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C APÍTULO 3 – C ONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA E CONSAGRAÇÃO DA BOSSA NOVA 1 Introdução,

3. A estética bossanovista

“A bossa nova não é só o sambinha do João Gilberto”, diz Carlos Lyra. “A gente tem baião, toada, marchinha, a gente tem marcha-rancho, chorinho. Tudo isso tem na bossa nova”.48 A necessidade de Lyra, de afirmar e reafirmar, como parte do script de seu recital, a variedade de soluções rítmicas da estética bossanovista, serve de indicação da força con- quistada pela associação da noção de “bossa nova” à invenção de João Gilberto. A luta para a fixação dessa associação em paradigma é antiga. Começou entre os próprios bossa- novistas, quando, por exemplo, João foi o primeiro a gravar Desafinado, em cuja letra comparece a expressão-rótulo. Da mesma forma, no já citado texto da contracapa de seu elepê, Jobim apresenta-o como “bossa nova” e lhe credita boa parcela de autoria na defini- ção estética daquelas gravações:

“Nossa maior preocupação neste long-play foi que Joãozinho não fosse atrapalhado por arranjos que tirassem sua liberdade, sua natural agilidade, sua maneira pessoal e intransferível de ser, em suma, sua espontaneidade. Nos arranjos contidos neste long-play Joãozinho participou ativamente; seus palpites, suas idéias estão todos aí. Quando João Gilberto se acompanha, o violão é ele. Quando a orquestra o acom- panha, a orquestra também é ele”.49

Reservemos, para posterior contextualização, os termos liberdade, natural agilida- de e espontaneidade.

Jobim é, formalmente, o diretor musical do disco. Mas sabe-se que João Gilberto impôs paulatinamente, com incomum obstinação, muitas das soluções adotadas nos takes definitivos das gravações. O arranjo orquestral foi simplificado, o uso da bateria foi muito resumido e modificado, a definição de timbres orquestrais foi minuciosamente retrabalha- da, o contrabaixo e a harpa ausentaram-se, a captação do som do violão do cantor foi obje- to de cuidados especiais e até a letra de uma composição de Jobim foi alterada por proposi- ção do cantor. A gravação desses 12 fonogramas é comparada a uma “batalha”, em que se

47

Chanan (1995: 105-6). 48

Lyra (D2005). V. o mesmo tipo de enunciado na entrevista que concedeu a Almir Chediak (1990a: 20). 49

enfrentaram João Gilberto e os outros – arranjador, músicos, técnicos de estúdio –, e em que a direção das mudanças realizadas para atender o cantor aponta para a “limpeza” do som, a “simplificação”.

De certa forma, o que estava em jogo aí era, afinal, se esse seria um disco de João Gilberto com Tom Jobim ou um disco do compositor e arranjador com a voz e o violão do cantor. As indicações disponíveis sugerem a capitulação de Jobim, a ponto de eliminar-se a orquestra na gravação das seis últimas faixas, feitas à base de apenas voz, violão e bateria, com poucas intervenções do piano e da flauta ou de discretíssimo trombone. O baterista das primeiras sessões de gravação, Juquinha Stockler, ligado a Jobim, teria sido substituído por Milton Banana, preferido de João Gilberto. O “téc-téc” da marcação rítmica teria sido produzido pelo percussionista Guarani, colega de pensão do cantor. Estabeleceu-se aí, so- bretudo nessas seis faixas, a idéia da bossa nova como uma espécie de música de câmara.50 No conjunto, da orquestração o que fica é a “brisa dos violinos”, o “gemido do trombone” e pontuais “ornamentos da flauta”.51

Talvez se possa avaliar a contribuição de João Gilberto à sonoridade “limpa” de su- as primeiras gravações na Odeon cotejando-as com as do álbum Canção do amor demais, da cantora Elizeth Cardoso (1920-1990), em que o arranjador também é Jobim e do qual João participou, em algumas faixas, como violonista e como integrante do pequeno coro masculino. Em duas dessas faixas registrou-se pela primeira vez no microssulco sua “bati- da” ao violão. Gravado no primeiro semestre de 1958 e lançado em junho, quase ao mesmo tempo em que João chegava ao estúdio para começar a gravar seu primeiro 78rpm da fase bossa nova, esse disco traz uma orquestra pequena, de câmara, mas as intervenções instru- mentais se salientam, é disco de arranjador e maestro, em que a cantora foi, nas palavras de Vinicius de Moraes, “profundamente ensaiada”: “passou e repassou as músicas” com Tom e Vinicius, “com um sentido muito grande de obediência” ao que eles queriam.52

As diferenças são ainda maiores no canto. Comparada com a de João, a interpreta- ção de Elizeth para Chega de saudade é muito dramaticamente “comentada”. A cantora sublinha os ambientes sentimentais da letra: seja na primeira parte, que tende à tristeza, marcada pela ausência e a saudade do ser amado, e em que a partitura musical se desen- volve em tom menor; seja na segunda, em tom maior, de efusiva alegria, pontuada pela

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Castro (1990: 181, 184, 207, 210-2), Cabral (1997a: 52, 140, 142-5), Nêumanne (2003). A letra de Corco-

vado foi alterada: João propôs “um cantinho” onde era “um cigarro, um violão”. V. entrevistas de Milton Banana, que teria participado da gravação dos últimos fonogramas desse disco, e de Roberto Menescal, que diz ter assistido parte das sessões de gravação, concedidas respectivamernte em outubro de 1968 e a- gosto de 1967 a Mello (1976: 89, 141-2). Esse autor põe em dúvida a exatidão cronológica das lembranças do baterista. Mas tal dúvida pode ser prolongamento das disputas de que estamos tratando, pois coloca nas

últimas sessões de gravação do elepê Chega de saudade, ora Juca Stockler, ora Milton Banana. No início

de 1959, eles têm diferentes vínculos de amizade e compliance em relação a Jobim e Gilberto.

51

Conforme o comentário de Caetano Veloso (1965: 149). 52

Vinicius de Moraes entrevistado em setembro de 1967 por Mello (1976: 87). É incerta a data de lançamen-

to do elepê Canção do amor demais nas fontes consultadas: há indicações, no mesmo autor, (i) de que as

vendas começaram em junho de 1958, (ii) de que foi lançado e de que a imprensa registrou sua chegada em julho e (iii) de que houve coquetel de lançamento no início de agosto, cf. Cabral (199?b: 154; 1997a: 134-7). Castro (1990: 175) diz que o disco “saiu em maio”. Quanto à gravação, o mais provável é que te- nha sido concluída em abril, data fixada no manuscrito de Vinicius reproduzido na contracapa.

expectativa de retorno do ausente. Nesse estilo, Elizeth emprega repetidamente o “quase glissando” já no primeiro verso da letra – prolongando as vogais em “vaaai, miinhaaa tris- teeeza e diz a eeeele” –, recurso a que retorna com freqüência ao longo da interpretação.53 Em busca do tipo de expressividade que considera um valor em sua estética, ela estende e desdobra vogais – versão aqui bastante mitigada de um recurso próprio do bel canto, gêne- ro no qual é levado a extremos –, afastando-se da forma diseuse de cantar, que tem sido o pólo imantado da modernidade em música popular e é a mais proeminente característica do canto de João Gilberto. Elizeth também exagera – sempre comparativamente – na ênfase com que trata letra e melodia na segunda exposição dos versos que cobrem a parte mais chorística e recortada da composição, em “apertado assim, colado assim, calado assim” e “que é pra acabar com esse negócio...”. Em Chega de saudade intervém, em contraponto, discreto coro masculino, recurso ausente nos três elepês que João, cantor com vocação de músico solista, lança em 1959-61.54

A instrumentação de Tom Jobim inclui cordas (violinos, violas e violoncelos), har- pa, flauta, fagote, um par de trombones e trompa, além de violão, piano e bateria.55 Não há uma intervenção do tutti dessa orquestra, mas ainda assim o resultado é mais “pesado” que no disco de João, graças a um conjunto de partipações e comentários instrumentais salien- tes, nessa e em quase todas as demais faixas. Nisso incluem-se passagens das cordas avo- lumadas nos registros graves, eventualmente tendendo ao dramático ou ao solene, comen- tários do fagote ou das cordas em pizzicato, uma intervenção de bateria aqui, uma trompa em fortíssimo ali, um típico acorde de harpa e assim por diante.

De novembro de 1959 é também o elepê Amor de gente moça, de Sylvia Telles, to- do dedicado a composições de Tom Jobim, que é o orquestrador em algumas faixas, sendo de Lindolfo Gaya a maioria dos arranjos. Da especial predileção do compositor seria a or- questração de Fotografia, feita por Gaya.56

O estilo de interpretação de Sylvia está nessa faixa muito mais próximo do despojamento de João Gilberto que do “derramamento” de Elizeth. Mas, quanto à parte instrumental, trata-se também aqui de arranjo muito mais “vestido” orquestralmente do que o de qualquer gravação de João Gilberto, isto é, sem a característica ambientação “de câmara”. A orquestra dispõe de todos os naipes – cordas, madeiras e metais –, além de harpa e seção rítmica composta de órgão elétrico, violão, con- trabaixo e bateria. O trabalho do orquestrador e o do regente ganham relevo, vindo fre-

53

Pinheiro (1992: 55) identifica nos “quase glissandi” manifestação do “derramamento” dramático a que se

opuseram João Gilberto e, na esteira de seu triunfo, toda a bossa nova. Para esse autor, “seria o timbre vo-

cal enxuto, cool, o traço supra-segmental maior desse universo estético”, com o que ecoa Brito (1960: 33),

que se referia a “demagogia interpretativa” e “pirotecnia” como características do canto de que se diferen- çava a bossa nova, como vimos no capítulo anterior.

54

Garcia (1999: 150-4). Em Ho-ba-la-lá, do primeiro elepê de João Gilberto, o coro formado por antigos

integrantes dos Garotos da Lua reveza-se com João, sem em momento algum sobrepor-se à voz do solista. 55

Cardoso (D1958). A inclusão de fagotes, no plural, é indicada por Cabral (199?b: 153), mas não há menção

ao instrumento na ficha técnica do disco, versão lançada em cedê em 1998. No entanto, ouve-se em Chega

de saudade e algumas outras faixas intervenção de instrumento que o ouvido destreinado não distingue en- tre fagote e clarone. Um e outro são incomuns na instrumentação da música popular brasileira.

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Cf. informação prestada por Cabral (1997a: 149), que não discrimina o que se deve a qual arranjador. A reedição desse disco em cedê, que examinamos, sonega a informação. Há indicação de apenas Gaya ter si-

do creditado na contracapa do disco de vinil, em <http://www.jobim.com.br/dischist/amorgente.html>, ca-

qüentemente ao primeiro plano sonoro: intervêm em todas as pequenas pausas de respira- ção entre as frases do canto e envolvem a enunciação da letra em todos os compassos.

Da mesma forma, a partitura de Brasília, Sinfonia da Alvorada, obra de Jobim e Vinicius composta, arranjada e gravada em 1960-1, serve de indicação para concepções de expressão orquestral do compositor: exuberante, rica em timbres e harmonias, com uma dinâmica em que os fortes e fortíssimos são freqüentes. Estamos neste caso, evidentemen- te, diante de trabalho de natureza diversa da canção popular. O emprego da orquestra sin- fônica é esperado numa obra intitulada Sinfonia. Mas não parece impróprio conjecturar que, já consagrado como compositor popular, Jobim esteja então almejando o reconheci- mento como arranjador e maestro, inclusive, até certo ponto, na música popular. Radamés Gnattali é um de seus modelos, não apenas o Gnattali de Copacabana, mas também o de Aquarela do Brasil. Certa opulência orquestral de Villa-Lobos e de Maurice Ravel não está ausente do horizonte de Tom Jobim. Em matéria publicada na revista Senhor em 1960, Flávio Rangel relata que Tom Jobim “de cinco em cinco minutos fala de Villa-Lobos, cuja obra conhece à perfeição”.57

O que é importante caracterizar aqui, retomando a citação de Carlos Lyra com que se abriu esta seção, é que em seus inícios havia mais de um estilo de enunciação musical intitulável de “bossa nova” disputando a primazia da legitimidade do gosto, pois a luta no campo não se dá apenas entre posições, mas também entre os que se propõem a ocupar uma determinada posição. O comentário de que o primeiro elepê de Lyra, embora intitula- do “Bossa Nova”, “estava mais para o velho samba-canção dos anos 50” e de que “os ar- ranjos de Carlos Monteiro de Souza [nesse disco] não conseguiram criar a tessitura leve e vazada proposta por Tom Jobim”, bem como de que o canto de Lyra “mantinha uma em- postação mais solene e retumbante, longe das sutilezas do fraseado de João Gilberto”, ou ainda a de que seu violão, “menos compacto e percutivo e mais dedilhado não assumia completamente a nova ‘batida’”,58 são, todos, verdadeiros, isto é, constatam o que é possí- vel constatar, agora, à audição desses fonogramas. O projeto estético que os informa não coincide com o que se ouve nos de João Gilberto.

Entretanto, esses comentários se privilegiam da distância da observação e tendem a apagar a dimensão de luta simbólica inscrita nos seus objetos. Transformam em paradigma para 1959-60 algo que, então, não se cristalizara a esse ponto. À distância, o samba-canção dos anos 50 pode parecer “velho” – o que, aliás, é discutível, à luz do que verificamos no capítulo anterior e ainda vamos encontrar nesta seção. Mas, certamente, não o era no final de 1959, quando Lyra começou a gravar esse álbum. Ao contrário, novos sambas-canções estavam surgindo naquele exato momento e ainda se tornariam itens duradouramente in- corporados ao repertório. É o caso de Dindi, lançado em novembro desse ano em interpre- tação de Sylvia Telles, em arranjo que abre com intervenções de harpa e trompas e em que se configura um tipo de modernidade distinta da do primeiro elepê de João, seja em or-

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Rangel (1960). Jobim retornará nos anos 70 a esse tipo de orquestração mais ambiciosa, sobretudo nos

álbuns Matita Perê (1973) e Urubu (1975)

58

Napolitano (2001: 32): o termo “tessitura” não é empregado aí no sentido do jargão musical. Na mesma direção manifesta-se Castro (1990: 263).

questração, seja no padrão rítmico – quase exclusivamente samba, no disco de João; mais samba-canção, no de Sylvia – e mesmo em interpretação vocal. Outro exemplo: a ênfase de Sylvia na parte mais alta (a segunda parte) da melodia do samba-canção Esquecendo você, que corresponde aos versos “eu vou ter que esquecer minha vida/só você não percebe por- que/eu vou ter que passar minha vida/esquecendo você”, parece querer transmitir sensação de desespero à interpretação, algo inteiramente incompatível com a muito mais contida entoação joãogilbertiana. O piano jazzístico que assume o primeiro plano na passagem instrumental, que leva à segunda enunciação da segunda parte da composição nessa mesma faixa, também é algo impensável em disco de João Gilberto.

Que a bússola estética de Jobim tinha um norte diferente da de João, pode-se perce- ber em seu texto para a contracapa do elepê Por toda minha vida, da cantora Lenita Bruno (1926-1987), com orquestra arranjada e conduzida por Léo Peracchi, gravação feita no primeiro semestre de 1959. A exemplo da Sinfonia da Alvorada, buscou-se nesse trabalho uma aproximação com o campo da música erudita, tratando-se as composições como “can- ções de câmara”, isto é, Lenita aborda-as de forma próxima do canto lírico. Eis como Tom define a excelência do resultado:

“Assim como o pássaro é aparelhado para o vôo e instintivamente conhece a velo- cidade do vento, a disponibilidade dos espaços e o perigo dos obstáculos, assim canta Lenita Bruno: às vezes num vôo alto onde a orquestra lembra o mosaico das casas vistas de avião, às vezes varando quintais e arvoredos num momento. Assim, sôbre a trama da orquestra surge o canto; que é, em última análise, quem vai con- tar a verdadeira história dêste L.P. Lenita Bruno aqui se apresenta em toda a doçura e plenitude de sua voz, o que empresta a esta gravação, creio, uma categoria inédi- ta no Brasil. Sentimo-nos honrados com sua presença e agradecemos a simpatia e a simplicidade com que acedeu ao nosso pedido: ser intérprete destas canções”.59

Nas passagens grifadas, evidencia-se concepção estética que valoriza o emprego da voz em sua “plenitude”, capaz de explorar “a disponibilidade dos espaços” e de triunfar sobre a “trama da orquestra”, seja “sobrevoando-a” em grande altura, seja “varando-a” como quem atravessa “quintais e arvoredos”, cabendo-nos entender, nesta última expres- são, a idéia de uma espessura orquestral que se enuncia concomitantemente ao canto. Tudo isso difere da proposta de João Gilberto de simplificar a instrumentação e “encaixar a voz no violão com a precisão de um golpe de caratê”.60

Tom Jobim escreve no plural (“sentimo-nos”, “nosso pedido”) porque também fala em nome do parceiro Vinicius de Moraes. Esse é, na maneira de Vinicius expressar-se, “nosso segundo LP”, de uma série de três. Os elementos comuns a esses três álbuns – o de Elizeth (1958), já comentado, este de Lenita e o de Elza Laranjeira (1962) – são: (i) todo o repertório é integralmente constituído de composições dos dois autores ou de apenas um deles; (ii) o nome dos dois é apresentado em destaque na capa do disco; (iii) os dois, “em comum acordo”, “convidam” a cantora a gravar o álbum, o que é explicitado no texto da contracapa; (iv) a cantora é veterana, nascida nos anos 20 e conta mais de 15 anos de car- reira profissional; (v) a convidada tem o privilégio de ser a primeira a cantar algumas das

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Jobim (1959b). V. tb. Oliveira (2001). 60

composições selecionadas; (vi) Jobim e Vinicius participam de ensaios preparatórios das gravações, feitos em ambientes domésticos; (vii) o texto da contracapa é de um dos dois e é impresso como reprodução de um manuscrito “original”, em que se vêem uma que outra rasura ou emenda, que servem para enfatizar a conotação de “originalidade”; (viii) o arran- jo instrumental é valorizado e a partipação do(s) arranjador(es) e regente(s) é claramente creditada; (viii) no texto manuscrito, o produtor do disco – Irineu Garcia, nos dois primei- ros; José Scatena, no último – são cumprimentados pelo mérito artístico da iniciativa e por sua capacidade de desprezar razões comerciais.

Formam, como se vê, conjunto de elementos de autenticação artística; enfatizam a idéia de autoria; dirigem-se à valorização simbólica. Integram a coleção de recursos de quem, como Tom Jobim e, principalmente, Vinicius, já acumulou prestígio e encontra-se em condições de atribuí-lo aos objetos de cuja feitura participa, numa estratégia de repro- dução do capital simbólico acumulado. Entretanto, esse cultivo do prestígio não está orien- tado para revolucionar o campo da música popular, nos termos dessa pequena e plebéia forma de arte. Em vez disso, procura a legitimação pela aproximação com o campo da arte superior, a grande arte, campo ao qual pertence, em primeira instância, o poeta e diplomata Vinicius de Moraes.

Uma interpretação corrente diz que essas manifestações, da parte do poeta, visavam essencialmente contemporizar a vigilância do sisudo corpo diplomático, do qual era parte, em face de suas incursões em campo desvalorizado e suspeito, como o da música popular, “do samba”. O texto de Vinicius seria então, de alguma forma, menos sincero e mais artifi- cioso.61 Todavia, isso implica entender que Vinicius já era ou já sabia ser, em 1958, aquilo em que de fato só viria a se converter anos depois: artista da música popular. Diferente disso, em nossa perspectiva Vinicius de Moraes a essa altura tateava exploratoriamente suas possibilidades de incursão nesse campo, mantendo seu pertencimento primordial ao campo da arte culta, pois estava submetido não apenas ao crivo do Itamaraty, mas também ao de seus colegas e amigos do campo literário e continuava escrevendo e publicando li- vros de poesia e escrevendo versos para canções de câmara de Claudio Santoro.62

Os dois primeiros discos saem pela gravadora Festa, cuja especialidade são as gra- vações de poetas dizendo seus próprios versos – Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles são alguns deles. Na capa do elepê de Elizeth, lê-se: “música: Antonio Carlos Jobim; poesia: Vinicius de Moraes”. O texto de Vinicius na contracapa desse primeiro álbum aplica-se em sublinhar o desinteresse material dos dois parceiros musicais: livres de motivações “deselegantes e mesquinhas”, compõem juntos porque têm “profundo afinamento de sensibilidades para a música, que constitui, sem dúvida, [sua] distração máxima”.63

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É o entendimento de Castro (1990: 176-7). 62

Castello (2002: 197-9) situa a elaboração dos versos para as canções da colaboração com Santoro em 1955-9, com retomadas para pequenas modificações em 1963 e ensaios com Maria Lucia Godoy em 1967. 63

Moraes (1958). Também disponível em <http://www.jobim.com.br/dischist/amordemais/amordvin.html>.

Na contracapa do disco de Elza Laranjeira, o poeta opera o princípio da distinção afirmando que “ela sabe ter ‘classe’ na voz: nunca uma vulgaridade, nunca uma emissão descuidada, como acontece tanto por aí”. A emissão cuidadosa, ele explica, é fruto de mui- to estudo da composição, pois “uma canção tem tantos pequenos mistérios, tantas pequenas sutilezas, tantos recônditos segredos nos volteios de sua forma que um cantor poderia tra- balhá-la indefinidamente e encontraria sempre novas belezas”. Dessa maneira, Vinicius indica que a distinção tanto está na intérprete quanto na canção, mas também adverte que