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O Bom Pastor em Belo Horizonte e as negociações para a doação do espaço do asilo

4 O TRABALHO DAS ASSOCIADAS CATÓLICAS A FAVOR DA INFÂNCIA DESVALIDA E DAS “MULHERES PERDIDAS”

4.1 O Asilo Bom Pastor

4.1.1 O Bom Pastor em Belo Horizonte e as negociações para a doação do espaço do asilo

A propriedade onde se estabeleceu o Asilo Bom Pastor em Belo Horizonte foi doada por Mariana Carolina Pinto Coelho, filha do arquiteto e coronel Júlio Pinto Coelho, que participou da execução do projeto de construção da capital mineira. A propriedade estava localizada no bairro Floresta e dispunha de três casas: uma chácara chamada Casa Velha, situada na Rua Jacuí, uma casa de esquina, entre a Rua Jacuí e Pouso Alegre, e um casarão no encontro das ruas Pouso Alegre e Januária.

Pedro Nava, que era primo de Mariana, hospedou-se no casarão da família antes de ser admitido no internato do Colégio Pedro II. Em suas memórias ele descreve o casarão,

Nunca tinha visto nada mais limpo e geométrico que a residência do tio Júlio. Nem uma poeira sequer mancha, sujeira, nódoa, pedaço de papel no chão, fio de linha caído. Tudo reluzia limpeza. Tudo brilhava esfregado.

270 CAMPOS, Margarida de Morais. A Congregação do Bom Pastor na Província Sul do Brasil

pinceladas históricas. São Paulo: [s.n], 1981.

271 MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. 2ªEd. São Paulo: Hucitec,

2006.

272 FONSECA, Sérgio C. A interiorização da assistência à infância durante a Primeira República:

de São Paulo a Ribeirão Preto. In: Educação em Revista v.28 n.1. Belo Horizonte, 2012. p. 79- 108.

Cada coisa no seu lugar. Sentei a medo numa beira de cadeira estofada e senti a prisão do silêncio que se adensava, chegando perto do ponto cróscopico.273

A descrição de Nava revela a aspiração da classe média urbana, que pensava os cuidados e higiene da casa como um prolongamento dos valores da modernidade.274

A proximidade da casa destinada ao asilo com o colégio Santa Maria facilitava a presença e intervenção das Filhas de Maria no cotidiano do Bom Pastor, seja no cuidado das meninas ou instruindo as mulheres asiladas. O livro sobre a história da Congregação no Brasil afirma que Marianinha (como era conhecida), estudou no Colégio Santa Maria e com o tempo tornou-se membro e presidente das Filhas de Maria da capital. Assim, à primeira vista e pelos documentos oficiais emitidos pela Congregação Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, Marianinha enquadrava-se dentro das características das mulheres ligadas ao associativismo católico, tendo estudado em um importante colégio de formação católica, sendo solteira, membro atuante das Filhas de Maria e posteriormente tendo ingressado na vida religiosa.

No entanto, ao lermos a obras Balão Cativo e Galo das Pedras, de Pedro Nava, observamos que Marianinha nasceu em Petrópolis, na casa de amigos do seu pai e lá se criou até os 8 anos. Segundo Nava, o pai de Marianinha “era insuportável, a mulher não o aturou e cedo raspou-se para São Paulo, onde morreu”. Com a ida da mãe para São Paulo, Marianinha ficou sob os cuidados de sua tia paterna, Joana Carolina Pinto. D. Joana abriu, em Juiz de Fora, uma escola para meninas, em esquema de internato, para educar a sobrinha.275 Em fins do século XIX, no início da construção da capital mineira, Marianinha,

juntamente com seu pai e sua tia, mudou-se para Belo Horizonte e instalou-se no “castelinho” do bairro Floresta. Ao longo dos anos, vários parentes moraram com a família de Marianinha.

O primeiro ponto a se observar é que a família de Mariana estava distante do padrão da família nuclear tradicional prescrito pela Igreja Católica. Viveu parte de sua infância com desconhecidos e sua mãe não se submeteu à tirania do pai, abandonando a família. Além disso, há indícios de que ela era ateísta, como pai, e só tardiamente engrossou as fileiras do associativismo católico. Sobre isso relata Nava,

273 NAVA, Pedro. Balão Cativo, poemas Carlos Drummond de Andrade, José Geraldo Nogueira

Moutinho. Apresentação de André Botelho, crônica Paulo Mendes Campos. São Paulo. Companhia da Letras, 2012. p.118.

274 NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da vida privada no Brasil: da Belle Epoque a Era do

Rádio. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 367 – 421.

275 NAVA, Pedro. Balão Cativo, poemas Carlos Drummond de Andrade, José Geraldo Nogueira

Moutinho. Apresentação de André Botelho, crônica Paulo Mendes Campos. São Paulo: Companhia da Letras, 2012. p. 122-124.

Mariana Carolina (Marianinha) que professava como o pai, um ateísmo desenfreado e proclama-se anticlerical convicta, aos poucos fora fraquejando indo a missa vez que outra, depois todos os domingos. Começara a receber visitas de Filhas de Maria da Floresta, das Dominicanas do Santa Maria, da Mrs. Dobsn irlandesa e agregada ao Colégio dessas irmãs e finalmente a Anita Monteiro Machado dobrara-lhes as últimas resistências e fizera-a Filha de Maria aí por volta de 1918 e 1919. Começara a partir de então, vida cada vez mais devota, a princípio com missas diárias, depois com comunhões diárias. Abandonara completamente suas atividades culinárias suas virtuosidades musicais e agora não saía mais das irmandades, e era assídua em visitas às Dominicanas, às irmãs da Santa Casa, às do Sagrado Coração, às do Orfanato de Santo Antônio. E punha na beateria o mesmo entusiasmo que pusera outrora na negação de Deus.276

Apesar de sua formação secundária no colégio Santa Maria, Marianinha pregava o ateísmo e apenas depois dos 30 anos de idade passou a atuar nas associações católicas e nas instituições de caráter filantrópico. Sua trajetória é uma amostra de como as mulheres daquele tempo utilizaram-se do associativismo católico, não apenas por devoção ou caridade, mas também como uma possibilidade real de alcançar seus objetivos. Nesse caso em específico, Marianinha era uma mulher sem crença religiosa, uma “solteirona” dedicada aos cuidados domésticos e da tia, tendo como única distração a música e a culinária. Ao ingressar no associativismo, Marianinha mudou seus hábitos, abandonou o espaço da casa, os cuidados domésticos e passou a transitar pela cidade, nos circuitos das instituições filantrópicas. Como podemos ver no excerto acima, Marianinha atuou junto às irmãs da Santa Casa, do Sagrado Coração de Jesus e do Orfanato Santo Antônio.

Conta Campos que desde o ano de 1919, mais ou menos o mesmo período em que Marianinha se converteu ao catolicismo, representantes da Ordem da Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor articulavam a possibilidade da construção de uma instituição congênere em Belo Horizonte. Ciente desse interesse, Mariana, que dispunha da herança de seu pai, propôs a doação de sua propriedade e fortuna em troca do direito de ser admitida pela ordem Bom Pastor. Como tinha 37 anos e o limite de idade para entrar em qualquer ordem religiosa era de 35 anos, seu pedido foi avaliado pela Madre Superiora, na França, sendo aceito logo em seguida.

Outra condição imposta por Marianinha na negociação com a Congregação Bom Pastor foi a de que sua tia, de 65 anos, tivesse o direito de ser assistida pelo asilo até a sua morte. Imposição que em certa medida foi atendida, dona Joana morou na chácara velha até seu falecimento, mas queixava-se do mau tratamento que recebia das religiosas e a insatisfação de ter que conviver e dividir as refeições com as asiladas e ter sua mesada

276 NAVA, Pedro. Galo das Trevas: poesias de Gastão de Castro Neto e Olavo Drumond

– São Paulo: Atelie e Editorial, 2003. p.349.

cortada277. Em 1930, com o falecimento de D. Joana, a casa em que vivia foi transformada

numa nova ala do asilo, chamada Preservação.

Como parte do acordo, Marianinha entrou no noviciado do Rio de Janeiro em setembro de 1921. Em 13 de março de 1922 recebeu o hábito religioso sob o nome de Irmã Maria do Santo Tabernáculo. Conta Nava que antes de entrar no noviciado, Marianinha viajou secretamente para a Bahia sem se despedir de ninguém, deixando apenas uma carta à sua prima Diva. Na carta ela anunciava estar desiludida de tudo e dizia que passaria o resto de sua vida em penitência pelos pecados dos seus – que era a cruz que tomava sobre seus ombros.278 Há registros que Marianinha, depois de tornar-se noviça, foi definitivamente

para Bahia e em 1926 fundou um jardim de infância que atendia crianças da elite Baiana.279

Conta Nava, sobre Marianinha,

Minha prima tinha o nome da avó, Mariana Pinto Coelho, não usava o Cunha. Tinha nos traços a mesma pureza antiga e escultórica da cara de seu pai, que Ella reproduzia linha por linha. E os dentes admiráveis. E os olhos de um verde hortelã. E a pele dum moreno de jambo. Seria uma mulher bonita se não fosse o corpo desastrado. Era alta, espadaúda e, apesar de gorda, tinha pouco busto. De nádegas, neres. O chamado tipo búfalo. Pior, pior, porque tinha um jeitão másculo, que durante muito tempo me deixou induzido ao erro. Foi caso de conversa que bispei entre tia Berta e tia Iaia. A primeira estranhava que a Marianinha era rica e bonita, não tivesse achado casamento. A segunda baixou a voz, perguntou a outra, como é que a prima podia casar? Com aquele defeito que tinha....Impossível uai! Gente que defeito? Ai veio o cochicho que não pude escutar e mal revi a Marianinha em Belo Horizonte, com seu ar dedicado, sua energia, os ombros marciais e a cara sisuda, tendo ao mesmo tempo de bela mulher e belo homem, tirei minhas conclusões. Era aquilo. Era aquele negócio da figura que eu vira passar a socapa, de mão em mão, entre os colegas do Lucindo Filho. A prima era hemafrodita. Assim considerei (...)280

Diante da narrativa das características físicas e dos dilemas que circundavam a figura de Marianinha, podemos questionar também se a escolha pela Ordem do Bom Pastor não se deu pelo fato dela sentir-se uma “ovelha desgarrada”, por não enquadrar-se no padrão de feminilidade imposto às mulheres nesse período.

277 NAVA, Pedro. Balão Cativo, poemas Carlos Drummond de Andrade, José Geraldo Nogueira

Moutinho. Apresentação de André Botelho, crônica Paulo Mendes Campos. São Paulo: Companhia da Letras, 2012. p.117

278 NAVA, Pedro. Galo das Trevas: poesias de Gastão de Castro Neto e Olavo Drumond – São

Paulo: Atelie e Editorial, 2003. p.326.

279 CAMPOS, Margarida de Moraes. A congregação do Bom Pastor na Província Sul do Brasil

pinceladas históricas. São Paulo [s.n], 1981.

280

NAVA, Pedro. Galo das Trevas: poesias de Gastão de Castro Neto e Olavo Drumond – São

Como salienta Soihet281, a medicina social assegurava como características

femininas, por razões biológicas, a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais e a subordinação da sexualidade à vocação maternal. As características atribuídas às mulheres eram suficientes para justificar que se exigisse delas uma atitude de submissão e um comportamento que não maculasse sua honra282.

Marianinha, por sua vez, não atendia a tais atributos.

Marianinha era uma mulher culta, da elite e limitada ao espaço do lar. É possível inferir que ao entrar no associativismo católico ela ampliou suas redes e conseguiu, através da negociação com a Congregação Bom Pastor, dar novos rumos para sua vida. O que reforça nosso argumento de que as associações católicas foram utilizadas pelas mulheres não necessariamente para professar sua fé, mas, sobretudo, para acessar a vida pública.