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CAPÍTULO I QUESTÕES DO APRENDER: CADA LUGAR NA SUA COISA

CAPÍTULO 3 A CENA TEATRAL SERGIPANA (COM ZOOM SOBRE ARACAJU): FORMAÇÃO E PRÁTICA ARTÍSTICA

3.1.3 A boemia e a contracultura aracajuana

As lembranças de Amaral Cavalcante nos antenam para algo que, de fato, marcou aquelas gerações, porque uma importante relação se estabeleceu entre o pessoal do Dzi, que estava excursionando pelo Brasil, em pleno gozo daquele sucesso, imediato,

e a casa de Cavalcante, um espaço alternativo, logo atraído pelo grupo, que por lá permaneceu por alguns dias. Aracaju vivia as manifestações culturais de um tempo de contracultura brasileira, como vemos no depoimento de Cavalcante.

Eu morava com Erê e eu tinha uma casa na Rua Luís Chagas, uma casinha de pescador, e eles ficaram no hotel, mas era lá em casa onde tudo se passava, né? Eles iam pra lá, porque lá, o pessoal daqui também ia toda pra lá. Nessa casa a gente teve vários encontros interessantíssimos, e essa interação, quer dizer, veja, o artista não ia pra o, vamos dizer, pra o bar, o armazém, pra o restaurante, não. Iam pra casa do Amaral e do Erê, se encontrar com a rapaziada toda da cidade. E isso era uma coisa muito produtiva, da cidade, tá entendendo? Não é só produzir, por exemplo, o Balé Stagium, que era muito amigo nosso, vários desses artistas globais, né? Inclusive quando vinham para Aracaju era para minha casa que eles vinham e de lá a gente saía para algum bar. Podia ser o Cio da Terra, um bar muito maluco, ou o Barbudos, que detém a história da boemia lisérgica sergipana e era quartel general do pessoal do Folha da Praia, ou o Lumiar, que era um bar que era também muito maluco, e o Panela da Arte, todos instalados em Atalaia. Esses bares já foram criados por essa turma, porque nós éramos muitos, nós estávamos nas ruas, hoje nós estamos em casa. Naquele tempo nós estávamos, literalmente, nas ruas, e a gente tinha que beber em algum lugar. Mas, então, a casa era muito doida e nela a gente interagia, vinham grupos para o Festival de São Cristóvão e eles passavam uma horinha lá em casa, interagia. Quer dizer que aquela era uma casa que você entrava e você saia, era uma casa que não tinha móvel e não tinha nada, era apenas um colchão no chão e tamborete. Mas, aquela casa era muito agradável, muito bonitinha e muito astral, o astral muito alto, e todo mundo andava, havia interação (CAVALCANTE, 2013).

Eram os Anos de 1970, os encontros dos artistas e intelectuais mais antenados com o movimento da contracultura se davam em espaços mais libertários, e é interessante, a partir desse olhar de Amaral Cavalcante, publicado em seu facebook, conhecermos um período emblemático para a formação cultural de uma geração que viveu a vigilância da ditadura militar, na perspectiva da alma cultural aracajuana de então.

Tenho alguma lembrança do Bar Lumiar. Ficava lá pra dentro da Atalaia, ao pé de uma ladeira íngreme, despovoada, que poucos ousavam escalar. Fim de mundo só permitido a quem sabia onde a curtição se escondia, quer dizer: nós todos, os macrobióticos, empanturrados de arroz integral e grão de bico, mas ainda bêbados do cuba-libre que nos anestesiava, parávamos por lá. Uma parada que se

nos prestava muito bem naqueles confusos idos, quando bastava um público qualquer e um tiquinho só de aceitação para a satisfação do nosso ego. A casa tinha muro de comungol delimitando o pedaço, mas eram baixinhos, facilmente galgáveis. Jardins extensos e avarandados nos quatro lados, que o dono enchera de mesas e caqueiros para acomodar a moçada moderna, o público pagante que adorava conviver com os alternativos. Os alternativos éramos nós, os artistas - a mais interessante maluquice dos Aracajus, nos anos setenta. Era um lugar pretensamente chic onde um quebrado qualquer, trepado no muro com uma cerveja quente e, sequer, algum dinheiro pra repeti-la, tinha permissão de ficar enfeitando a casa, como atração. O barato da Atalaia já não era o coqueiro postal, nem os coloridos casebres dos pescadores, nem caranguejos descomunais com garras enormes quebradas por turistas nos bares da orla. Era o folclore cedendo moda aos estranhos poetas que intrigavam a cidade: cabeleiras ao vento, panos mínimos cobrindo excitações explícitas, um circo de possibilidades estéticas e permissividades afetivas. Belas crianças loucas anunciando a maravilhosa era de Aquárius. Muito doidos, pois sim... como costumávamos ser os poetas de então. Curtimos uma maluquice engraçada, trepados no muro do Lumiar. Depois, ficou fácil ao Cio da Terra aparecer. Já bem pra cá, perto do mar, Fitti abriu um bar diferente - o Cio da Terra era nosso! Lá estavam Erê, em libertárias performances, Joubert, o artista completo da nossa geração, Ilma Fontes - mãezona de todos nós - e os melhores fotógrafos, poetas, dançarinos, atores sem palco, as mais belas figuras que Aracaju tinha a oferecer. No Cio da Terra, consultávamos o I Chig declamando Omar Kayan e ouvíamos Ravi Shankar em posição de Lótus. Caetano e Gil, Ednardo e Belchior, Raul Seixas nem se fala, mas era Iansã que nos perfumava a noite e meu pai Oxalá, o nosso guia. O Cio da Terra retornou à aldeia um certo sincretismo perdido que a minha geração restaurou. A inusitada incursão oriental nos revelara o caminho das pedras: a poesia tropical, deslumbrante e colorida, era mais velha que os Pedro Alvares Cabral que nos acinzentavam a história. Soubemos, então, os Hippies e Beatniks, que o mundo era mesmo redondo e que a nossa arte podia ir além das geografias. A luz no Cio era pouquinha, que o brilho maior teria que ser o nosso. Os frequentes - que já chegavam ligados – eram somente os permitidos. E o papo, ora meu Deus, sempre em torno da mais interessante novidade: de Andy Warhol a Debret, de Oscar Wilde a Jean Genet, e, se faltasse viagem, Jean Paul Sarte na veia. No Cio da Terra estávamos expostos a um turbilhão de possibilidades estéticas e a arte era moeda corrente. A preciosa maluquice, também. De uma noitada lá, eu lembro bem: em homenagem a Eric Clapton, o bailarino Erê resolveu aparecer envolto em parcas peles, encarnando um majestoso Guaxinim, decidido a incluir na programação do bar o blues reinante em nosso quintal. Inaugurava Erê uma coreografia nova, felina, refazendo-se em formas e lubricidade. Ora gemendo um coito, ora acendendo estrelas sem parar, sempre excitante e belo, até que o bar se desfizesse numa madrugada improvável, todos roendo a parede do vizinho, os olhos cheios de noturnidades, fartos do confinamento que o

próprio bar nos impunha. Acabamos no mar. Lindos, bêbados e nus (CAVALCANTE, 2013).

Desde os anos de 1960, aliás, podemos registrar, conforme Cavalcante, ao modo da Boate Anjo Azul, em Salvador, Bahia, a existência de “antigos cabarés, onde a arte existia, onde as pessoas se encontravam, o povo mais rico e tal, e ali assistiam a apresentações de dança, engolidor de fogo, bailarinas e pequenos esquetes teatrais”. (Entrevista concedida em 20.08.2013). Sua fala vai encontrar eco na história da prostituição, em particular, com o advento da monogamia, pois, nesse conjuntura

Os administradores das cidades da antiguidade criaram casas de prostituição, monopólio do Estado, onde mulheres escravas se entregam aos homens. Dessa organização, surgiram três grupos de Servas de Vênus, tais como, as dicteríades, desprezadas escravas dos bordéis, que pagavam pesados tributos, denominados de pornikotelos, sobre o que lucrassem e que eram subordinadas a funcionários de baixa categoria. As aulétrides, tocadoras de flauta e dançarinas, que se apresentavam por ocasião dos banquetes, festas e solenidades, mas que não sofriam um regulamento tão rigoroso, pois eram vistas com simpatia, pelos seus dotes artísticos, apesar de funcionarem como auxiliares das dicteríades. E, finalmente, as hetairas, consideradas como rainhas, que além dos dotes físicos, possuíam dotes intelectuais que as permitiam desempenhar papel de relevo na cultura helênica, introduzindo-se nos rituais teatrais e no mercado, pois no período áureo da cultura ateniense, as outras mulheres, as virgens e as matronas, permaneciam em seus respectivos aposentos femininos (BENEVIDES, 2006, p.96).

Além da área do bairro de Atalaia, no centro da cidade de Aracaju, nas proximidades da rodoviária velha, também havia outros bares para onde convergiam os artistas e os chamados alternativos aracajuanos. Entre eles, sua memória destaca o Bar 315, “que foi o bar da minha geração, nós madrugávamos e que, invariavelmente fechava as quatro, cinco horas da manhã, mas as pessoas saíam do Iate Clube, iam e pra lá de vestido longo, paletó, tá entendendo, porque lá estavam os artistas” (CAVALCANTE, 2013), sinaliza, recordando que o 315, “com aquela luz azul, parecendo um aquário, aquela coisa surrealista, era de propriedade de Augusto, bonitão, muito louco, que contava com a presença do cozinheiro Bete Davis” (CAVALCANTE, 2013)

Interessante mesmo é notar que, em Sergipe, “sempre aconteceu, nesses tempos que estou falando, uma mistura, quer dizer, sempre houve pessoas da sociedade frequentando esses ambientes” (CAVALCANTE, 2013), comemora, trazendo ainda a lembrança do Bar do Pinto, “estritamente importante, que já desapareceu mas, que eu tenho uma crônica sobre ele” (CAVALCANTE, 2013), considerando, ainda , na mesma entrevista, que os bares do Baixo Barão “foi uma invenção que não durou muito, eu não frequentava, não gostava muito não, porque o povo era bem vestidinho, muito perfumado, não era ambiente de artista, era de jovem universitário, mas era um ambiente mais careta” (CAVALCANTE, 2013). No entanto, para ele, o Gosto Gostoso, era um ambiente mais político e mais interessante.

Os artistas e a boemia dos anos de 1970 se encontravam, também: no Instituto Histórico e Geográfico; no Cacique Chá; no Redendê, que ficava no Centro do Turista e na Yara, onde era possível encontrar Eurico Luis, artista plástico; Macaô e João Sapateiro, de Laranjeiras, que eram poetas; os atores Aglaé Fontes e Clodoaldo Alencar, Vieira Neto, Valfram de Brito e muitos outros. Estes locais se constituem em espaços de memória cultural e merecerem um olhar investigativo por parte de pesquisadores que tenham o compromisso político de registrar a história das cidades.