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Criadora de Deveres Anexos

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 52-57)

2.4 Funções da boa-fé objetiva

2.4.2 Criadora de Deveres Anexos

A segunda função da boa-fé objetiva, se caracteriza pela criação de deveres jurídicos agregados à obrigação contratual principal.

Antes de adentrar mais especificamente nesta questão de deveres laterais ou anexos, ou mesmos os secundários, não se pode perder de vista que todo negócio jurídico, no qual há a assunção de obrigações entre as partes, prevê como objetivo principal a realização de determinada conduta, seja de prestar serviços, pagar remuneração, entregar coisa, dentre outros.

Partindo-se desta premissa da existência de deveres principais, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.586) é categórico ao afirmar que a relação jurídica obrigacional comporta outros deveres:

A complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo obrigacional abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta.

Logo, esta função impõe que, ao lado da obrigação principal de determinado negócio jurídico, surjam outros deveres, anexos, que devem ser cumpridos por ambas as partes, como o dever de cuidado em relação à outra parte negocial; dever

de respeito; dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de lealdade e probidade; dever de colaboração ou cooperação; dever de agir com honestidade; dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão etc. (TARTUCE, 2011).

Justifica-se a presença de deveres principais, secundários e laterais na relação obrigacional, pois esta, como uma totalidade voltada a assegurar o adimplemento, não se resume a deveres de prestar, isto é, os deveres primários, ou mesmo secundários correlatos, mas sim diversos outros, sejam acessórios, implícitos ou independentes, na busca do idôneo cumprimento contratual de acordo com a boa-fé objetiva.

Aqui se faz necessário estabelecer uma diferença entre os deveres primários e secundários e os deveres laterais ou acessórios,39 para que sejam estancadas dúvidas ou confusões acerca da existência e pertinência de cada qual.

Os deveres primários, segundo Fernando Noronha (1994) são aqueles que estão relacionados à realização da prestação principal. Para Edilton Meireles (2004, p.59), os deveres principais seriam aqueles “encontrados no núcleo da relação jurídica obrigacional e que definem o tipo contratual”. De forma exemplificativa, traz como primários o dever de entregar a coisa e pagar o preço estabelecido no contrato de compra e venda; o dever de prestar os serviços de forma subordinada e o pagamento da remuneração ajustada, no contrato de emprego, dentre outros.

39 Fernando Noronha (1994, pg.161) propõe que os deveres de conduta oriundos da relação obrigacional sejam divididos da seguinte forma:

“a) Deveres principais, ou primários, seriam aqueles que se traduzem na realização da prestação debitória; seriam, afinal, o „débito‟ das análises clássicas da obrigação. Uma relação obrigacional pode ter apenas um dever principal (ex.: devolver a coisa emprestada), ou dois ou mais, se várias forem as prestações, como sucede nos contratos com prestações correlacionadas (ex.: as obrigações específicas do comprador e do vendedor). Têm também diversos deveres principais as relações obrigacionais duradouras, onde cada parte deve realizar repetidas prestações principais (pagamento do salário todos os meses, prestação do trabalho a cada dia útil, etc).

b) Deveres secundários, ou acessórios, seriam aqueles dirigidos à realização de prestações ainda específicas, mas diferentes da prestação principal. Algumas destas prestações são sucedâneas do dever principal, como a indenização por inadimplemento; outras coexistem com o dever primário, sem o substituírem, como a indenização no caso de mora; outras ainda, e bem mais numerosas, são necessariamente acessórias da prestação principal, tendo por finalidade exclusiva assegurar a realização desta – como o dever de guardar a coisa a ser entregue, o de acondicioná-la para transporte, de providenciar o próprio transporte, quando tal tiver sido acordado.

c) Deveres laterais, ou correlatos (como chamados pelo Prof. Bittar), ou ainda deveres de proteção (dorevu di protezione, na terminologia consagrada na Itália), ou simplesmente outros deveres de conduta, como lhe chama Larenz, seriam aqueles que não dizem respeito a prestações específicas, ainda que só auxiliares para o cumprimento do dever principal de prestação, antes visam proteger a pessoa e os bens da outra parte contra riscos de danos e, em geral, auxiliar na realização das finalidades da própria relação obrigacional.”

Os deveres secundários englobam, de um lado, os deveres acessórios da obrigação principal, ou seja, sem autonomia perante esta (destinados a preparar o cumprimento ou assegurar a sua execução) e, de outro, os deveres relativos às prestações substitutivas ou complementares da obrigação principal, também chamado de deveres secundários, com prestação autônoma.

Na seara trabalhista tem-se entendido, majoritariamente na jurisprudência nacional,40 como obrigação secundária autônoma do empregador a manutenção do plano de assistência médica particular, mesmo em caso de suspensão contratual, hipótese em que se suprimem as obrigações principais de prestar o trabalho e pagar o salário. Esta situação apenas vem a confirmar a independência destes deveres perante a obrigação principal, sob pena de se descaracterizar o sentido da boa-fé na relação contratual de trabalho.

Segundo Eduardo Milléo Baracat (2003), os deveres secundários são encontrados ao longo de toda a relação jurídica, seja antes da celebração do contrato, durante a sua execução, ou mesmo após a sua extinção.41 Isto posto, tanto

os deveres primários como os secundários, ligados à prestação principal, podem ser previamente reconhecidos.

Os deveres laterais, por sua vez, não estão necessariamente ligados à obrigação principal42 e decorrem, na verdade, da cláusula geral da boa-fé. “São

ditos, geralmente, „deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses‟, e se dirigem a ambos os participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor” (MARTINS-COSTA, 2000, p.439). Tais deveres têm origem não voluntarista, pois

40 SÚMULA 440 DO TST. AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. RECONHECIMENTO DO DIREITO À MANUTENÇÃO DE PLANO DE SAÚDE OU DE ASSISTÊNCIA MÉDICA - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012. Assegura-se o direito à manutenção de plano de saúde ou de assistência médica oferecida pela empresa ao empregado, não obstante suspenso o contrato de trabalho em virtude de auxílio-doença acidentário ou de aposentadoria por invalidez

41 Neste sentido, tem-se o Enunciado n. 25 do CJF/STF da I Jornada, o qual aduz:

“o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós -contratual.” Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 20 out. 2011. Igualmente, o Enunciado n. 170 do CJF/STJ da III Jornada enfatiza: “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.” Apesar de aparentemente se mostrarem bastante semelhantes os dois enunciados, Flávio Tartuce (2011, p.504) esclarece que os mesmos possuem “conteúdos diversos, pois o primeiro é dirigido ao juiz, ao aplicador da norma no caso concreto, e o segundo é dirigido às partes do negócio jurídico.”

42 Judith Martins-Costa (2000

, p.440) ressalta esse aspecto: “O que importa sublinhar é que, constituindo deveres que incumbem tanto ao devedor quanto ao credor, não estão orientados diretamente ao cumprimento da obrigação principal ou dos deveres principais, como ocorre com os deveres secundários.”

surgem da cláusula geral da boa-fé e independem da vontade das partes, podendo surgir mesmo contrários a essa vontade. Esses deveres anexos ou laterais não podem ser previamente estabelecidos, vez que dependem da relação jurídica concreta da qual decorrem (SCHREIBER, 2007).

Entende-se que a quebra dos deveres anexos da relação obrigacional gera a violação positiva de contrato, imputando a responsabilidade àquele que descumpriu a boa-fé objetiva, independente de culpa. Essa foi a mesmo conclusão adotada pelo Conselho da Justiça Federal ao editar o enunciado nº 2443. A violação positiva de contrato sintetiza a noção de que “o devedor responde pela não realização da prestação” (MENEZES CORDEIRO, 2011a).

Justifica Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011a, p.595) este dever de indenizar decorrente da violação positiva de contrato pelos seguintes motivos:

Havendo, entre as partes, uma ligação obrigacional, gera-se, com naturalidade, uma relação de confiança na base da qual é, em especial, possível o infligir mútuo de danos; a boa-fé comina deveres de não o fazer. Esta análise permite constatar a presença na obrigação, de deveres de cumprimento, que visam o prosseguir efectivo do interesse do credor na prestação e deveres de protecção que pretendem obstar a que, a coberto da confiança gerada pela existência de uma obrigação, se produzam danos na esfera das partes.

No ordenamento jurídico nacional, como dito alhures, a quebra dos deveres jurídicos anexos ocasiona a violação positiva do contrato, imputando àquele que desrespeita as regras da boa-fé objetiva a responsabilidade civil independente de culpa, como reconheceu o Conselho da Justiça Federal através do enunciado 363.44

Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2011b, p.604-606) divide os deveres acessórios45 em três categorias: os deveres de proteção, de esclarecimento

43

“Enunciado nº 24 Conselho da Justiça Federal - Art. 422: em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de

inadimplemento, independentemente de culpa” (Disponível em:

<http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf >. Acesso em 25 out 2011). 44

“Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação.” Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf>. Acesso em: 25 out. 2011.

45 Judith Martins-Costa (2000) enumera outros deveres, tais como: deveres de cuidado, previdência e segurança; deveres de aviso e esclarecimento; deveres de informação; o dever de prestar contas; os deveres de colaboração e cooperação; os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; os deveres de omissão e de segredo.

e de lealdade. Ensina que pelos deveres acessórios de proteção “considera-se que as partes, enquanto perdure um fenômeno contratual, estão ligadas a evitar que, no âmbito desse fenômeno, sejam infligidos danos mútuos, nas suas pessoas ou nos seus patrimônios”. Já quanto aos deveres acessórios de esclarecimento enfatiza:

[...] obrigam as partes a, na vigência do contrato que as une, informarem-se mutuamente de todos os aspectos atinentes ao vínculo, de ocorrência que, com ele tenham certa relação, e ainda, todos os efeitos que, da execução contratual, possam advir.

Por fim, em relação aos deveres acessórios de lealdade ressalta:

[...] obrigam as partes a, na pendência contratual, absterem-se de comportamentos que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado. Com esse mesmo sentido, podem ainda surgir deveres de actuação positiva. A casuística permite apontar, como caracterização desta regra, a existência, enquanto um contrato se encontre em vigor, de deveres de não concorrência, de não celebração de contratos incompatíveis com o primeiro, de sigilo face a elementos obtidos por via da pendência contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte e de actuação com vista a preservar o objectivo e a economia contratuais.

Os deveres jurídicos laterais estabelecem a obediência a modelos de comportamento pré-estabelecidos, que sequer estão relacionados à obrigação principal, decorrendo de um mandamento legal, ou de um comportamento previamente estabelecido pela sociedade. A inobservância de um dos deveres acessórios, os quais são exigíveis como prestações autônomas, representa a violação à própria boa-fé objetiva e não simplesmente em descumprimento de normas de natureza meramente moral ou social.

Os deveres jurídicos laterais oriundos desta função da boa-fé objetiva apresentam-se em rol meramente exemplificativo, destacando a doutrina, na relação empregatícia, os deveres de cuidado, previdência, proteção e segurança com a pessoa e o patrimônio da contraparte, inclusive contra danos morais. Revelam-se importantes, também, os deveres de comunicação e informação, compreendendo os avisos e esclarecimentos que ambas as partes devem prestar para a correta e melhor execução do contrato em todas as suas fases.

Edilton Meireles (2004, p.64) pontua como primordiais os deveres de prestar contas na relação empregatícia, deveres de omissão e segredo e os deveres de lealdade, colaboração e cooperação. Afirma, ainda, que o dever de colaborar assume a seguinte conotação:

O dever de colaborar, assim, assume, em face da boa-fé objetiva, não só um caráter negativo (se abster de qualquer ação contrária aos interesses do co-contratante), como, também, um conteúdo, positivo, pois o contratante deve adotar um comportamento tendente à execução do contrato da melhor maneira possível para todas as partes interessadas. Antes de travar uma “luta” contra o co- contratante, deve-se ter como aliado ou parceiro. Colaborar, portanto, não é só trabalhar com o outro, senão trabalhar cuidando dos interesses legítimos desse outro.

O dever de omissão consiste em se abster de qualquer ação contrária aos interesses da contraparte, evitando-lhe prejuízo.

Ao lado, portanto, dos deveres inerentes ao cumprimento da obrigação principal, a boa-fé objetiva impõe tantos outros deveres, de observância obrigatória, a fim de prestigiar a confiança criada nas relações sociais.

No documento DOUTORADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAS (páginas 52-57)