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Cabe-nos agora proceder a levantamento de outros ocupantes do território da bossa nova, cuja associação com essa estética tende a ser negada ou obscurecida pelo senso co- mum. Para constituir uma amostra, recorremos a eventos e relatos da época da emergência e consagração do novo estilo, nos quais a associação entre este e os atores foi claramente afirmada. Recuperar e analisar os processos que conduziram de sua anterior inclusão à sua eventual exclusão afigura-se para nós procedimento promissor. Esperamos que esse proce-

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Maysa, um ano mais jovem que Alaíde, lança dois discos ao ano em 1958-61, cf. discografia em <http://

www.sombras.com.br/>, acesso em 31 mar. 2007; para a de Elizeth Cardoso, v. Cabral (199?b: 377-84). 39

Nossa análise, sobre dados providos por Jobim, Alencar & Severiano (1996: 285-91). 40

Alaíde, entrevistada nos anos 90 por Dreyfus (1999: 67), conta que seu terceiro e último elepê na RCA só teve apoio parcial da gravadora, que não pagou os músicos por ela escolhidos fora do elenco da casa. 41

dimento permita estabelecer aproximadamente as fronteiras desse fenômeno estético- discursivo.

A amostra é formada a partir de:

1) participantes do “Primeiro Festival de Samba-Session”, realizado no anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura, situada na avenida Pasteur, no bairro da Urca, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, em setembro de 1959;

2) participantes do “Segundo Comando da Operação Bossa Nova”, apresentação feita no auditório da Escola Naval, no Castelo, bairro do centro do Rio, em novembro do mesmo ano;

3) texto da reportagem de 10 páginas sobre a bossa nova, publicada em fevereiro de 1960 em O Cruzeiro, então o órgão de imprensa de maior tiragem no país; a reportagem foi dirigida à identificação dos autores e intérpretes do novo estilo musical;

4) participantes do espetáculo “A noite do amor, do sorriso e da flor”, também rea- lizado no anfiteatro da Faculdade de Arquitetura, em maio de 1960;

5) participantes do espetáculo realizado nessa mesma noite, no auditório da Pontifí- cia Universidade Católica (PUC), no bairro da Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro;

6) participantes do show promovido no Carnegie Hall, de Nova Iorque, em novem- bro de 1962;

7) nomes incluídos na posição bossanovista na matéria “de combate”, redigida co- mo testemunho pessoal por Ronaldo Bôscoli na revista Fatos & Fotos, em dezembro de 1962; e

8) os nomes identificados à nova estética no ensaio de Brasil Rocha Britto, primeira tentativa de abordagem sistemática do novo estilo em termos técnicos, publicado em outu- bro-novembro de 1960.42

O inventário das inclusões de nomes de autores e intérpretes, dados em cada caso como pertinentes à estética bossanovista, aparece no Quadro 5, na próxima página. A lista de que se compõe o Quadro contém apenas os nomes não-consensuais. Excluímos, por serem redundantes, aqueles cujo pertencimento à bossa nova – ou vice-versa – é inteira- mente consensual, não importando a fonte consultada, e que situamos no núcleo denso da posição.

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Republicado em Campos (1968: 13-36). Não encontramos informação sobre Rocha Brito em Marcondes

(1998), no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, em <http://www.dicionariompb.com.br/>,

acesso em 14 Fev 2007, nem na versão impressa deste último, Albin (2006). Campos (1968: 8) declara-o “musicólogo”, com a credencial de haver estudado com Koellreuter. Nas menções de seu nome em páginas

QUADRO 5

Autores e intérpretes associados à bossa nova em 1959-62 43

(1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8)

Artistas FacArq59 EscNav59 Cruz60 FacArq60 PUC60 Carnegie62 Bôscoli62 BRB60

Agostinho dos Santos xxx xxx

Ana Lúcia xxx xxx Astrud Gilberto xxx Baden Powell xxx Billy Blanco xxx Bola Sete xxx Caetano Zamma xxx xxx xxx xxx Carlos Queiroz xxx Carmen Costa xxx Chico Feitosa xxx xxx xxx xxx xxx xxx Claudette Soares xxx xxx Claudio Miranda xxx Dolores Duran xxx xxx Dori Caymmi xxx Dulce Nunes xxx xxx Elza Soares xxx xxx Geraldo Cunha xxx Johnny Alf xxx xxx José Paulo xxx Juca Chaves xxx Lenita Bruno xxx Lúcio Alves xxx xxx xxx Luely Figueiró xxx

Luís Carlos Vinhas xxx xxx xxx Luiz Bonfá xxx xxx

Marisa (“Gata Mansa”) xxx

Maysa xxx xxx Milton Banana xxx Nana Caymmi xxx Nara Leão xxx xxx xxx xxx xxx Norma Bengell xxx xxx xxx xxx xxx Normando Santos xxx xxx xxx xxx xxx Os Cariocas xxx xxx Oscar Castro Neves xxx xxx xxx xxx xxx xxx Pacífico Mascarenhas xxx Pedrinho Mattar xxx xxx Roberto Freire xxx Rosana Toledo xxx xxx xxx Sergio Mendes xxx Sérgio Ricardo xxx xxx xxx xxx xxx Sonia Delfino xxx Tamba Trio xxx xxx xxx Toninho Botelho xxx Trio Irakitan xxx xxx Vera Brasil xxx Vera Lúcia xxx Walter Santos xxx

No exame a que procederemos nesta seção – que também trata de “perdedores”, is- to é, de artistas que não “marcaram época” e cujas pegadas do percurso no campo foram por isso mesmo se esmaecendo nas últimas décadas – é inevitável que demos importância aos registros fonográficos, pois tendem a constituir “prova verificável”. Da mesma forma, avultará o recurso a textos de época e manifestações orais documentadas.

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Para as colunas 1, 2, 4 e 6, a fonte é Castro (1990: 225-7, 229-30, 236-7, 263-6). Para a coluna 5, Cabral (2001: 50), Castro (1990: 264) e Bôscoli (1994: 64). Para a coluna 7, Bôscoli (1962b). Para a 8, Brito (1960:

36). Oito das dez páginas da matéria de O Cruzeiro estão reproduzidas na seção Clipping, visitável a partir de

Isto, porém, coloca pelo menos três tipos de limitação ao fundamento empírico da pesquisa. Em primeiro lugar, o acesso a registros fonográficos é em muitos casos difícil. São numerosos os discos que hoje, e há longo tempo, permanecem “fora de catálogo” e estão ausentes de coleções acessíveis, mas cuja audição seria relevante para embasar ade- quadamente as análises de situações e percursos.

Em segundo lugar, tampouco são seguras as atribuições de data de lançamento das gravações. Essa ressalva se aplica a discos de quase todos os artistas. Informações presta- das pelas fontes aparentemente mais consolidadas, inclusive sítios virtuais de artistas ou a eles dedicados por admiradores, são por vezes inconsistentes umas com as outras e até em si mesmas. E essas datas são duplamente importantes. Para os artistas porque, nas disputas de legitimidade, a precedência costuma ser critério relevante; para nós, além disso, porque sugerem os laços que podem ter existido a cada momento e que, em relatos posteriores, são muita vez esmaecidos, deslocados ou omitidos. As informações providas por artistas, seus biógrafos e admiradores são, em suma, recursos empregados nas lutas simbólicas em que os artistas estão ou estiveram envolvidos. Por isso, tanto na forma quanto no conteúdo cos- tumam ser preparadas apropriadamente a tais escaramuças.

Em terceiro lugar, mesmo que tivéssemos acesso a tudo o que ficou gravado, ainda assim só chegaríamos a uma parte do que informava e condicionava as escolhas dos atores naquelas situações. Abordaremos essa limitação ao analisar, adiante, o percurso da cantora Claudette Soares.

Para reduzir as perdas decorrentes dessas dificuldades de acesso à empiria, procu- ramos, em primeiro lugar, ouvir o máximo de registros fonográficos de época, tanto em discos de vinil e cedês quanto em sítios de internet que os disponibilizam, especialmente as coleções de Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão, acessíveis no sítio do Instituto Moreira Salles.

Em segundo lugar, reunimos elevado número de relatos, de fontes primárias e se- cundárias, de época e posteriores, para possibilitar o cruzamento de informações sobre os mesmos eventos e situações. Pretendemos assim identificar com razoável precisão: a que se referem; o que dizem, o que querem dizer e o que omitem; e identificar seus lugares de fala, em face das oposições e disputas de que fazem parte. Nosso propósito é reconstituir o melhor possível as situações vividas pelos atores, para que possamos ensaiar respostas às perguntas sobre como eles imaginam o Brasil e como eles manejam as alternativas de posi- cionamento discursivo em face dessa comunidade que imaginam como sendo o Brasil.

No que toca às discografias, recorremos intensiva e criticamente às possibilidades da internet, como já ficou delineado na indicação de fontes na seção anterior. É principal- mente o cruzamento das informações coletadas de várias fontes que pode nos propiciar alguma segurança de haver estabelecido um dado com firmeza.

Quanto a informações impressas em periódicos, procuramos sempre que possível localizar a própria edição do periódico. Mas tivemos que utilizar transcrições lançadas em fontes intermediárias nos muitos casos em que, com os meios de que dispúnhamos, não foi

possível chegar à fonte primária. Esses cuidados, cruciais nesta seção, foram observados na coleta e análise de toda a empiria.

Desde o artigo de Brasil Rocha Brito sobre bossa nova, acumularam-se, na acade- mia e fora dela, abordagens desse fenômeno estético preocupadas ora (i) em discernir o que é e o que não é bossa nova, ora, ao contrário, mais votadas a (ii) demonstrar as cone- xões entre uma percepção de bossa nova e outros estilos musicais, de modo a de alguma forma desmanchar ou diminuir a nitidez das fronteiras que, segundo os primeiros, separam a bossa nova “do resto”.44

Neste estudo queremos reafirmar e demonstrar a ruptura, mas principalmente que- remos examinar as lutas das quais as afirmações de ruptura ou continuidade são manifesta- ções. Nosso critério não é primordialmente o estético, embora tenhamos que estar atentos à dimensão estética das enunciações. Nosso critério é social e ideológico, entendendo ideo- logia como conjunto de idéias articuladas, com maior ou menor elaboração crítica, num sistema de orientação da prática social do ator. A dimensão estética das enunciações é para nós, neste estudo, principalmente uma forma específica de expressão ideológica e cumpre socialmente funções de distinção.

Queremos entender e explicar como se comportam os atores inscritos em suas situ- ações e contextos sociais e, nesta seção, muito especificamente, queremos compreendê-los e explicá-los em sua relação com a bossa nova, dentro de uma abordagem dinâmica de espaço e tempo.

Das oito listas a que recorremos para formar nossa amostra de autores e intérpretes associados à bossa nova (Quadro 5), a fornecida por Rocha Brito é a mais numerosa. Mas ele próprio adverte que “nem todos os cantores que procuram se integrar na BN conse- guem realizar-se com felicidade dentro da nova concepção”, pois “há ainda um componen- te tradicional” não “superado” na sua técnica de enunciação do canto. João Gilberto pare- ce-lhe “o intérprete-cantor que melhor tipifica a concepção BN”, cujo “canto é isento de demagogia expressiva”. Ressalvando explicitamente apenas Sérgio Ricardo, Brito, cujo texto é do segundo semestre de 1960, entende que falta a vários outros cantores bossano- vistas “uma libertação completa do operismo, da pirotécnica interpretativa”. Ao mesmo tempo, reconhece valor na “diversidade de estilos interpretativos”, pois “representa um fator de enriquecimento” para essa proposta estética.45

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Enfoques “separadores” são, por exemplo, os de Brito (1960), Medaglia (1966) e Castro (1990). De outro lado, procuram enfatizar conexões, por exemplo, Cabral (1997a, 2001), Gava (2002) e Poletto (2004) – dedicando-se este último a demonstrar a modernidade do cancioneiro jobiniano gravado até 1958. Aborda- gens que buscam os dois enfoques nos parecem, por exemplo, as de Napolitano (1999: 23-40) e Garcia (1999). Este último, não obstante seu entusiasmo pela estética bossanovista, tanto indica a ruptura instituí- da quanto as conexões dessa estética, tal como corporificada nas enunciações de João Gilberto em 1958- 61, com manifestações anteriores. O primeiro tanto afirma a ruptura quanto indica a ampliação das frontei- ras ideológicas de enunciações bossanovistas em gravações de Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, já em 1960. 45

Seu critério é estético-musicológico. Tem sido reiterado, com maior ou menor de- senvolvimento, por diversos autores e tende a se erigir em definição canônica do estilo.46 Sua abordagem não nos servirá de “verdade” sobre a bossa nova, mas de parâmetro a que nos referiremos ao descrever os percursos dos diversos atores.

Pois não se trata de estabelecer aqui quem é ou não é bossa nova, ou de fazer “re- censeamento” de quem é. Haverá, por exemplo, autores e intérpretes importantes, facil- mente vinculáveis à bossa nova, que não foram apanhados na malha de relatos e aborda- gens que serviram de base à elaboração do Quadro 5. E haverá também, incluídos nesse Quadro, atores que tendem a parecer estranhos a essa estética, de acordo com o senso co- mum hoje prevalecente. Contudo, eles foram aí colocados por importantes atores presentes e intervenientes nos fatos e nas lutas simbólicas da época de emergência e consagração dessa estética. Não consideramos sua inclusão um “equívoco”, mas importante sinal. O fato de hoje parecerem estranhos à noção que se possa ter do que seja ou não seja bossa nova é para nós de grande interesse.

Trata-se aqui portanto de delimitar esse conjunto como amostra dos atores presen- tes no campo em 1958-62 – nos papéis de autor e de intérprete – e desenvolver análise ex- ploratória da teia de relações de que participavam, do capital que chegavam a acumular (e perder), dos dilemas que enfrentavam, dos condicionamentos a que estavam sujeitos e das escolhas que fizeram, de modo a reconstituir o mais possível a dinâmica do campo, na perspectiva da posição de maior prestígio artístico. Para tanto, recuperaremos a traços lar- gos os percursos desses artistas, isto é, seus movimentos no espaço e no tempo, distribuin- do-os entre grupos classificados segundo o grau de identificação com a – ou de pertenci- mento à – posição da bossa nova e dando atenção ao ponto em que a posição se encontra em relação a esses movimentos.

Na noção de espaço incluímos duas dimensões: a geográfica e a simbólica. Isto é, os atores tanto deslocam-se geograficamente – do Rio para São Paulo, da Zona Norte para a Zona Sul – quanto simbolicamente, ao transitar entre territórios controlados por diferen- tes posições no campo ou entre “bairros periféricos” e “bairros centrais” do território da posição.

A. Os que não ocupam a posição

O questionamento com que abrimos este capítulo tem por finalidade estranhar no- ções assentes sobre o que seja e o que não seja bossa nova. Trata-se, nesta subseção, de explorar as fronteiras do território controlado pela posição da bossa nova, verificar as bar- reiras e porosidades desses limites. Para tanto, centraremos aqui nosso exame nos artistas que se mostram mais prontamente desvinculáveis da posição. Uma rápida análise desses casos pode nos propiciar alguma compreensão da dinâmica da posição, do campo e de sua inserção no espaço social.

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Variações e desenvolvimentos das postulações de Rocha Brito encontram-se, por exemplo, em Medaglia (1966: 63ss) e Garcia (1999: 81-2). Uma crítica de Brito e Medaglia está em Pinheiro (1992: 35-8).

De fato, podemos com facilidade argüir a vinculação de alguns dos 47 nomes lista- dos em nossa amostra à posição constituída no campo da música popular brasileira pela bossa nova. Em alguns casos, podemos até mesmo questionar seu pertencimento ao campo. Há (i) os que têm sua inclusão causada por motivo fortuito. Há (ii) o caso em que só se consegue reunir informação tão apoucada que não é possível analisar com alguma consis- tência a sua atuação no período de emergência e consagração da bossa nova (1958-62). Há (iii) os que atuaram principalmente em outros campos e apenas episodicamente se dedica- ram à música popular. E há também (iv) os que, atuando inequivocamente no campo da música popular, têm vinculação demasiado tênue com a posição.

Parece-nos bastante fortuita a inclusão em nossa amostra da cantora Carmen Costa e do percussionista José Paulo: faziam parte do grupo do violonista Bola Sete e o acompa- nharam no espetáculo do Carnegie Hall. Já a situação do próprio Bola Sete requer análise em separado, que se faz mais adiante, noutra subseção.

Também participante desse espetáculo, o cantor Claudio Miranda tem discografia muito escassa. João Gilberto parece ter sido a ponte de sua vinculação à bossa nova nesse episódio. Mas os dados a seu respeito são tão ralos que é como se não houvesse desenvol- vido propriamente uma carreira profissional na música. Ainda que permitam supor ligação efetiva com a bossa nova, não ensejam análise sociológica e nem mesmo musical, mercê da quase total inacessibilidade aos seus registros gravados.47

QUADRO 5A

Os que não ocupam a posição

Artistas FacArq59 EscNav59 Cruz59 FacArq60 PUC60 Carnegie62 Bôscoli62 BRB60

Caetano Zamma xxx xxx xxx xxx Carlos Queiroz xxx Carmen Costa xxx Claudio Miranda xxx José Paulo xxx Lenita Bruno xxx Luely Figueiró xxx Norma Bengell xxx xxx xxx xxx xxx Roberto Freire xxx Sonia Delfino xxx Toninho Botelho xxx Trio Irakitan xxx xxx Vera Lúcia xxx

O autor Carlos Queiroz a que Brito se refere é provavelmente Carlos Queiroz Telles (1936-1993), que foi principalmente poeta e dramaturgo. Próximo dele está Roberto Freire, identificado por Rocha Brito como autor, mas que bem pouco desempenha esse papel por volta de 1960. Mais tarde, será muito atuante na consolidação da estética nacional-popular,

47

V. Cabral (1997a: 192-3) e coluna de Sylvio Tullio Cardoso (“O Globo nos discos populares”), sob título

“Nova York 64 (I)”, O Globo, 8 dez. 1964, 2º cad., p. 2. Há na internet menções a participações em discos

de Walter Wanderley e Howard Roberts, como cantor e percussionista. Também gravou no Brasil sob o

nome artístico Claude Bernie. Em <http://bases.fundaj.gov.br/disco.html>, pode ser levantada sua pequena

mas não como autor, e sim como diretor e autor teatral – por exemplo, levará Chico Buar- que a musicar Vida e morte Severina – e ativista político-cultural: integrará júris de festi- vais, em defesa da então nova estética e contra tentativas de preservação do bossanovismo (1965) e em desafio à repressão da censura ditatorial (1972).48 Em 1959-62, Freire, o com- positor e cantor Caetano Zamma – que chega a participar do espetáculo de bossa nova no Carnegie Hall –, Carlos Queiroz Telles e Geraldo Cunha, de quem falaremos logo adiante, formam um “bairro paulistano”, não assimilado pelo conjunto de atores cariocas, que são os que detêm a iniciativa e dominam a posição bossanovista. A casa da família Zammataro, um “palacete”, funciona como ponto de reunião de artistas de São Paulo e do Rio de Janei- ro, que eventualmente ali se hospedam.49 Mas a camaradagem no convívio não é suficiente para propiciar a admissão do jovem Caetano às regiões mais valorizadas do território bos- sanovista. Artisticamente, são como duas tribos aliadas, que na prática discursiva surgem por vezes diferençadas entre um “nós” e um “os outros”. Referindo-se ao elenco reunido para o espetáculo novaiorquino de 1962, assim se exprimiu Antonio Carlos Jobim:

“Tinha aquela turma toda, Agostinho dos Santos, Luiz Bonfá, e a turma mais pro- priamente dita da bossa nova: o Menescal, o Carlos Lyra, o João Gilberto e mais os outros. Foi o Caetano Zama, tinha aquela cantora paulista, uma loura, a Ana Lúcia. Tinha uma porção de gente”.50

E, nesta outra fala sobre o mesmo episódio, Jobim é mais agudo:

“O navio da Bossa Nova, quando chegou aqui, já veio carregando no casco muita craca, les uns et les huitres, os uns e as ostras, e no bojo muita carga que não tinha nada a ver”.51

Instaura-se desde aqueles começos o processo de esmaecimento, no imaginário co- letivo relacionado a essa estética, da presença do grupo paulistano – subalterno e suburba- no no território formado em torno da posição da bossa nova. Caetano Zamma, não marcan- do posição no campo da canção popular, refugiar-se-á na produção de jingles publicitários, mesmo campo em que vai atuar Queiroz Telles, redator de anúncios em – e eventualmente sócio de – agências de propaganda, durante os anos 60.52

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Mello (2003: 65-6, 425-9) e depoimento de Chico Buarque ao Museu da Imagem e do Som do Rio de

Janeiro, 11 nov. 1966, transcrito em <http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html>. Do Freire autor,

nos primeiros anos da bossa nova, só encontramos registro de duas composições, ambas em parceria com

Caetano Zamma: Mulher passarinho, gravada por Agostinho dos Santos em 1960 e Geraldo Cunha (1961);

e O menino e a Ave Maria, gravada por Cunha (1960). Podem ser títulos alternativos de uma só canção.

49

Ricardo (1991: 156), Silva (2002: 20-1). 50

Em <http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_frases_8.htm>, sem data e local. Acesso em: 4 fev. 2004.