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O período de emergência e consagração da bossa nova foi um gargalo, fase de se- leção de repertórios, autores e artistas que puderam permanecer ou se instalar no campo em condições de enunciar/serem enunciados e ouvidos. Esse estreitamento se constata pelo elevado número de atores, em nossa amostra, que, de diferentes formas, se exilaram do campo ou foram confinados a localizações bastante desprivilegiadas, seja no território da posição de prestígio, seja noutras posições, e que, por isso, são difíceis de serem lembra- dos, em associação com essa estética ou mesmo a qualquer outra. Tais exílios, em princí- pio, não seriam suficientes para configurar o período como sendo de emergência de nova formação estético-discursiva. O campo da música popular é numerosamente assediado por candidatos ao estrelato. A oferta parece ser costumeiramente superior à capacidade de a- comodação proporcionada pelas posições e postos existentes. É então inevitável que ex- pressiva proporção dos artistas que ingressam no campo tenham aí curta permanência, mesmo quando chegam a desfrutar de algum sucesso.

Contudo, vimos também o apagamento relativamente súbito de numeroso repertório de autores consagrados – como, por exemplo, o da grande parte das composições de Billy Blanco e Dolores Duran. Também colhemos evidências de célere decadência de estilos entonacionais correspondentes a esse repertório e ao de outras posições, inclusive próximas da bossa nova. O apagamento de repertórios e a decadência de estilos entonacionais expli- ca em boa parte a retirada dos artistas que os enunciavam. O ziguezague observável no percurso de vários intérpretes, em tentativas mais ou menos baldadas de (re)equilibrar-se no ambiente sócio-cancional modificado, também parece corroborar essa percepção. São bastante raros os casos de sobrevivência, no ambiente novo, de enunciadores oriundos de posições pré-existentes à bossa nova e que nela tenham conseguido se capitalizar. E os casos de sobrevivência – Claudette Soares, Dick Farney, este reemergindo já nos anos 70 – implicaram renegociação dos repertórios.

Os fenômenos aludidos no parágrafo anterior ganham significação mais eloqüente quando lembramos que nesta seção se trata de artistas próximos à bossa nova, e até habi- tantes de seu território. Mais notáveis seriam as evidências de descontinuidade se dirigís- semos nossa atenção para artistas e repertórios estranhos a essa posição, a exemplo das estrelas do rádio – Emilinha Borba, Jorge Goulart, Marlene, Ivon Curi, Francisco Carlos, Ângela Maria, Cauby Peixoto –, todos submetidos a substanciais perdas de prestígio e au- dibilidade, a partir de 1958-9.

O critério de seleção daquilo que persiste após a emergência e consagração da bos- sa nova não parece ser uno. Êxitos como o de Marisa “Gata Mansa” com a canção Viagem (1973); a notável estabilidade fonográfica de Dick Farney em 1972-8, com repertório par- cialmente renovado de sambas-canções; a incorporção ao repertório permanente, na condi- ção de standards, de composições de Johnny Alf dentro desse gênero, a exemplo de Ilusão à toa, O que é amar e Eu e a brisa; bem como o triunfo do samba-canção Esperança per- dida sobre os teleco-tecos de Billy Blanco são demonstrações inequívocas da sobrevivên- cia prestigiosa do padrão rítmico do samba-canção. O que fica para trás não é o samba-

canção, é a letra amargurada, desesperada, demasiado dramática, às vezes trágica, impreg- nada de noções como culpa e castigo.

E, portanto, a presença da batida da bossa nova, entendida como recurso técnico- musical facilmente identificável, ainda que tenha sido decisiva em determinada etapa do processo de transformação do campo, não é o critério fundamental que permite separar o que é pertinente na nova formação daquilo que não é. A batida se incorpora à nova forma- ção como um dos elementos de seu acervo de recursos de enunciação. O que parece mais decisivo é a estrutura de sentimento a que a batida serviu e que serviu a ela. Essa estrutura valoriza a enunciação cancional diseuse, tanto quanto a interação entre voz e batida do violão de João Gilberto também o faz. Aí, confluíram. Mas, como vimos, há outras formas de enunciação, além dessa, próprias a essa formação estética que vimos hipotetizando.

A estrutura de sentimento que conduz à desdramatização da letra e do canto parece associar-se a mudanças no padrão de relacionamento afetivo entre a mulher e o homem, que por sua vez devem estar associadas a mudanças no papel social da mulher e, portanto, ainda que por rebatimento e contra forte resistência, do homem. O quanto essas mudanças estão ainda “em suspensão” é algo que já se pode observar com alguma nitidez nos percur- sos de Maysa, Nara Leão, Ana Lúcia, Alaíde Costa e Nana Caymmi.

Também chama a atenção a emigração de instrumentistas. Evidentemente, eles têm mais facilidade para fazê-lo do que os cantores, porque o exercício de sua arte não depende do domínio escorreito de outro idioma. Ao contrário, em muitos casos – especialmente no dos percussionistas, violonistas e tecladistas – algum “sotaque” deve fazer parte do capital que lhes propicia acolhida no país de imigração. Mas é preciso estar atento para a possibi- lidade de que essa tendência também responda ao estreitamento do campo, no Brasil, para a música apenas instrumental, que é a forma de enunciação em que o músico mais se valo- riza, pois é nela que seu nome ganha visibilidade: na capa do disco, no cartaz do espetáculo etc.

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APÍTULO

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ONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA E CONSAGRAÇÃO DA BOSSA NOVA