simples norma comportamental padrão, enquanto que a boa-fé objetiva tem natureza mais ampla, funcionando como uma fonte de normas sem conteúdo previamente estabelecido e que serão valorados a partir do caso concreto, buscando a solução mais equânime a ser aplicada na situação. Seguindo, para tanto, vetores estabelecidos como lealdade e ética, preservando a confiança no trato negocial. A boa-fé objetiva, como norma de conduta, deste modo, estabelece que “as partes devem guardar entre si a lealdade e o respeito que se esperam do homem comum” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2005, p.75).

(18)

Inexiste interesse, destarte, em se investigar o animus na análise da boa-fé objetiva – a intenção do sujeito quando pratica determinado ato, no esforço de revelar se era sua intenção lesar alguém com a sua conduta. Esse comportamento, que também viola a confiança de outrem, está tutelado por outro instituto, o da boa-fé subjetiva.

A definição da boa-fé subjetiva faz-se necessária para melhor distingui-la da boa-fé objetiva, evitando confundir esses importantes institutos.

A boa-fé subjetiva está ligada ao estado psicológico em que se encontra um sujeito na prática de determinado ato. Este age acreditando estar em conformidade com o Direito ou mesmo com total desconhecimento em relação ao direito de outrem. Judith Martins-Costa2 (2011), dissertando a respeito da boa-fé subjetiva, define-a:

A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a ideia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância excusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente). [...] de modo a se poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio [...].

A proteção jurídica nessa acepção da boa-fé, portanto, recai sobre o aspecto psicológico da conduta do sujeito, protegendo aquele que atuou sem ciência do vício, da mancha que macula a situação de per si.

Em sua definição sobre a boa-fé subjetiva, Fernando Noronha (1994, p.132) expõe:

Na situação de boa-fé subjetiva uma pessoa acredita ser titular de um direito, que na realidade não tem, porque só existe na aparência. A situação de aparência gera um estado de confiança subjetivo, relativa à estabilidade da situação jurídica, que permite ao titular alimentar expectativas, que crê legítimas.3

2 MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/martins1>. Acesso em: 01 out 2011.

(19)

Judith Martins-Costa (2000, p.411) ensina que “esta boa-fé de conhecimento, psicológica, subjetiva, contrapõe-se à má-fé. A má-fé também é subjetiva, vista ligeiramente como a intenção de lesar outrem”.

Delineando esta diferença, Vera Winter (1998, p.133) define:

A inexistência de boa-fé subjetiva caracterizava sempre uma atuação dolosa ou pelo menos culposa, portanto, uma atuação não conforme aos deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva, quem não está em estado de ignorância (aspecto subjetivo) e, apesar disso, age, sabendo ou devendo saber que vai prejudicar direitos alheios procede (aspecto objetivo) necessariamente de má-fé.

Torna-se evidente, portanto, que a investigação da boa-fé subjetiva perpassa pela análise do estado psicológico do sujeito envolvido na relação jurídica, a fim de se descobrir o seu estado de (des)conhecimento no momento da realização do ato. Torna-se imprescindível para o enquadramento da boa-fé subjetiva, desta forma, o exame do animus do sujeito, seu estado de ignorância.

A breve análise conceitual das duas espécies de boa-fé evidencia a tutela da confiança como ponto em comum. Há em ambas este elemento subjetivo – a confiança – e a necessidade de tutelá-lo, seja para beneficiar aquele que acredita encontrar-se numa situação aparente (boa-fé subjetiva), seja para quem orienta a sua conduta segundo padrões éticos (NORONHA, 1994).

Importa ressaltar, todavia os elementos que distinguem a boa-fé objetiva e subjetiva, apesar do elemento em comum. A segunda diz respeito a dados internos, fundamentalmente psicológicos, atinentes diretamente ao sujeito; a primeira a elementos externos, a normas de conduta, que determinam como se deve agir. Estará, em um caso concreto, portanto, de boa-fé subjetiva quem ignora a real situação jurídica; e de boa-fé objetiva quem tem motivos para confiar na contraparte.

A confiança, como elemento subjetivo da conduta e a sua tutela jurídica, seria, assim, a interseção entre a fé subjetiva e a objetiva. Há, no tocante à boa-fé objetiva, ainda, um segundo elemento, que é o dever de conduta de outrem (NORONHA, 1994). Dessa forma, enquanto a boa-fé subjetiva considera o estado de agir de um sujeito, que acredita agir de acordo com os valores axiológicos

(20)

vigentes; de outro lado, a boa-fé objetiva estabelece regras de conduta a serem observadas pelas partes numa dada relação jurídica.4

Fernando Noronha (1994) define a boa-fé objetiva como princípio, enquanto considera a boa-fé subjetiva apenas como um estado psicológico.5

Fredie Didier Jr. (2012, p.70-72) afirma que a boa-fé subjetiva é fato e refere-se às intenções do sujeito, compondo o suporte fático de algumas normas jurídicas. A boa-fé objetiva, por seu turno, é norma de comportamento, determinando ou vedando a realização de condutas.

Estabelecidas as devidas distinções entre boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva, por meio das considerações iniciais, passa-se ao estudo apenas da boa-fé objetiva, por entender que o referido instituto guarda relação direta com o objeto desse trabalho, analisando-se, para tanto, o seu processo de surgimento e afirmação no ordenamento jurídico nacional.

2.2 História da boa-fé objetiva

A primeira aparição da boa-fé objetiva remonta ao Direito Romano, ainda que exista dissidência6 a respeito da natureza jurídica de princípio deste instituto à

época. A presença da fides7 no Direito Romano é responsável pelo nascedouro da

4

Nelson Rosenvald (2007, p.165) esclarece: “Enfocamos a boa-fé objetiva no direito das obrigações como um modelo de conduta social, padrão de comportamento, pelo qual cada um de nós se conduzirá, ajustando o comportamento àquele pretendido para uma pessoa honesta e leal. Na concepção da boa-fé objetiva, o intérprete se desvinculará da aferição do exame psicológico da parte (boa-fé subjetiva), pois apenas avulta o nível objetivo de atuação conforme o meio social ou profissional em determinado contexto histórico.”

5

O autor (1994, p. 132) ainda ressalta: “A boa-fé subjetiva ou boa-fé crença, é um estado – um estado de ignorância sobre as características da situação jurídica que se apresenta, suscetíveis de conduzir à lesão de direitos de outrem”.

6 Célia Barbosa Abreu Slawinski (2002) esclarece a divergência doutrinária afirmando que existe uma corrente que nega a existência da formulação do princípio da boa-fé no Direito Romano, e que se funda na questão da contrariedade dos juristas romanos à formação de princípios e expressões extrajurídicas. Do lado oposto a esta opinião, tem-se que o dever de lealdade entre as partes, decorrente do princípio da boa-fé, remontaria ao “princípio romano da fides”, o qual determinava a abstenção de todo comportamento daquele que se comprometeu, e que pudesse onerar ou dificultar a execução do contrato.

7 Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a,

(21)

boa-fé objetiva em sua acepção jurídica, representando, neste momento, a fé e a confiança das partes contratantes no campo do direito obrigacional. Judith Martins-Costa (2009) enuncia que a própria etimologia do vocábulo confiança provém da expressão romana fides, que significava a fé reinante nas condutas comunicativas na ordem social. E esta conduta comunicativa tinha por objeto o entendimento entre os sujeitos.

Segue esta linha Baptista Machado (apud MARTINS-COSTA, 2009, p.235) destacando que “toda e qualquer conduta comunicativa só pode cumprir o seu papel se observadas regras éticas elementares, como a da veracidade e lealdade, às quais correspondem os conceitos complementares de credibilidade e responsabilidade.”

Ao longo do tempo incorporou-se à ideia da fides a bona fides, expressão que marca e representa, segundo a ótica de Juliana Evangelista de Almeida (2009, p.361), “o cumprimento do que foi assumido, devendo ser cumprido não somente o que está expresso, mas também aquilo que representa o assumido pelas partes contratantes.”

O sentido e a atuação da bona fides, nas palavras de Paolo Frezza (apud MARTINS-COSTA, 2000, p.116):

Atuava como „elemento catalisador‟ do conteúdo econômico dos contratos, porque, funcionalmente, constringe as partes a ter claro e presente qual o conteúdo concreto dos interesses que se encontram no ajuste, clarificação essa necessária para vincular os contraentes ao leal adimplemento das obrigações assumidas.

fides-facto a leitura de BESELER, segundo a qual a fides figuraria uma ligação, encontrando, conjuntamente com a (ilegível), grega, a sua raiz indo-europeia na designação duma planta utilizada para atar. A fides-ética, a cuja concepção ficou ligado HEINZE, parte, na leitura deste autor, da tese de FRAENKEL. Simplesmente, desde o momento em que a <<garantia>> expressa pela fides passou a residir na qualidade de uma pessoa, teria ganho uma coloração moral. Mais do que uma mero facto, sintoma de um desenvolvimento conceptual incipiente, a fides implicaria o sentido de dever, ainda quando não recebida pelo Direito.” Concluiu o Autor esta distinção dizendo (2011, p.58-59): “Nessa linha, merece referência a hipótese de WIEACKER, segundo o qual haveria, na base da fides, uma adstrição de comportamento, inicialmente não jurídica, que se tornou primeiro mágica, então religiosa, finalmente moral. Não custa admitir que fides fosse, em simultâneo, uma ligação-garantia fática, com níveis de representação mágico-sacrais e, mais tarde, morais.” Por fim, o Autor elenca, ainda, como subdivisão da fides, a fides-poder e a fides-promessa, identificando-as da seguinte forma (2011, p.60-61): “Como instituição social apta a tratamento jurídico, a clientela vive dominada pela fides. Mas ainda aí devem ser separados dois aspectos: o da fides como poder, traduzindo, nessa medida, a posição jurídica do patrão, caracterizada, entre outros, por poderes de direcção e o da

(22)

A partir deste momento o negócio entabulado entre as partes produzia caráter vinculante em relação à palavra dada, ao compromisso firmado uma com a outra, sendo uma espécie dos contratos, os chamados contratos de boa-fé, nos quais não se fazia a exigência de seguir o ritual formalístico de todos os demais contratos romanos. Salienta, neste sentido, Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p.44) que: o “Direito Romano, como se sabe, não se baseava na ordenação sistemática dos direitos subjetivos abstratos, mas sim, na previsão de ações para os diversos casos concretos.”8

Fazendo um breve paralelo com a realidade atual, não existem mais os contratos específicos de boa-fé, pois em toda e qualquer negociação, seja solene ou informal, se encontra implícita a ideia de conduta em conformidade com a boa-fé durante todas as fases que antecedem e sucedem a celebração do contrato. A implicação lógica, por conseguinte, é que atualmente todos os contratos são orientados pela boa-fé.

O direito de ação em favor da bona fides veio a ser tutelado no Direito Romano com a bonae fidei iudicia9, que possibilitava ao juiz decidir a aplicação da boa-fé exigida nas relações obrigacionais em cada caso concreto. A bonae fidei iudicia também denominada de actiones fidei iudicia10, possibilitava ao juiz, portanto,uma margem maior de discricionariedade no julgamento da causa, não o adstringindo estritamente à lei (SLAWINSKI, 2002).

A expressão bonae fidei iudicia consistia, deste modo, em um feixe de procedimentos nos quais os postulantes, sem poder embasar a sua pretensão em alguma lei em sentido formal, fundamentavam-na na fides bona, pleiteando que o juiz decidisse de acordo com o primado da boa-fé.

Percebe-se, assim, que no Direito Romano a boa-fé representava uma norma aberta, de necessária complementação pelo julgador, “a quem era garantida uma ampla margem de liberdade para a determinação do conteúdo normativo, da

8 Fazendo um breve paralelo com a realidade atual, não existem mais os contratos específicos de boa-fé, pois em toda e qualquer negociação, seja solene ou informal, se encontra implícita a ideia de conduta em conformidade com a boa-fé durante todas as fases que antecedem e sucedem a celebração do contrato. A implicação lógica, por conseguinte, é que atualmente todos os contratos são orientados pela boa-fé.

(23)

conduta esperada” (DUARTE, 2004, p.405). As actiones, portanto, incluindo-se as actiones fidei iudicia, fundavam-se no império do pretor.

A partir da ampliação dos poderes dos pretores na decisão dos casos expressos nas actiones fidei iudicia surge a criação de soluções concretas e específicas para cada situação, uma vez que a norma positivada não contemplava as hipóteses trazidas nos conflitos tratados pelas actiones.

Esta atuação do juiz nas actiones fidei iudicia é bem definida por Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.89):

De tudo isto, retira-se o sentido geral dos bonae fidei iudicia: tratava-se de instâncias em que o iudex, em vez de tratava-se dever ater a formalismos estritos, tinha por função o procurar, através de certos expedientes, descer até à substância das questões. Não bastava, pois, uma composição puramente formal dos litígios: procurava-se uma solução material. Estas considerações, que poderiam ser exageradamente ampliadas com outras, tais como a de um reconhecimento implícito de equivalência de prestações, a da bona fides como norma de conduta correcta ou da funcionalidade das obrigações, não devem, porém, fazer perder a perspectiva histórica de que toda esta generalização surgiu muito depois, apenas.

Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p.46) esclarece a real função da bona fides para o Direito Romano:

Na realidade, mais adequado se mostraria dizer que a bona fides, para os romanos, era informadora de todo o ordenamento social e jurídico, impondo que as relações interpessoais e nos comportamentos em geral fosse observada a fidelidade, embora não houvesse qualquer preocupação em apresentar um conceito único ou mesmo em identificar uma origem única para todas as situações onde a mesma encontrava aplicação, até porque, como já comentamos acima, não era próprio dos romanos o pensamento abstrato e sistematizado, mas sim, o pensamento problemático, tópico, voltado para a solução de cada caso concreto específico.

(24)

O Direito Canônico, que se destacou pela inserção do sentido subjetivo da boa-fé, também relegou, por sua vez, o status de norma positivada à boa-fé objetiva. Neste contexto, a boa-fé era tida como a ausência de pecado11, como salienta Thiago Borges (2009, p.130):

[...] no direito canônico, a boa-fé obrigacional encontrava-se generalizada na legitimação das nuda pacta12, diluída, sem um

papel técnico-jurídico, representando uma categoria sem conteúdo substancial. A Igreja atribuía valor moral à promessa, ou ao consentimento, conferindo a boa-fé o significado de ausência de pecado. Desta forma, se considerado que quem promete deve cumprir a palavra dada, sob pena de incorrer em pecado, a regra, de preceito moral, se faz jurídica – passando-se a admitir que o simples acordo obriga. Agir em boa-fé, no âmbito obrigacional do direito canônico, é respeitar fielmente o pactuado, sob pena de agir em má-fé, isto é, em pecado – assume, assim, um conteúdo eminentemente subjetivo.

Reforçando a ligação entre a boa-fé e o não cometimento do pecado para o Direito Canônico, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.153-154) pontua:

No Direito Canônico [...] teria ocorrido uma velha aspiração dos estudiosos da boa-fé: a sua unificação conceptual. Na linha dos valores próprios do Direito da Igreja, a boa-fé dependeria sempre da consideração do pecado: na praescriptio, a mala fide superveniens, traduzindo uma situação de scentia na constância do direito alheio, corporizaria um fator de conscientia, obstáculo ao seu funcionamento; por isso foi alterado o brocardo romano mala fides superveniens non nocet. Nos nuda pacta, a ideia de pecado teria sido, também, decisiva: o respeito pela palavra dada impõe-se, sob pena de violação dos valores transcendentais.

A boa-fé no Direito Canônico é marcada, precipuamente, pelo seu caráter axiológico, pois, ao apresentar a boa-fé como conduta contrária ao pecado, passa-se a considera-la como um valor capaz de produzir efeitos jurídicos.

11 Judith

Martins-Costa (1999, p.129) esclarece: “À primeira vista, pode parecer idêntica à conotação advinda do direito romano, a boa-fé como denotativa da ignorância acerca da litigiosidade. Contudo, o direito canônico introduz um poderoso pólo de significados – a boa-fé é vista como a „ausência de pecado‟, vale dizer, como estado contraposto à má-fé.”

(25)

A relevância histórica do Direito Canônico para a boa-fé foi tê-la erigido em sua dimensão interpretativa de caráter axiológico, vinculada ao subjetivismo, com a construção dos antagônicos conceitos de boa e má-fé. Ultrapassado este período inicial na qual a boa-fé objetiva teve escasso desenvolvimento, ficando limitada às actiones do Direito Romano, os estudos sobre o tema foram aprofundados.

O caminho da doutrina para a positivação contou com a fundamental importância do trabalho de Pothier, conhecido como “pai do Código Civil”, que, como destaca Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.242), “teve um relevo fundamental na sua elaboração, sobretudo no direito das obrigações” e foi no capítulo do dolo na formação dos contratos que o destacado jurista tratou da boa-fé, aplicando uma distinção “canonística”, passando a prever duas acepções para o sentido da boa-fé: a subjetiva e a objetiva.

A influência de Porthier na elaboração do Código Civil francês, como pontua Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a), torna possível a afirmação de que o Código de Napoleão possui referências múltiplas à boa-fé. A boa-fé objetiva foi consagrada principalmente, e pela primeira vez, nos artigos 113413 e 113514 do Código Civil francês, trazendo este último dispositivo a ideia de atuação e

direcionamento da conduta da parte contratante segundo os ditames da boa-fé. Os citados dispositivos do Código Civil francês trazem a boa-fé objetiva como reforço do vínculo contratual por meio da exigência de lealdade dos contratantes um para com o outro. É a expressão da boa-fé objetiva como norma de conduta, e não simplesmente como a ignorância de determinada circunstância (DANTAS JÚNIOR, 2007).

O alcance da boa-fé objetiva não teve, contudo, a amplitude de lastrear a conduta dos contratantes em todo e qualquer pacto, pois para os exegetas prevalecia o dogma da inexistência de lacunas e a solução de todos os problemas de interpretação através do próprio texto. Para ampliar o alcance da interpretação e apreender a dimensão da norma jurídica, exigia-se a busca de outras fontes de

13 Art. 1134

–No original: “Lex conventions légalement formées tiennet lieu à ceux qui les ont faites. Elles ne peuvent être révoquées que de leu consentemente mutual, ou pour les causes que la loi autorize. Elles doivent être exécutées de bonee foi” (SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Contornos Dogmáticos e Eficácia da Boa-fé Objetiva.O Princípio da Boa-Fé no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002). 14 Art. 1135

(26)

direito, o que não era admissível segundo as diretrizes do pensamento jusfilosófico da época da entrada em vigor do Código Civil, em 1804.

Ausente de sentido pelos exegetas, a boa-fé objetiva deixou de ser aplicada na sua máxima amplitude no período, sendo interpretada “tão somente como um reforço linguístico à obrigatoriedade das convenções decorrente da autonomia da vontade, esta sim, se apresentando como o foco central do sistema” (DANTAS JÚNIOR, 2007, p.66-67), não passando de mero reforço da obrigação contratual assumida, sem maiores consequências para a parte que atuasse em desconformidade com a boa-fé.

Neste mesmo plano de ideias, Judith Martins-Costa (2000, p.204-205) destaca que nesse período, quando a autonomia da vontade era o foco do direito contratual, com reflexo em todos os atos jurídicos, torna-se impossível conciliar os seus ideais com o princípio da boa-fé que, por essa razão, não evoluiu, esvaziando, “até mesmo do escasso e diluído conteúdo que lhe fora atribuído pelo jusracionalismo”.

Por outro lado, a acepção da boa-fé subjetiva teve crescente aplicação e desenvolvimento a partir do Código Civil francês, sem se desvencilhar da ideia de estado de ignorância, com adoção de conceito próximo ao da bona fides. Houve, assim, o alargamento do conceito da boa-fé em sua acepção subjetiva, passando a comportar a análise da equivalência ou não da má-fé ao erro grosseiro. Esta noção subjetivista, psicológica, pautada na ignorância, no desconhecimento, manteve-se como cerne da definição da boa-fé.

Logo, o que se vê é a ausência de raciocínio e interpretação dos exegetas a concretizar a boa-fé objetiva no Código Civil francês, malgrado a expressa disposição no texto legal.

A boa-fé objetiva volta a ter força em 1896, com a promulgação do Código Civil alemão (BGB - Bürguerliches Gesetzbuch), que estabeleceu nos parágrafos 15715 e 24216 a obrigatoriedade de comportamento de acordo com a boa-fé

15

§ 157: “Os contratos interpretam-se como exija a boa-fé. Com consideração pelos costumes e pelo tráfego (SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Contornos Dogmáticos e Eficácia da Boa-Fé Objetiva e O Princípio da Boa-Fé no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 2002).

16

§ 242 do BGB: “O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego” (No original: “Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so

zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern” SCHREIBER,

(27)

(objetiva). Nesse sentido, Anderson Schreiber (2007, p.82), referindo-se ao BGB, proclama:

A boa-fé não é aí mencionada naquele sentido subjetivo, que foi incorporado pelo Código Civil brasileiro de 1916 e por várias outras codificações: a chamada boa-fé subjetiva ou boa-fé possessória, definida como um estado psicológico de ignorância acerca de vícios que maculam um direito real. O § 242 do BGB traz, ao revés, uma concepção objetiva da boa-fé, como standard de conduta leal e confiável (Treu und Glauben), independente de considerações subjetivistas.

Previu o BGB Alemão tanto a boa-fé subjetiva como a boa-fé objetiva. Simplificam a previsão e interpretação das duas dimensões da boa-fé no código alemão os ensinamentos de Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.331):

O sentido inicial da boa-fé no BGB orbita em torno desses dois centros: a boa-fé subjectiva constitui um expediente técnico para exprimir, em situações complexas, elementos atinentes ao sujeito; a objectiva traduz o reforço material do contrato.

A acepção da boa-fé subjetiva vinculava-se à ausência de consciência de prejudicar outrem (SLAWINSKI, 2002). Nota-se, a partir dessa premissa, que a boa-fé subjetiva permanecia ligada ao íntimo, a não intenção da parte em lesar quem quer que seja com seus atos de expressão de vontade. No tocante à boa-fé objetiva, seu campo de aplicação encontrou marcante presença nas relações obrigacionais, com destaque para as práticas comerciais e a atuação jurisprudencial na solução dos casos concretos decorrentes das relações mercantis.

A exigência da boa-fé objetiva norteava os contratos obrigacionais e, principalmente, as práticas comerciais, que deveriam assegurar as legítimas expectativas criadas para cada uma das partes, as quais se vinculavam à certeza do atendimento não só do que fora acordado, mas também da postura leal da contraparte durante a execução do contrato.

(28)

Sobressai a boa-fé como factor de fortalecimento e de materialização do contrato ou seja: a boa-fé como necessidade de cumprimento efectivo dos deveres contratuais assumidos, por oposição a cumprimentos formais, que não tenham em conta o seu conteúdo verdadeiro.

Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p.80) explicita o sentido inicial dado pelo BGB alemão à boa-fé objetiva, ao afirmar que esta “passa a significar as medidas das ações subjetivas e, portando, um critério normativo de comportamento”.

Comentando o entendimento do parágrafo 242 do BGB Alemão17, que versa

sobre a boa-fé objetiva, Thiago Borges (2009, p.132-133) é enfático:

O entendimento deste parágrafo como configuração de uma verdadeira cláusula geral só aconteceu após a entrada em vigor do código, no século XX, através da interpretação jurisprudencial, que lhe deu preenchimento. Antes disto, conforme Menezes Cordeiro relata, apenas alguns tribunais comerciais de cidades alemãs livres é que proferiam decisões que destacam a boa-fé utilizada como tópica, na acepção objetiva, exprimindo “um mundo de exercício de posições jurídicas, uma fórmula de interpretação objectiva dos contratos, ou, até, uma fontes de deveres, independentemente do fenômeno contratual.”

Após o final da Primeira Guerra Mundial, a boa-fé objetiva passou a ser vista como cláusula geral indutora de comportamentos, sendo possível a utilização de métodos de preenchimento do conteúdo destas cláusulas abertas do sistema, superando, assim, as limitações de um sistema fechado impostas pela própria estrutura dogmática do BGB alemão.

Julgamentos decorrentes de questões comerciais levadas aos tribunais alemães no período, já demonstravam espaço para a interpretação da cláusula geral da boa-fé objetiva e, apesar de não significar a sistematização deste instituto no ordenamento jurídico deste país, tinham grande peso no ambiente jurídico da época. Anderson Schereiber (2007, p.82) é categórico em seus esclarecimentos sobre esta situação:

Foi apenas a partir da Primeira Guerra Mundial que a boa-fé objetiva veio realizar plenamente a sua vocação de cláusula geral apta a impor parâmetros de conduta para as relações sociais, sobretudo por

17

(29)

meio da criação de direitos e obrigações anexas ao objeto do contrato, voltadas a alcançar a mútua e leal cooperação entre as partes.

No mesmo plano de ideias, Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p.84), complementa:

[...] parece que o cerne do problema consiste no fato de que, ao se referir à boa-fé como norma de conduta, no fundo, o que se está a pretender é que em cada caso concreto se chegue à solução mais justa, e que só valerá para aquele caso específico, com suas circunstâncias peculiares, e dai a impossibilidade de ser inserida a solução completa no próprio sistema, sendo indispensável o recurso às cláusulas gerais.

A partir do julgamento das práticas comerciais, é notória a vinculação da boa-fé objetiva à utilização de técnicas de interpretação e preenchimento da norma inserida em uma cláusula geral. Passou o instituto a exigir das partes, na relação negocial, a atuação e cumprimento das obrigações assumidas segundo a boa-fé, estabelecendo-se uma série de deveres anexos.

As cláusulas gerais podem, assim, ser compreendidas neste momento, em apertada síntese, como “uma das modalidades onde o legislador se vale do uso de termos amplos e vagos, para conseguir a abertura e atualização permanente do sistema, independentemente de alteração do texto legal” (DANTAS JÚNIOR, 2007, p.85).

(30)

2.3 Boa-fé objetiva no Brasil

O ordenamento jurídico brasileiro, fortemente influenciado pelo Código Civil francês de Napoleão e, em menor dimensão, pelo BGB alemão, inspirou-se, para a edição do Código Civil de 1916, no individualismo e nos ideais de liberdade, fraternidade, igualdade e autonomia da vontade, emergentes da Revolução Francesa, distanciando-se da boa-fé objetiva.

Judith Martins-Costa (2000) destaca o aspecto em que os institutos estrangeiros influenciaram o ordenamento pátrio: o BGB alemão, quanto ao aspecto estrutural, com a divisão em parte geral e especial; o Código Civil Francês, por seu turno, no que diz respeito ao aspecto material.

Vale destacar a importância do direito Português, não apenas em sua influência material, mas na tradução do centralismo jurídico18 e ao peso da doutrina na interpretação e flexibilização do texto normativo.19 Estas influências trouxeram para o Brasil a ideia de codificação das leis civis, de forma a sistematiza-las em um único corpo, deixando de lado a regulação de forma exclusiva pelo direito costumeiro e legislação esparsa.

Clóvis do Couto e Silva (apud MARTINS-COSTA, 2000, p.258) traz a exata noção dos influxos externos para a sistematização das leis civis no diploma codificado de 1916:

É um código “oitocentista”, embora nascido no século XX, porque tributário da tradição do centralismo jurídico advinda de Portugal, e este teria de levar indesviavelmente à ideia do Código, no seu sentido tradicional e positivista, como algo que incorpore em seu universo a totalidade normativa de um país.

Não obstante existir oposição à codificação das leis civis, sob o fundamento de que “trazem rigidez ao direito e atrofiam seu natural crescimento”, certo é que a codificação civil brasileira nasce da “incongruência da legislação, de sua incompletude, dos seus antagonismos”, ou seja, do contraditório direito positivado

18 O centralismo jurídico, calcado nos ideais positivistas, conduz à noção de um ordenamento jurídico universal, deixando de lado as diversidades regionais, como ato de autoridade. Clóvis de Couto e Silva (apud MARTINS-COSTA, 2000, p.240) assevera que o centralismo jurídico “conduz diretamente à ideia de que o Código, o seu sentido tradicional e positivista, é qualquer coisa que incorpora em seu universo a totalidade normativa de um país.”

(31)

existente no país, buscando garantir um mínimo de segurança jurídica e harmonia entre os preceitos erigidos com lei sem sentido formal (MARTINS-COSTA, 2000, p.261-262).

A ideia da codificação estava atrelada à concepção de um sistema fechado, de aparente harmonia e completude, induzindo os operadores do direito à falsa expectativa da regulação normativa de todas os conflitos sociais. Neste contexto, não houve espaço para adoção de uma cláusula geral de boa-fé objetiva, com suas características voltadas à abertura e à flexibilidade do sistema.

Por isso a explicação de que, mesmo com a influência da doutrina, que à época já se debruçava com o estudo da boa-fé objetiva, o CC/16 deixou à margem esse importante e consagrado princípio. Como destaca Célia Barbosa Abreu Slawinski (2002, p.78-79), desde “as ordenações Filipinas (1603), no livro I, título LXII, p.53 e, mais tarde, no Código Comercial (1850), através de normas no artigo 131, I”, já se notava a influência da boa-fé objetiva. Foi Teixeira de Freitas, porém, que pela primeira vez tratou desse tema no direito civil, no seu Esboço apresentado em 1855, quando incluiu na parte geral, Livro primeiro, seção III, alguns dispositivos sobre a boa-fé dos atos jurídicos.20 Lamentavelmente, estas foram desprezadas por

completo por Beviláqua na elaboração do CC/16.

Aponta-se, também, a previsão legal da boa-fé objetiva no Código Comercial de 1850, especificamente no artigo 13121, itens 1 e 4, mas de forma incipiente,

funcionando apenas como embrião da boa-fé objetiva22 no Direito brasileiro.

20 A autora destaca que em alguns artigos abaixo transcritos pode-se perceber que o jurista trata da boa-fé objetiva quando a insere como “elemento inerente à própria substância destes atos”, vejamos: “Art. 504 – Haverá vício de substância nos atos jurídicos quando seus agentes não os praticaram com intenção, ou liberdade; ou quando não os praticaram de boa-fé. Art. 505 – São vícios de substância, nos termos do artigo antecedente. 1º Por falta de intenção, a ignorância ou erro, e o dolo (art. 450). 2º Por falta de liberdade, a violência (art. 451) 3º Por falta de boa-fé, a simulação e a fraude. Art. 517 – Consiste a boa-fé dos atos jurídicos na intenção de seis agentes relativamente a terceiros, quando procedem sem simulação ou fraude. Art. 518 – Reputar-se-á ter havido boa-fé nos atos jurídicos, ou nas suas disposições, enquanto não se provar que seus agentes procederam de má-fé, isto é, como um dos vícios do artigo antecedente (arts. 504 e 505, nº 3). Art. 1954 – Os contratos devem ser cumpridos de boa-fé, pena de responsabilidade por faltas (arts. 844 a 847) segundo as regras do art. 881. Eles obrigam não só ao que expressamente se tiver convencionado, como a tudo que, segundo a natureza do contrato, for de lei, equidade e costume” (SLAWINSKI, 2002, p.79).

21 Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:

1 – a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras; [...]

(32)

Visando garantir essas características de completude, perfeita harmonia e ausência de antinomias, os métodos de interpretação que se seguiriam à Codificação não poderiam ser outros, senão a exegese, a interpretação literal – resultado do apego ao formalismo e positivismo jurídico. Sendo assim, ao aplicador do direito não restaria outra saída senão ater-se, exclusivamente, à incidência mecânica da norma abstrata ao caso concreto, partindo da ideia de silogismo, por meio da conhecida operação de dedução, na qual se tem premissa maior (a lei), premissa menor (o caso concreto) e conclusão (a decisão), esta última derivada das duas primeiras proposições.

Sabe-se atualmente que esta técnica de construção do juízo deliberativo é assaz simplista e insuficiente para regular as relações individuais e sociais, pois desconsidera a complexidade, particularidade e infinidade destas questões. Incompatível, portanto, com a ideia de uma cláusula geral típica da boa-fé objetiva.

Judith Martins-Costa (2000, p.268-269) apresenta a postura adotada pelos operadores do direito na realidade do CC/16, ao destacar que “este tecnicismo jurídico encontra-se vinculado às ideias da completude da lei e da interpretação como forma de raciocínio silogístico.” Assim, considerando que o Código de Beviláqua de 1916 funda-se nos pilares da completude da lei, no individualismo e em aspectos patrimoniais, não houve espaço para tratar da boa-fé objetiva, diante de sua total incompatibilidade com os referidos paradigmas.

Nesse sentido, o diploma de 1916 se limitou a tratar da boa-fé subjetiva. Célia Barbosa Abreu Slawinsk (2002, p.81) registra que o Código mencionou a boa-fé objetiva nos artigos 1443 e 1444, mas reconhece que não existia uma “regra geral acerca da necessidade de sua observância em matéria de obrigações.”

Ao contrário da boa-fé objetiva, que não encontrou terreno fértil na codificação civilista de 1916, a boa-fé subjetiva foi prestigiada em inúmeras passagens.23 Thiago Borges também reconhece a pouca influência da boa-fé

Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p.92) traz percuciente interpretação a respeito do artigo 131 do Código Comercial, sendo válida a sua literal transcrição: “Como facilmente se percebe, no nº 1, quando a norma legal se referiu à boa-fé objetiva, ou seja, mais precisamente da boa-fé em sua função interpretativa da vontade dos sujeitos participantes do negócio jurídico. E fica ainda mais claro que se tratava da boa-fé objetiva quando se examina o nº 4, do mesmo dispositivo legal, que embora não fizesse menção explícita ao termo “boa-fé”, determinava que se observassem os costumes do lugar, o que nada mais é do que a da boa-fé enquanto norma de conduta, uma vez que cada um dos sujeitos envolvidos em um negócio jurídico examina o comportamento do outro e cria suas legítimas expectativas quanto a esse comportamento em função do que é costumeiro em relação àquele tipo de negócio.”

(33)

objetiva no referido diploma, mas encontra no antigo artigo 1443 a diretriz do referido princípio (2009, p.134).24

Não havia, portanto, no CC/16, previsão da boa-fé objetiva como regra aplicável a todas as relações jurídicas, ou ao menos aos contratos, como norma atuando no direcionamento da conduta das partes, restando aos operadores do direito justificar a aplicação de tais valores com base na sua natureza principiológica.

Nelson Rosenvald (2007, p.84) observa que, como não havia regramento positivado como cláusula geral, a boa-fé objetiva era “tratada como princípio geral do direito (não positivado) e, em alguns casos, como conceito jurídico indeterminado (na posse e no casamento putativo)”, justificando este silêncio normativo pela ausência de base social e constitucional, à época, para a efetivação da boa-fé objetiva no direito obrigacional. Restava aos aplicadores do direito, portanto, como forma de tutelar a boa-fé objetiva, o fundamento desta norma de conduta enquanto princípio.

O cenário jurídico em que se aplicava a boa-fé objetiva, de forma incipiente, era composto por uma Constituição Federal exclusivamente voltada ao direito público, sem nenhuma preocupação social ou com o ser humano, e por um Código Civil calcado no individualismo e na autonomia da vontade, dificultando a sua inserção definitiva no ordenamento jurídico brasileiro.

O advento da CF/88 iniciou uma mudança nesse contexto de modo positivo e avassalador, abrindo espaço para a inserção da boa-fé objetiva no direito positivo e nas relações obrigacionais. Com efeito, os princípios fundamentais elencados nos

circunstância era tutela no Código Civil de 1.916 em diversos dispositivos, a exemplo dos artigos : 221 (“Art. 221. Embora nulo ou anulável, quando contraído de boa fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis desde a data da sua celebração.”), 225, Parágrafo único (“Parágrafo único. Quando o cônjuge responsável pelo ato anulado não tiver bens particulares que bastem, o dano aos terceiros de boa fé se comporá pelos bens comuns, na razão do proveito que lucrar o casal.”), 490 (“Art. 490. É de boa fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede da aquisição da coisa, ou do direito possuído.”), 491 (“Art. 491. A posse de boa fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.”), 510 (“Art. 510. O possuidor de boa fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos.”), 511 (“Art. 511. Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa fé devem ser restituídos, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio. Devem ser também restituídos os frutos colhidos com antecipação.”).

24

(34)

incisos do artigo 1º e 3o, I da CF/88, em especial os da dignidade da pessoa humana

e da solidariedade social, estabeleceram os vetores essenciais para a ordem jurídica interna e a incontestável normatização dos direitos e valores ligados à existência do homem, em detrimento dos direitos patrimoniais. A supremacia dos valores e princípios constitucionais constituem autênticas regras e ainda irradiam sua função interpretativa para a legislação infraconstitucional, que deve ser lida em conformidade com os novos anseios constitucionais.

Além dessa importante mudança no cenário Constitucional, com a inserção de valores sociais e da preocupação com o homem, que abriu espaço para a boa-fé objetiva, houve outra significativa mudança na forma de aplicar as diretrizes constitucionais. Passou-se a discutir a força normativa da Constituição, que durante muito tempo foi considerada apenas “uma proclamação de princípios políticos, que dependeriam sempre do legislador para a produção de efeitos concretos” (SARMENTO, 2010, p.50).

Essa antiga e ultrapassada concepção foi superada pelos ideais do movimento que se consagrou como neoconstitucionalismo,25 surgido na Europa após a segunda Guerra Mundial, e no Brasil depois de 1988, que defendia, dentre outros conceitos, a função normativa da Constituição, permitindo a imediata aplicação dos valores e regras de conduta consagradas na Carta Magna.

Essa dimensão da força normativa da constituição e sua imbricação com a nova interpretação constitucional é sustentada por Konrad Hesse (1991, p.22-23):

A interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.

[...]

(35)

A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente.

Entendida como a lei suprema do Estado e fundamento de validade de toda a ordem jurídica, dotada de força normativa, a Constituição confere unidade ao sistema e, a partir da sua vigência, não mais poderá subsistir nenhuma norma que seja com ela incompatível, ainda que anterior. Delineando esta hierarquia da Constituição, são sempre precisas e atuais as palavras de Hans Kelsen (1979, p.310):

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se começarmos por tomar em conta apenas a ordem jurídica estadual (estatal), a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado.”

Desta forma, em relação aos diplomas normativos anteriores à vigência da CF/88, passam a incidir os princípios da supremacia constitucional e da continuidade da ordem jurídica. A supremacia constitucional condena à invalidade as normas incompatíveis com a Constituição Federal; já o princípio da continuidade tem o condão de salvaguardar as normas infraconstitucionais que comunguem do novo arcabouço material (princípios e valores constitucionais) da lei maior, sendo, portanto, recepcionadas pela Constituição.

Percebeu-se, nesse contexto, que o CC/16 estava desalinhado com a ordem jurídica constitucional e a realidade social, pois, de acordo com os novos pilares, especialmente a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade, os valores tutelados no antigo diploma civil ficaram ultrapassados e em colisão com a nova diretriz vigente no Ordenamento Jurídico após a edição da Carta Magna.

Referências

Documentos relacionados

Na primeira foram analisados os dados contidos na Pla- nilha Rede Amamenta Brasil que faz o acompanha- mento de crianças de 1-15 meses que comparecem às Unidades Básicas

No entanto, após 30 dias de armazenagem, o teor de fármaco nas suspensões decaiu para valores próximos a 50 % nas formulações que continham 3 mg/mL de diclofenaco e núcleo

Buscando respostas sobre qual Geometria se fez presente na formação dos professores primários entre 1940 e 1970, o artigo traz uma discussão inicial sobre o

Este encarte apresenta os principais resultados para a Região Sudeste da pesquisa Empreendedorismo no Brasil 2014 - GEM 2014, versão nacional para o projeto Global

Os volumes de cada solução foram calculados para que, da mesma forma que nos catalisadores híbridos, a razão mássica entre o catalisador de síntese de

Há duas formas de aleitamento de bezerras: “ao pé” e “no balde”. No primeiro caso a bezerra é criada ao pé da vaca, mamando o leite diretamente nas tetas da mãe. No

• Para-brisas com proteção para as mãos • Kit Top Case com suporte amovível • Cobertura de proteção para as pernas • Capa de proteção para o veículo • Sistema de

Alguns fatores tais como temperatura, concentração de sal, acidez e pH da salmoura interferem diretamente no tempo e na qualidade da