• Nenhum resultado encontrado

Exame teórico e empírico – mas não “administrativo” – dos processos da cultura popular sob as condições de produção, distribuição, exibição e consumo vigentes no marco do que Horkheimer e Adorno chamaram de indústria cultural é encontrado na abordagem dos auto-intitulados estudos culturais. A ênfase desses estudos, cuja matriz se localiza nos anos 70 em um centro de estudos da Universidade de Birmingham, Inglaterra, está no pólo da recepção, isto é, no exame de como os consumidores se apropriam dos objetos culturais colocados em circulação pela indústria fonográfica, pela televisão, pelos produtores de “video games” e como se dão outras atividades de lazer, a exemplo da freqüência aos “shopping centers”, o uso da praia, a prática do “surf”, etc.

Nem por privilegiar o estudo da recepção e apropriação os culturalistas britânicos deixam de formular uma teoria da sociedade para dar sustentação ao seu enfoque. A idéia fundadora é haurida em Karl Marx (1818-1883), especialmente na Introdução de Para a

88

Eco (1964: 14). 89

crítica da economia política, texto de 1857, segundo o qual a produção de mercadorias, sua distribuição, troca e consumo são momentos do circuito econômico na sociedade capi- talista, encadeados e interdependentes, que podem ser analiticamente examinados cada qual em sua vez, mas devem ser concebidos como elos igualmente necessários e mutua- mente determinantes de todo o circuito, sem que se possa afirmar que, constitutivamente, um momento tenha precedência sobre os outros. Nessa perspectiva, a produção só se reali- za no consumo, o consumo é o “retoque final” da produção. Se um objeto é produzido mas não é consumido, sua produção resta incompleta: “um vestido converte-se efetivamente em vestido quando é usado; uma casa desabitada não é, de fato, uma casa efetiva”, já que o produto não é produto por ser “atividade materializada”, mas apenas na medida em que se torne “um objeto para a atividade do sujeito” que o consome. Portanto, “a produção engen- dra o consumo” tanto quanto “o consumo engendra a disposição do produtor”. Ou, na e- nunciação de Stuart Hall referindo-se a essa passagem, “o consumo determina a produção, assim como a produção determina o consumo”.90

Outra idéia fundamental vem de Antonio Gramsci (1891-1937), com a noção de hegemonia como dominação consentida. Os culturalistas trabalham no âmbito de socieda- des em que a estrutura política e social é fundada na hegemonia, não na coerção. A hege- monia consiste em conquistar e manter o “consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes mas- sas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social”.91 A hegemonia gramsciana funda-se em prestígio – econômico, político, social – e é traba- lhada por intelectuais no campo especificamente ideológico.

A terceira contribuição fundamental ao corpo teórico dos estudos culturais vem de Louis Althusser (1918-1990). Os culturalistas haurem nesse autor, em primeiro lugar – analiticamente falando –, a idéia de que a ideologia não é um corpo estático de idéias que as classes dominantes impõem aos dominados, mas um processo dinâmico que deve ser constantemente reproduzido e reconstruído na prática cotidiana. Em segundo lugar, está a idéia de sobredeterminação, pela qual, em vez de a base econômica da sociedade determi- nar unicausalmente toda a sua superestrutura ideológica, as instâncias desta última são re- lativamente autônomas, dotadas de uma eficácia específica própria, também determinantes dos fenômenos sociais. Estes estão sujeitos à multicausalidade e à sobredeterminação, em que a base econômica tende a funcionar como causa primordial, determinante apenas em última instância. Em terceiro lugar, vem a noção dos aparelhos ideológicos de Estado, ins- tituições que exercem seu poder na formação das pessoas e que as levam a comportar-se e a pensar de maneiras socialmente aceitáveis, isto é, conformes ao status quo.92

Esta última noção não é incompatível com a de “estado ampliado” em Gramsci, na qual à sociedade política acrescenta-se a sociedade civil, com as organizações desta ser- vindo de trincheiras protetoras do Estado tout court e, portanto, da ordem estabelecida, isto é, da organização social constituída de acordo com o feitio que aproveita a determinado

90

Marx (1857: 113-22; os trechos citados estão às págs. 115-6). Grifado no original. Hall et al. (1989: 356).

91

Gramsci (1932: 21). 92

“bloco histórico”. Tampouco a noção althusseriana de ideologia recusa a da hegemonia gramsciana.

Mediante a junção das contribuições desses dois autores, os culturalistas entendem que a hegemonia que se expressa em um bloco histórico, mesmo mantida, não pára de ser desafiada. Na vida cotidiana os dominados são reiteradamente confrontados com situações em que se evidenciam as desvantagens de sua subordinação. Para que não se rebelem nem ponham em xeque a dominação, a hegemonia sobre eles exercida precisa ser continuamen- te conquistada e reconquistada: o processo é dinâmico e ininterrupto. E o fato de prevale- cer a situação de hegemonia não implica a inexistência de irrupções de formulações ideo- lógicas contra-hegemônicas. A hegemonia é então território de lutas simbólicas, nas quais se disputam as significações socialmente válidas.93

A essas três contribuições soma-se a semiologia de Mikhail Bakhtin (1895-1975), para quem o signo lingüístico vivo é sempre ideológico e abriga uma “dialética interna”, de modo a comportar interpretações diferentes, e até diametralmente opostas, feitas por atores situados em posições diferentes, e até opostas, na formação social cuja língua o signo inte- gra. O signo é, portanto, polivalente: “em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Nessa luta, “a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e aci- ma das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de va- lor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”.94

Introduzida a noção de polissemia e tratados os objetos culturais como “textos” – coleções organizadas de signos –, os culturalistas aduzem a noção de luta pelos significa- dos (“struggle over meaning”) e procuram evidenciar as diferentes “leituras” que podem ser e são feitas pelos consumidores dos produtos da indústria cultural. Trata-se de perquirir a significação social desses produtos não apenas nas instâncias e momentos de sua produ- ção, mas principalmente no âmbito de seu consumo efetivo, isto é, de sua apropriação, de seu uso pelos consumidores, nas elaborações simbólicas que estes perfazem nesse uso: as significações que atribuem a tais objetos.

No que toca à fruição dos objetos culturais industrializados, o ponto central da for- mulação culturalista, no marco dessa armação teórica, é o postulado de que a codificação operada pelos que os produzem não coincide necessariamente com a decodificação produ- zida por todos os que os consomem. O código empregado no momento da produção seria o código hegemônico na sociedade. Na decodificação, pode ser estendida a dimensão cono- tativa dos signos empregados: trabalhar-se-ia as leituras segundo códigos não-hegemônicos e mesmo contra-hegemônicos. Não se trataria, pois, de atribuir as disjunções entre signifi- cações no âmbito dos produtores e dos consumidores a “ruídos” de comunicação, a defici- ências culturais dos consumidores ou a eventual inépcia profissional dos produtores – ain-

93

Fiske (1987: 259). 94

Bakhtin & Volochínov (1929: 47-8), Hall (1981: 258-9). Além dessas quatro fontes teóricas, também cabe- ria mencionar as contribuições dos britânicos Raymond Williams, Richard Hoggart e E. P. Thompson, bem como de Roland Barthes, mas parece desnecessário analisá-las aqui. Do primeiro, mobilizaremos no pró- ximo capítulo a noção de “estruturas de sentimento”.

da que todos esses fenômenos tenham lugar. Mas cuida-se, ao invés, de propor uma “teoria da ‘comunicação sistematicamente distorcida’”.95

Num primeiro momento, em ensaio teórico dedicado especificamente à análise dos processos de significação relativos a programas de televisão, Stuart Hall (1932) propôs a hipotética existência de três tipos ideais de posição a partir dos quais se daria a decodifica- ção, tipos que deveriam ser posteriormente testados e refinados mediante pesquisa empíri- ca: (i) a posição dominante-hegemônica, na qual o telespectador “opera dentro do código dominante” e faz a leitura desejada pelos produtores da emissão; (ii) a posição do “código negociado”, no qual se compõem elementos de adaptação com outros de oposição; e (iii) a posição oposicionista ou contestatória, que opera uma decodificação “globalmente contrá- ria” à do código dominante.96

Esse primeiro esboço de modelo de “codificação/decodificação” recebeu diversas críticas, inclusive de seu autor. O esquema desenhado por Hall era incompleto,97 pois en- fatizava em demasia uma parte do circuito: aquela que vai da produção-codificação à re- cepção-decodificação. Faltava-lhe contemplar a parte que cumpre o percurso inverso, indo dos destinatários dos programas aos seus produtores. Isto é, faltava considerar adequada- mente o quanto os produtores já inscrevem, na apresentação e no conteúdo dos programas televisivos, aquilo que sabem sobre como as audiências tendem (i) a receber aqueles pro- dutos e (ii) a retrabalhar seus significados explícitos e implícitos. Portanto, a codificação, no momento da produção, é também ela uma decodificação dos códigos dos consumidores. Nessa operação, os produtores acautelam-se: prevêem as leituras negociadas e procuram circunscrever e reduzir as possibilidades de leitura contestatória. Daí decorre que já se tor- na mais problemático caracterizar, na pesquisa empírica, qual seria exatamente a leitura dominante, em relação à qual o pesquisador procuraria caracterizar as leituras divergentes praticadas pelos consumidores.98

Outras críticas dizem respeito ao simplismo dos três tipos ideais hipoteticamente deduzidos por Hall e a uma excessiva ênfase que ele teria emprestado às diferenças de classe ao sugerir qual seria a base social das posições de decodificação. A pesquisa empíri- ca tenderia a não encontrar os dois tipos extremos e a encontrar variadas posições distribu- ídas no espaço da negociação, inicialmente dado como singular.99

Para consolidar o resultado dessas críticas, John Fiske (1939) postula que “o texto televisivo não é uma entidade auto-suficiente que porta seu próprio sentido”. Em vez disso, é “conjunto de sentidos potenciais que podem ser ativados de diferentes maneiras”, depen- dendo da amplitude das experiências sociais constituídas pela variedade de seu público. Uma pluralidade ampla de telespectadores ativará diferentes compostos de significações em relação a esse “texto” e em face dele. Tais leituras serão negociadas entre dois pólos: o da “similaridade”, que corresponde à dominância, e o da “diferença”, que responde à resis- 95 Hall (1980: 400). 96 Hall (1980: 399-402). 97

O diagrama do processo de codificação/decodificação está desenhado em Hall (1980: 391). 98

Hall et al. (1989: 356-7, 362-4).

99

tência. Mas o potencial de significação não é infinito, é prescrito: cada texto “delimita a arena da luta pelos significados, marcando o terreno em que a variedade de leituras pode ser negociada”.100

Saindo do terreno específico da televisão rumo ao campo da cultura popular em ge- ral, Fiske formula a seguinte proposição:

“A cultura popular é feita por várias formações de pessoas subordinadas ou des- providas de poder, a partir dos recursos, tanto discursivos quanto materiais, provi- dos pelo sistema social que lhes nega poder. Ela é, portanto, contraditória e confli- tuosa até o âmago. Os recursos – televisão, discos, roupas, video games, linguagem – são portadores dos interesses dos econômica e ideologicamente dominantes; e possuem linhas de força dentro deles que são hegemônicas e que trabalham em fa- vor do status quo. Mas o poder hegemônico só é necessário, e mesmo possível, porque há resistência. Então, esses recursos também devem portar linhas de força contraditórias, que são apreendidas e ativadas diferentemente por pessoas diferen- temente situadas dentro do sistema social”.101

Vamos reter dos enunciados dos culturalistas: (i) a idéia de polissemia inscrita nas enunciações; (ii) a noção de que os textos, ou enunciados, sejam eles cancionais, textuais ou audiovisuais, são momentos de significação que se inscrevem num espaço social de disputas e que são eles próprios objetos de disputa simbólica nesse espaço social; (iii) que essas disputas se dão entre forças hegemônicas e forças subordinadas. A esse conjunto de proposições devem ser agregadas as noções bourdieusianas de que (iv) os campos intelec- tuais são espaços dominados dentro do campo do poder (político, econômico); e (v) a posi- ção de maior prestígio num campo artístico autonomizado, isto é, a que detém maior parce- la de poder simbólico, tende a não ser a que corresponde, por homologia, à posição domi- nante no campo do poder político ou do poder econômico.