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O signo ideológico de Bakhtin e Volochíno

Mas, Peirce não incluía entre suas várias áreas de interesse o estudo da sociedade. Disso decorre que seus textos não sistematizam as eventuais abordagens das diferenças de “atribuição de valor” a signos e a textos em função das diferentes posições ou situações sociais dos intérpretes. É em Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov (1895-1936) que se encontra tal desenvolvimento.123

O desafio escolhido por esses autores foi articular sociologia, psicologia e semiolo- gia na compreensão dos processos de significação que têm lugar no indivíduo consciente, entendidos como processos ideológicos. “Ideológico” tem aí o significado genérico de cor- po de idéias. Para esses dois russos, a palavra é o signo ideológico por excelência. Deve isso a cinco propriedades:

a) a palavra é um signo “puro”, que só existe para significar; “é o modo mais puro e sensível de relação social”;

b) ela é um signo “neutro”, o que lhe permite incorporar “qualquer espécie de fun- ção ideológica – estética, científica, moral, religiosa”;

122

A cartas estão reunidas em Semiotic and significs: the correspondence between Charles S. Peirce and

Lady Victoria Welby; Bell & Howell Information & Lea, 1977. 123

Na tradição acadêmica francesa, inaugurada por Roman Jakobson, a autoria de Marxismo e filosofia da

linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem é atribuída a Mikhail Bakhtin, cujo temperamento recluso e insubmisso a exigências do editor teria levado a abrir mão do crédi- to em favor de Volochínov, dado como adepto e discípulo. Volochínov seria responsável pela escolha do título e por alterações ou inclusões de pequena monta, para adaptar passagens do texto ao título escolhido e aos humores do editor, conforme explicação introdutória de Jakobson, constante da edição francesa e da tradução brasileira, feita do francês. Por outro lado, a tradição acadêmica norte-americana tem preferido creditar a autoria a Volochínov, como se vê na publicação da tradução inglesa pela editora da Universida- de de Harvard. A questão da autoria desse e de outros livros publicados sob os nomes de Volochínov e

Medvedev tem sido debatida, entre outros, por Katerina Clark & Michael Holquist, em Mikhail Bakhtin

(Belknap/Harvard University, 1986; edição brasileira em 1998); Gary Saul Morson & Caryl Emerson, em Rethinking Bakhtin: extensions and challenges (Evanston, Ill., Northwestern University, 1988) e em Mi- khail Bakhtin: creation of a prosaics (Stanford University, 1991); Kenneth Hirschkop, em Mikhail Bakh- tin: an aesthetic for democracy (Oxford University, 2001). No presente trabalho, optamos por reconhecer

c) é “o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana”; está presente em toda conversação e forma discursiva, desde os mais simples processos de produção até as disciplinas mais especializadas e formalizadas;

d) é produzida pelos indivíduos exclusivamente com seus recursos corporais, o que “determina o [seu] papel como material semiótico da vida interior, da consciência”; isso permite-lhe “funcionar como signo sem expressão externa”;

e) por ser “instrumento da consciência [...], a palavra funciona como elemento es- sencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for; ainda que existam ou- tros conjuntos de signos ideológicos socialmente utilizados – gestos, ilustrações, música, rituais –; e, embora esses outros tipos de signos não sejam substituíveis por palavras, ainda assim...

“A palavra acompanha e comenta todo ato ideológico. Os processos de compreen- são de todos os fenômenos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um com- portamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – ba- nham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente se-

paradas dele. [...] Nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de um sentido, permanece isolado: torna-se parte da unidade da consciência verbalmente constituída. A consciência tem o poder de abordá-lo verbalmente. [...] A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpreta- ção”.124

Esses autores trabalham com as noções de (i) signo exterior e (ii) signo interior, que são mobilizados respectivamente (i) nos atos de comunicação social – ideológicos – e (ii) na vida interior, no “psiquismo”, na consciência. A relação entre esses dois tipos de signo é dialética, retroalimentadora. O “psiquismo” não é concebido como exclusivamente indivi- dual, nem a ideologia é entendida como exclusivamente social. A vida interior existe no indivíduo, mas é constituída a partir de sua experiência social, e se desenvolve sobretudo de forma dialógica. A ideologia é uma construção social, mas é “refratada” no indivíduo, no qual se decompõe em palavra objetivada e consciência. Cada indivíduo é, por assim dizer, uma variação individual do social.125

A introspecção – “processo de auto-observação” e de “auto-explicitação” – é o pro- cedimento pelo qual mais agudamente se produz o encontro de signos interiores com sig- nos exteriores, da consciência com a ideologia, do psiquismo com a situação concreta em que o indivíduo pensante se encontra. O signo interior pode ser vago, impreciso; pode ali- mentar uma atividade psíquica fracamente compreensível, lacunosa, falha. A introspecção é um “ato de compreensão” que alcança seus fins quando torna explícito e claro – “perfei- tamente compreensível” – o que até então fora signo interior. Essa passagem é possível porque o signo interior pode ser exteriorizado, tanto quanto o exterior pode ser interioriza- do. E é uma passagem crítica, isto é, o ato introspectivo alcança a compreensão sob o crivo da “experiência objetiva”. Os dois russos chamam esse crivo de “comentário concreto”.

124

Bakhtin & Volochínov (1929: 36-8). Grifo no original.

125

Aquilo que é alcançado mediante introspecção necessita “fazer sentido” na situação em que se encontra o indivíduo:

“O comentário concreto ocorre sempre. A compreensão de cada signo, interior ou exterior, efetua-se em ligação estreita com a situação em que ele toma forma. Esta situação, mesmo no caso da introspecção, apresenta-se como a totalidade dos fatos que constituem a experiência exterior, que acompanha e esclarece todo signo inte- rior. Essa situação é sempre uma situação social. [...] O signo não pode ser separa- do da situação social sem ver alterada sua natureza semiótica”.126

Neste ponto, se quiséssemos agregar essa contribuição dos autores russos à defini- ção de Peirce, de 1897, diríamos que um signo é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém que se encontra numa determinada situação. O que nos per- mite operar essa composição conceitual é o fato de que tanto o americano quanto os russos isolam o fenômeno significativo no indivíduo, em vez de o fazerem na língua, como Saus- sure, que virtualmente “apaga” o indivíduo significador.

Da opção epistemológica que fizeram decorreu, em ambos os casos – Peirce e Ba- khtin-Volochínov –, a necessidade de desdobrar o signo segundo dois loci: um externo e outro interno à mente do agente significador: representâmen e interpretante, para Peirce, signo exterior e signo interior, para os russos. Em ambas as abordagens, as duas formas de existência do signo estão umbilicalmente ligadas: “não há signo exterior sem signo interi- or”, asseveram os russos. O representâmen necessariamente implica um interpretante, caso contrário não é um signo.127

Peirce evoluiu no sentido de romper a simetria entre os elementos de seu signo triá- dico e de afirmar a determinação do interpretante pelo representâmen (já então chamado apenas signo), bem como do representâmen pelo objeto. Os russos não dão esse passo. Em vez disso, afirmam a indissolubilidade da interação dialética entre psiquismo e ideologia, tanto quanto da ligação entre o signo e “a situação social em que se insere”. Portanto, para eles, o objeto não está “sempre lá”, ou, por outra, não é sempre “o mesmo”. Ao invés dis- so, o objeto pode ser (re)constituído a cada vez, em cada situação social em que é semioti- camente referido. Signo exterior e signo interior “impregnam-se mutuamente”, são reci- procamente dependentes, numa espécie de simbiose, em que um ataca e corrói o outro, para alimentar-se dele, ao mesmo tempo que o alimenta e vivifica:

“...existe entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel: o psiquismo se oblitera, se destrói para se tornar ideologia e vice-versa. O signo inte- rior deve libertar-se de sua absorção pelo contexto psíquico (biológico e biográfi- co), ele deve parar de ser experimentado [apenas] subjetivamente para se tornar signo ideológico. O signo ideológico deve integrar-se no domínio dos signos inte- riores subjetivos, deve ressoar tonalidades subjetivas para permanecer um signo vivo e evitar o estatuto honorífico de uma incompreensível relíquia de museu”.128

Retenhamos dessa passagem, por muito importante, o trecho grifado: a ressonância

126

Bakhtin & Volochínov (1929: 62-3). 127

Bakhtin & Volochínov (1929: 65); Peirce (1910: 48). 128

de tonalidades subjetivas que o signo ideológico, exterior, deve ser capaz de provocar, para permanecer socialmente vivo.

Bakhtin e Volochínov integram a práxis na definição do fenomêno lingüístico. A língua é “corrente ininterrupta” de comunicação verbal. O “estado da língua” não existe concretamente, é uma abstração. Para eles, é a interação verbal – que se exerce por meio de enunciações em situações concretas – que constitui “a verdadeira substância” e “a realida- de fundamental da língua”. Na interação verbal estão implícitos, como elementos constitu- intes da compreensão, tanto a situação imediata quanto o “contexto social mais amplo”. Qualquer enunciação, “por mais completa e significativa que seja”, não passa de “uma fração” daquela corrente. E cada enunciação é “única e não reiterável”: sua compreensão está indelevelmente atada à situação e ao contexto em que se dá, que com ela compõem “um todo”. O sentido de uma enunciação é propriedade desse “todo”.129

A esta altura, poderíamos avançar mais um pouco e agregar outro elemento à defi- nição originada em Peirce: um signo é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém que se encontra numa determinada situação imediata dentro de um con- texto social mais amplo. Mas essa definição, no caso dos signos lingüísticos, parece rasgar os dicionários que, não obstante, sabemos serem, também eles, fenômenos sociais concre- tos e efetivos. Para não sermos “dialéticos medíocres”, é então preciso distinguir, no senti- do de uma enunciação, dois vetores, um tendente à estabilidade das significações, outro à instabilidade. Bakhtin e Volochínov chamam-nos respectivamente “significação” e “tema”. À pergunta “que horas são?”, a resposta adequada, mas superficial, pode ser obtida medi- ante simples consulta ao relógio. Esta é a “significação” da pergunta, para os dois russos. Mas o “tema” dessa pergunta será inteiramente diferente, se formulada ao carcereiro pelo condenado à morte que aguarda o momento de execução da sentença ou por alguém que, no conforto de sua casa, não quer perder as cenas iniciais do próximo capítulo da telenove- la. Não se trata, portanto, de mera diferença entre denotação e conotação ou entre acepções dicionarizadas de uma palavra. Trata-se, em vez disso, de mobilizar o conjunto de infor- mações pertinentes à situação e ao contexto para compreender ativamente o sentido da enunciação como um todo.130

O último elemento do signo verbal de Bakhtin-Volochínov é o acento de valor ou apreciativo, cuja forma comum é, na linguagem falada, a entonação. Mas, além dessa ma- nifestação rasa da apreciação, toda enunciação é dotada de “orientação apreciativa”, pois, “sem acento apreciativo, não há palavra”. Bakhtin e Volochínov atribuem “à apreciação [...] o papel criativo nas mudanças de significação”. As palavras passam por reavaliações, sofrem mudanças de “contexto apreciativo”, são “elevadas a um nível superior” ou “rebai- xadas”. Disso decorre que em cada época e grupo social constitui-se um “horizonte apreci-

129

Bakhtin & Volochínov (1929: 79, 128, 131-4). 130

Bakhtin & Volochínov (1929: 134-6). O que esses autores chamam “tema” está bastante próximo do que Peirce (1909: 168) chamou de “significação” ou “interpretante final”, que está fora do signo e deve ser en- contrado pelo intérprete recorrendo a “experiência colateral” e que, para ensejar entendimento entre os in- terlocutores, requer compartilhamento de noções e “esquemas de imaginação” comuns, conforme foi visto páginas atrás.

ativo”, cuja evolução “é inteiramente determinada pela expansão da infra-estrutura econô- mica”.

“À medida que a base econômica se expande, ela promove uma real expansão no escopo da existência que é acessível, compreensível e vital para o homem. [...] Esse alargamento do horizonte apreciativo efetua-se de maneira dialética. Os novos as- pectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles, submetem-nos a uma reavaliação, fazem-nos mudar de lugar no inte- rior da unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética reflete-se na evo- lução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la”.131

O sentido de uma enunciação, portanto, muda não apenas em função (i) da situação imediata em que ocorre a interlocução e (ii) do contexto social mais amplo que enfeixa essa situação, mas também em função de algo que se define em escala maior, algo que im- pregna mais profundamente o contexto e a situação e que se move em tempo histórico: o horizonte apreciativo. Voltemos à pergunta “que horas são?”. Haverá horizontes apreciati- vos em que a resposta esperada se expressará em números e com elevado grau de precisão: “são seis e quinze”; estamos aí no marco de horizonte apreciativo cuja base econômica e relações sociais atribuem elevada importância à precisão de horários, como forma de con- trole das atividades produtivas. E a expectativa de resposta assim precisa se torna mais corriqueira na vida cotidiana quanto mais disseminada é a exigência da observância desse tipo de exatidão nas interações sociais. Numa comunidade agrária tradicional, em que a economia de subsistência seja mais importante que a produção para a venda, outra será a importância atribuída a horários, outra será a noção de tempo, a pergunta será feita com muito menos freqüência, a resposta requerida terá menos exatidão e, de resto, o uso de re- lógios será muito menos disseminado.

Situação imediata, contexto social e horizonte apreciativo são, de certa maneira, três “camadas de condições” mais ou menos circunstanciais ou estruturais que impregnam a “experiência colateral” dos intérpretes-significadores, que se incorporam nos termos de suas enunciações e que constituem seu sentido para os agentes participantes da interação semiótica-social.

A idéia de horizonte apreciativo não é incompatível com a de formação discursiva. O que permite aproximar os dois conceitos é, em primeiro lugar, a compreensão, tanto de Foucault quanto de Bakhtin e Volochínov, de que a História é descontínua. Em segundo lugar, e como decorrência da descontinuidade, cada formação (cada horizonte) elege seus próprios objetos, procede a suas próprias “escolhas temáticas” e “mudanças semânticas”. Mas, enquanto a idéia de formação discursiva leva-nos a concentrar a atenção apenas nos discursos e enunciados, as idéias de horizonte apreciativo e de contexto social ampliam nosso campo de interesse, levando-nos a atentar para as condições históricas – econômicas, sociais, políticas –, o que enseja a busca de compreensão das relações entre o campo em estudo (música popular) e o campo do poder, bem como de ambos com o espaço social.

131

Essa parte de nossa bricolagem teórica é então completada pela noção de estrutura de sentimento, proposta por Raymond Williams. Ela ajuda a caracterizar as etapas iniciais de processos de mudança social: a situação em que os atores orientam suas práticas não apenas em função de referências racionalizadas, institucionalizadas, sedimentadas na or- dem social – mas que já não servem às situações concretas, presentemente vividas por es- ses atores. Em vez disso, também manejam elementos que vêm a tomar parte na constitui- ção de sua consciência prática:

“É uma espécie de sensação e pensamento que é mesmo social e material, mas um e outro numa fase embrionária, antes de conseguir se tornar troca completamente

articulada e definida. Suas relações com o já articulado e definido são então ex- cepcionalmente complexas” [e, freqüentemente, tensas]. [Trata-se de...] “...uma

experiência social que ainda está em processo, amiúde mesmo ainda não reconhe- cida como social, mas tida como interior, idiossincrática e até mesmo isoladora”. 132

E, acrescentaremos, avançando a partir da formulação de Williams – de que a “es- trutura de sentimento pode ser definida como experiência social em suspensão” e como novo estilo de vida –, que a estrutura de sentimento, quando ainda nas fases iniciais de de- lineamento no espaço social, é carregada de imprecisão e de incerteza.