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O conceito de indústria cultural e a música popular

Na verdade, é preciso determo-nos um pouco mais no exame da idéia de indústria cultural. Proposto por Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969), esse conceito foi desenvolvido num dos ensaios que integram Dialetik der Aufklärung, livro elaborado durante a etapa californiana de seu exílio norte-americano. Concluído em 1944 e retocado em 1945, ainda na América, o livro foi publicado pela primeira vez em 1947, na Holanda.

Ao tratar da implantação da indústria cultural no Brasil, Renato Ortiz procura ope- rar dentro dos limites desse conceito frankfurtiano, segundo o qual “a cultura contemporâ- nea a tudo confere um ar de semelhança; filmes, rádio e semanários constituem um siste- ma” e “cada setor se harmoniza em si e todos entre si”.57 Assim, para que se considere im- plantada no Brasil a indústria cultural, é preciso esperar que todos os seus setores alcancem grau de amadurecimento equiparável, que lhes permita “harmonizarem-se todos entre si”.

Esse conceito cunhado por Horkheimer e Adorno também se impregna explícita e fortemente da idéia de estandardização ou padronização dos produtos que constituem a cultura de massa: não haveria diferenciação significativa entre as numerosas canções, as- sim como não haveria diferenciação notável entre os enredos dos filmes, entre os conteú- dos veiculados pelos numerosos títulos de tiras de histórias em quadrinhos ou entre as estó- rias que constituem o típico livro de bolso e assim por diante – sempre considerados, em cada um desses setores da indústria cultural, os diferentes gêneros de que são constituídos seus repertórios. No caso da música popular, por exemplo, Adorno identificou a rigidez rítmica dos gêneros de música de dança, que deu como compreensível até certo ponto, mas por outro lado apontou alguns gêneros que comporiam o cardápio da oferta de canções industrializadas: (i) as “canções maternais”, (ii) as “domésticas”, (iii) as de “nonsense”, (iv) as “pseudo-infantis” e (v) os “lamentos pelo amor perdido”.58

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Horkheimer & Adorno (1947: 7). 58

Adorno (1941: 438), que identifica como “nonsense or ‘novelty’ song” o que o jargão norte-americano chama “novelty songs”: têm por tema algo novo ou incomum ou são difíceis de enquadrar em outra categoria.

Essa característica padronizadora corresponde à mercantilização da arte e da cultu- ra: os produtos da indústria cultural seriam pura mercadoria. A indústria, estrito senso, fixa padrões para seus produtos de modo a racionalizar a fabricação e distribuição e a propiciar previsibilidade ao consumidor que os adquire, ao mesmo tempo em que lhe concede um leque limitado de opções para cada tipo de mercadoria. Analogamente, a padronização na indústria cultural corresponderia à racionalização da produção e ao estabelecimento de uma previsibilidade fundamental, (mal) disfarçadamente inscrita na aparente variabilidade dos produtos:

“Desde o começo é possível perceber como terminará um filme, quem será recom- pensado, punido ou esquecido; para não falar da música leve em que o ouvido a- costumado consegue, desde os primeiros acordes, adivinhar a continuação, e sentir- se feliz quando ela ocorre”.59

A padronização da “canção de sucesso” – e toda canção, no âmbito da indústria cul- tural, teria sua produção imantada pela busca do sucesso comercial e por isso seria subor- dinada ao mesmo padrão – respeitaria, além do enquadramento num daqueles gêneros, as seguintes características:

1) o tema musical e sua estrutura de apresentação, com primeira e segunda parte e o invariável retorno à primeira parte, encaixar-se-ia no padrão de 32 compassos;

2) os marcos harmônicos fundamentais de cada parte da canção enfatizariam sem- pre o esquema de acordes mais pobremente convencional, não importando que recursos harmônicos fossem empregados dentro do desenvolvimento de cada parte;

3) a tessitura não iria além do intervalo de nona, de tal modo que se, por exemplo, a nota mais grave da linha melódica é um dó natural, a mais aguda não iria além do ré natu- ral acima da oitava desse dó.60

Tão estruturada e presa a fórmulas, a canção de sucesso prestar-se-ia à produção em série, quase como numa linha de montagem, num processo em que não haveria mais lugar para compositores dotados de certo grau de autonomia, para autores de obras de arte origi- nais. Em vez disso, teríamos produtores dedicados a meramente intercambiar partes em cada produto. Eles se limitariam a encaixar aqui ou ali, na fórmula-fôrma adrede estabele- cida e imutável, truques ocasionais e embelezamentos mais ou menos complicados, capa- zes de produzir efeito suficientemente discernível para conferir, àquela composição musi- cal específica, algo capaz de (pseudo-)individualizá-la no ouvido do destinatário. A princi- pal função da letra da canção, por sua vez, seria conter uma frase ou expressão que lhe servisse de rótulo identificador, “marca comercial”, isto é, que funcionasse como título e elemento mnemônico, facilitador do reconhecimento, que é uma das etapas do processo de consumo.

Cada canção seria então apenas uma variação do mesmo. Já não seria capaz de por- tar, para o ouvinte, um valor de uso verdadeiramente estético, que seria sua dimensão pro-

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Horkheimer & Adorno (1947: 14). 60

priamente humana, espiritual, correspondente ao ser autônomo e individual. Restringir-se- ia, ao invés, a apresentar um valor de troca, sua dimensão de mercadoria, que serviria para confirmar, em quem supõe apreciá-la, a posse de determinado status social, ou a garantir a esse destinatário a sensação de “estar por dentro” do que é moda, de fazer parte da massa, algo como um membro (falsamente) integrado na multidão solitária. Estaríamos, portanto, diante da fetichização da música.61

A reiterada apresentação desse produto em meios massivos como o rádio e o filme se incumbiria, à maneira das campanhas publicitárias, de torná-lo conhecido, reconhecível e, logo, apreciado. Contudo, essa apreciação, pelo público, tampouco seria uma audição verdadeira. Na sociedade em que triunfou o poder da indústria cultural, não apenas perdeu- se a “capacidade de conhecer conscientemente a música” como “nega-se com pertinácia a própria possibilidade de chegar a tal conhecimento”. A audição tornou-se “atomística”, limita-se à diversão desatenta, a uma flutuação que vai e volta entre o “amplo esquecimen- to” e o “repentino reconhecimento”, fenômeno que Adorno denominou “regressão da audi- ção”.62 Na música popular, a mesmice configura-se como material “pré-digerido” e uma frase célebre resume toda a idéia: “a composição ouve pelo ouvinte”.63

No pensamento de Horkheimer e, principalmente, no de Adorno, que mais o desen- volveu, toda essa feição da indústria cultural – fetichização e padronização da música, re- gressão da audição, desindividualização e reificação do ouvinte – subordina-se a um totali- zante esquema de dominação e obediência. Pela padronização dos produtos culturais pa- droniza-se e embota-se a mente do respectivo consumidor. “A estandardização da canção de sucesso mantém o consumidor na linha, ao escutar por ele. A pseudo-individualização [da canção], por seu turno, mantêm-nos na linha fazendo-os esquecer que o que eles escu- tam já está ouvido para eles, ou ‘pré-digerido’”.64

O consumidor pensa classificar os produtos culturais, quando na realidade seria por eles classificado. Mediante o bombardeamento ininterrupto de produtos culturais pré- digeridos, que não apenas dispensam como são incompatíveis com o emprego da atenção ativa do destinatário, oblitera-se a capacidade deste de pensar por conta própria e de de- senvolver competência para a crítica.65

Se no séc. XIX Karl Marx via na religião o “ópio do povo”, por proporcionar a este uma felicidade ilusória, que cumpria abolir para em seu lugar instaurar a demanda da feli- cidade verdadeira, no séc. XX Adorno vê a indústria cultural como provedora dos “estimu-

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Adorno (1938: 180-2, 189-90; 1941: 442, 446). A expressão multidão solitária é de David Riesman (1909-

2002), cuja obra foi apreciada por Adorno (1966: 661), especificamente quanto à noção de personalidade “other-directed”, que, segundo Riesman (1961: 19-22), seria típica do americano de classe média alta do final da primeira metade do século XX, com tendência a tornar-se o tipo dominante em toda a sociedade estadunidense. Esse autor também enfatiza a importância da ação monopolística dos meios de comunicação

de massa, e das grandes corporações que neles inserem sua publicidade, para a moldagem desse tipo de

personalidade nas novas gerações de norte-americanos (id. pp. 96-8). V. Leppert (2005: 678) para a compa- tibilidade entre certos postulados de Riesman e de Adorno. V. tb. Ortiz (1986: 58).

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Adorno (1938: 187-8). 63

Adorno (1941: 442). A frase é reiterada em Adorno (1968: 35). 64

Adorno (1941: 445). 65

lantes” que os dominados “imploram” e que lhes proporcionam um escape do tédio em suas horas de folga do trabalho nas linhas de montagem e nos escritórios.66 Pelo emprego de estímulos inscritos nesses produtos, a indústria cultural obtém comportamentos pré- determinados. Em vez de vontades livres, têm-se “quereres institucionalizados”. Na música popular, predominam amplamente os ritmos sincopados, que induzem ao movimento obe- diente do corpo e à dança, em especial à dança frenética, em que os próprios objetos da dominação se autodenominavam, quando Adorno estudou o fenômeno, “insetos nervosos”.

“Enquanto nas ditaduras européias os caudilhos de ambos os matizes berravam con- tra o decadentismo do jazz, a juventude dos outros países deixava-se eletrizar – como por marchas militares – pelos bailes sincopados, cujas orquestrinhas originam-se tec- nicamente da música militar, e não casualmente. E a divisão entre as forças de cho- que e séquito desarticulado tem algo em comum com a distinção entre elite de parti- do e restante base popular”.67

Essa aproximação entre (i) a música de dança popular dos grandes salões de baile norte-americanos dos anos 20 e da Depressão e (ii) as práticas de mobilização popular dos regimes fascistas europeus da mesma época não surge casualmente nesse texto de 1955. Ela reitera, em termos especificamente musicais, uma análise mais abrangente da socieda- de impregnada pela indústria cultural: é uma sociedade onipotente que estimula e recom- pensa o indivíduo passivo, em que é falsa a identificação do indivíduo com a sociedade, em que a integração está fundada na renúncia do indivíduo e no recalque da sua relutância e que, portanto, “tende ao fascismo”.68

Os beneficiários dessa ordem são os controladores das grandes corporações mono- polistas. As empresas da própria indústria cultural, economicamente débeis quando compa- radas com aquelas corporações, são por elas controladas direta ou indiretamente. Ou o con- trole se dá por vínculos de propriedade – as grandes corporações elétricas controlam o rá- dio que controla a indústria fonográfica –, de financiamento – os bancos controlam a in- dústria cinematográfica – ou de patrocínio: os grandes anunciantes, eles também monopo- listas em seus ramos de atividade, bancam os meios de comunicação de massa.69

Diante desse poder maior, a cogitável resistência do expert artístico invariavelmen- te sucumbe. Todavia, para Horkheimer e Adorno esse expert não é, por exemplo, o autor do script original ou o diretor do filme, mas sim um empresário como Darryl F. Zanuck, fundador e formalmente dono de um dos mais importantes estúdios cinematográficos de Hollywood, a Twentieth-Century Fox, e personagem destacado no chamado studio system, que marcou a indústria cinematográfica norte-americana dos anos 30 aos 60. Quanto a um autor e diretor rebelde como Orson Welles, os dois frankfurtianos afirmam que suas “vio-

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Marx (1844), Adorno (1941: 459). 67

Adorno (1955: 194). V. tb. Adorno (1941: 460-1) para o tipo “ritmicamente obediente” de comportamento da massa de consumidores musicais, comportamento em que a música, mero receptáculo de “quereres ins- titucionalizados”, provê os meios de “ajustamento psíquico” aos mecanismos da vida no tempo presente. O outro tipo de “comportamento sócio-psicológico de massa”, voltado para o mesmo ajustamento, é o emo-

cional. Insetos nervosos é leitura literal de “jitterbugs”, os adeptos da dança homônima, uma das variantes

de coreografia popular afro-americana para a música jazzística, que esteve na moda nos anos 1930 nos EUA, a chamada era do “swing”. O termo já fora explorado em sentido literal em Adorno (1941: 465-7). 68

Horkheimer & Adorno (1947: 54-5). 69

lações do exercício da profissão [...] são perdoadas porque – incorreções calculadas – só fazem confirmar e reforçar a validez do sistema”. Isto é, aparentemente eles não localizam as possíveis tensões entre a pretensão artística e os cerceamentos do establishment nas re- lações entre (i) escritores e diretores e (ii) empresários donos de estúdios, mas entre estes últimos e os empresários das grandes corporações que, em sua teoria, controlam a indústria cultural, numa espécie de totalitarismo disfarçado.70

Não há espaço, nesse corpo teórico, para negociação entre os consumidores cultu- rais e a significação dos produtos que consomem. Aos dominados, o triunfo totalitário da racionalização da vida social retira até mesmo a capacidade de produzir significação no emprego das palavras:

“Se a palavra, antes da sua racionalização, tinha promovido junto com o desejo, mesmo a mentira, a palavra racionalizada tornou-se uma camisa-de-força para o de- sejo mais ainda que para a mentira. A cegueira e o mutismo dos dados a que o positi- vismo reduz o mundo atingem mesmo a linguagem que se limita ao registro daqueles dados. Assim, os próprios termos se tornam impenetráveis, adquirem um poder de choque, uma força de adesão e de repulsão que os torna parecidos com seu extremo oposto, as fórmulas mágicas. [...] A camada de experiência que fazia das palavras as palavras do homens que as pronunciavam está inteiramente achatada, e mediante a rápida assimilação, a língua assume uma frieza que, até então, só caracterizava as co- lunas publicitárias e as páginas de anúncio dos jornais. Infinitas pessoas usam pala- vras e expressões segundo o seu valor behaviorista de posição, como símbolos prote- tores que se fixam tanto mais tenazmente aos seus objetos quanto menos ainda se es- tá em grau de compreender o seu significado lingüístico”.71

Se as palavras são apenas o que os amplos esquemas racionalizados de dominação social determinam que sejam, a mesma estreiteza significadora se dá com os produtos da indústria cultural. No seu consumo tampouco há espaço para qualquer negociação quanto ao possível valor de uso, valor este que já foi virtualmente banido das cogitações. Em sua “teoria sobre o ouvinte”, de pronunciado teor psicológico, Adorno concebe em cinco eta- pas o processo pelo qual o ouvinte se convence de que a canção é boa e de que gosta dela:

1) a vaga recordação (“acho que já ouvi isso”);

2) o momento da identificação ou reconhecimento, que não se dá por elaboração, mas por lampejo;

3) a subsunção da canção a partir do rótulo (título da canção ou parte mais conheci- da de sua letra); a subsunção consiste em incluí-la num repertório de conhecimento classi- ficatório; nessa etapa, o ouvinte se conforta com o sentimento de sua própria inclusão, de integrar a comunidade dos que conhecem a canção;

4) a auto-reflexão no ato do reconhecimento, momento em que o ouvinte passa a se sentir “proprietário” da canção, a sentir uma gratificação associada à capacidade de evocá- la quando quiser; e

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Horkheimer & Adorno (1947: 19-20). 71

5) a transferência psicológica, para o objeto, da autoria do reconhecimento e, por- tanto, da gratificação do sentimento de sua posse; é nesta etapa que o ouvinte se assegura de que a canção é boa.

Essas etapas são acompanhadas e reforçadas pela divulgação intensa e forçada da canção. Ao cabo, o consumidor não faz mais do que “cumprir a ordem de transferir para a canção a auto-congratulação por essa ‘propriedade’”.72

Portanto, nessa teoria sobre o ouvinte e no corpo teórico geral aqui brevemente es- boçado, o ouvinte não dispõe de espaço para real interpretação, assim como não dispõe da menor autonomia para elaborar significados próprios que viesse a atribuir aos objetos que lhe são impingidos pela indústria cultural. Vê-se então diante de apenas duas opções: acei- tar passivamente ou com relutância.

“Quem não se adapta é massacrado pela impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do isolado. Excluído da indústria, é fácil convencê-lo de sua insuficiência. [...] A totalidade das instituições existentes aprisiona [os consumido- res] de corpo e alma a ponto de, sem resistência, sucumbirem diante de tudo o que lhes é oferecido. E assim como a moral dos senhores era levada mais a sério pelos dominados do que pelos próprios senhores, assim também as massas enganadas de hoje são mais submissas ao mito do sucesso do que os próprios afortunados. [...] O funesto apego do povo ao mal que lhe é feito chega mesmo a antecipar a sabedoria das instâncias superiores ...”.73

Diante de percepção tão profundamente pessimista, caberia, antes de desistir total- mente de qualquer ação, experimentar iniciativas localizadas, para romper a muralha da indústria cultural? Já nos anos 50, na Alemanha, onde a radiodifusão era dominada pelas emissoras estatais, Adorno examinou, para logo descartar, a possibilidade de êxito em se lançar programas radiofônicos que orientassem o ouvinte e o ensinassem a desenvolver capacidade crítica de audição. Ele só via a solução revolucionária, não a reformista, que seria “demasiado ingênua”. Meras mudanças de programação em algumas emissoras, pen- sadas por “alguns bem intencionados pedagogos” não lograriam “conseguir para o homem violentado algo melhor, ou simplesmente, diferente. Qualquer mudança séria da política de programação seria rechaçada com indignação se não se superasse amplamente todo o âm- bito da indústria da cultura.74

E em que consistiria essa ampla superação? A resposta só pode apontar para a re- conversão da música de mercadoria de consumo ligeiro em objeto de arte séria; para a submissão do valor de troca dos objetos musicais ao seu valor de uso; para a transformação do consumidor violentado, musicalmente inculto, em ouvinte consciente, musicalmente instruído. Tais transformações seriam impossíveis na vigência da indústria cultural, pois ela não tolera dissensões. Na vigência da indústria cultural, que a tudo nivela por baixo, tentativas localizadas seriam inevitavelmente “rechaçadas com indignação”, porque dirigi- das a ouvidos, mais que moucos, hostis. Seria preciso, portanto, subtrair a produção e a

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Adorno (1941: 453-7). 73

Horkheimer & Adorno (1947: 25-6). 74

fruição da cultura e da arte à esfera da racionalização mercantilizadora. Seria possível fazê- lo no âmbito das sociedades capitalistas? Certamente, não.

Há decerto um quantum de exagero nas formulações frankfurtianas. Para Martin Jay, Adorno “enfatizava o papel crítico do exagero no campo da cognição”.75 O próprio Adorno afirmou que só se pode delimitar as esferas da música séria (ou superior) e da mú- sica ligeira (ou música popular, ou canção de sucesso) dirigindo a atenção para seus extre- mos, e não para o espaço de transição entre elas. E admitiu que havia a “boa má música” – isto é, boa música ligeira, ou popular – ao lado de “toda a má boa música” – ou seja, músi- ca séria ruim.

“Sob a pressão do mercado, numerosos talentos autênticos são absorvidos pela mú- sica ligeira, sem se deixar submeter totalmente. Mesmo na fase tardia inteiramente comercializada, sobretudo na América, não se pára de encontrar achados originais, volteios rítmicos, harmonias surpreendentes...”

Todavia...

“...mesmo as escapadas mais talentosas no âmbito da música ligeira são deforma- das pela consideração dada àqueles que cuidam de que a coisa se venda”.76

Para Jay, essas e outras relativizações pontuais, feitas nos anos 1960, das críticas mais pessimistas à cultura de massa, não permitem afirmar que Adorno houvesse “abran- dado sua hostilidade à indústria cultural como um todo”.77 De fato, o artigo sobre música ligeira, publicado em 1968 em segunda edição, revista pelo autor, do qual foram extraídas as duas últimas citações, é no geral a reafirmação, não raro literal, de postulados constantes dos textos das três décadas anteriores. Na mesma linha deve ser lido o artigo Culture in- dustry reconsidered. O que mesmo analistas benevolentes de Adorno não deixam de regis- trar é “seu desgosto visceral” e “incansável animosidade com relação à cultura de massa”, seu “preconceito jamais superado” em relação à cultura americana, acompanhado de “eu- rocentrismo extremado”, bem como sua “incansável animosidade com relação à cultura de massa” e “o ódio que dedicava ao jazz”.78

Para Richard Leppert, a posição de Adorno em relação ao jazz é “indefensável”. Além disso, o pensador alemão não teria alcançado a “na- tureza híbrida” da música popular.79