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O artista-intelectual, o público e a indústria

Mário de Andrade fazia, sobretudo no que toca à música, distinção entre popular e popularesco. Todavia, de início, não riscou esse traço distintivo. Em 1928, ele tratava i- gualmente como “populares”: (i) criações folclóricas, (ii) “peças populares” de Carlos Gomes e de Chiquinha Gonzaga, autores treinados cuja música requer, também para exe- cução, certo tanto de treino, e (iii) “os maxixes impressos de Sinhô”, compositor autodida- ta, dito “pianeiro”, cujas composições freqüentemente apropriavam temas de criação cole- tiva (ou alheia), apanhados “no ar, como passarinhos”.133

Nesse primeiro momento, Mário reunia, como “popular”, ou como parte do “popu- lário brasileiro”, a criação folclórica mais ou menos tradicionalizada, a criação ainda recen- te, mas anônima e freqüentemente coletiva, e a criação de autoria identificável, inclusive a editada e a gravada e vendida em discos e em partituras. Mais tarde é que passou a distin- guir entre o popular e o “popularesco”, colocando sob esta última denominação a música impressa e a música gravada, de autoria identificada, e mais ou menos aproximada do mo- do propriamente popular de fazer música. São modinhas, maxixes, sambas urbanos, toadas, romances e composições para o teatro de revista. Os autores dessa música tanto são por ele chamados de compositores quanto de inventores. Por popularesco o autor modernista en- tende tanto a produção autoral mais amalgamada a esses gêneros de elaboração anônima e coletiva quanto as contribuições mais individualistas, a exemplo das criações de um “tipo rastacuera de nordestino carioquizado, gênio sem eira nem beira”, como Catulo da Paixão Cearense.134 132 Williams (1977: 131, 133). Grifamos. 133 Andrade (1928: 20-5), Alencar (1968: 5-10, 57-63). 134 Andrade (1944: 192-3).

Decerto a mudança de compreensão do fenômeno corresponde ao avanço da orga- nização do campo da música popular no Brasil e ao aprofundamento das relações profis- sionais e comerciais entre seus agentes. Quando da publicação do primeiro desses textos (1928), as emissoras de rádio eram muito pouco numerosas, não podiam veicular publici- dade e chegou-se a experimentar o sistema de pagamento de subscrição à emissora – “rádio clube” – para possuir aparelho receptor. Nos primeiros anos, os aparelhos receptores eram de galena. Nem a emissão, nem a recepção destacavam-se pela qualidade. Nessas condi- ções, ouvir rádio ainda não se tornara hábito socialmente significativo, como se tornaria na década seguinte, quando o rádio de válvula incrementaria a qualidade da recepção, as e- missoras aperfeiçoariam o sinal e a veiculação de publicidade substituiria definitivamente o sistema de subscrição, cabendo ao ouvinte apenas a despesa de adquirir o receptor e ter acesso à rede elétrica.

E a indústria do disco, embora instalada no Brasil desde 1902, apenas começava, naquele exato momento, um arranco de modernização tecnológica e comercial, com a ado- ção da gravação elétrica e com a entrada em funcionamento de uma série de novas firmas produtoras, inclusive novas subsidiárias de multinacionais ou nacionais associadas a multi- nacionais, que começavam a introduzir, nas relações com os artistas mais importantes ou populares, o sistema de participação nas vendas e davam margem ao comércio da autoria de composições e de contratos informais de exclusividade na gravação de repertórios.135

Mais tarde, ao fazer a distinção entre popular e popularesco, Mário já dispunha de fenômeno consolidado de exploração da música de feitio popular – seja no rádio, seja no disco, ou ainda em novos espaços, como os filmes musicais e os cassinos – e já podia ob- servar o modus operandi dos autores e intérpretes envolvidos na composição e execução musical afastando-se dos procedimentos mais espontâneos e ingênuos – ou mais tradicio- nais e oitocentistas – do período anterior. Já podia ver aí o domínio da “submúsica, carne para alimento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial, com que fábri- cas, empresas e cantores se sustentam”.136

Entretanto, ao cunhar termo próximo a (e derivado de) “popular” e ao afirmar que nesse campo do popularesco havia “admiráveis criações” e “figuras valiosas”, ele não atri- buiu necessariamente ao adjetivo a conotação pejorativa que o sufixo “esco” pode às vezes sugerir. O “popularesco” não se confundia necessariamente com a “submúsica’. Ao contrá- rio, reconhecendo o interesse das realizações de Donga, Sinhô e Noel Rosa, por exemplo, pareceu admitir a capacidade desse tipo de criação de contribuir para aquilo que já vinha propondo, como programa estético, desde os anos 1920, especialmente em seu período de maior aproximação entre projeto estético e intenção política, no final daquela década: “a- ferradamente nacionalisar a nossa manifestação” musical. E a nacionalização implicava,

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Os registros de compra e venda de sambas, bem como de exclusividade na gravação de composições iné- ditas, a partir do final dos anos 1920, são extremamente numerosos e tornaram-se de conhecimento públi- co; não é preciso fazer aqui uma longa enumeração de exemplos demonstrativos. Quanto à participação nas vendas encontram-se informações, por exemplo, no que se refere a Pixinguinha, na condição de solista de flauta, em Cabral (1997a: 123-6), onde também se acha uma descrição da renovação do parque indus- trial fonográfico brasileiro em 1927-9, com a entrada de gravadoras estrangeiras; e, no caso de Carmen Miranda em 1930, em Barsante (1985: 50).

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para Mário, a valorização do material musical popular, como documento e fonte de inspi- ração. Postulou mais de uma vez que “as milhores manifestações da canção brasileira são de origem rural”. Mas não se recusava a reconhecer o caráter nacional em numerosas com- posições urbanas. Para ele, por exemplo, o carnaval carioca de 1939 estava sendo “bastante fecundo em sambas bons”. Em sua avaliação daquela safra, distribuía qualificativos como “intensidade dramática”, “esplêndida” e “belíssima”, a ponto de emocionar-se durante a observação direta do fenômeno – “sei que não pude aguentar” –, ainda que também temes- se a “eminente instabilidade” do caráter desse samba, carente de “tradição” e, por isso, capaz de deixar-se seduzir por “internacionalismos e influências estrangeiras fatais”.137

O programa estético de Mário de Andrade reaparecerá no desenvolvimento da pes- quisa, absorvido em um ou mais de um dos tipos de discurso que descrevemos acima. A- qui, importa enfatizar dois aspectos das idéias de Mário. Em primeiro lugar, está a capaci- dade da música popularesca de se aproximar e, no limite, de se confundir com a música popular. É parte constituinte de seu modus operandi trabalhar com elementos de formas elaboradas coletivamente e portanto entranhadas na sensibilidade coletiva. Em segundo lugar, vemos essa tarefa propriamente intelectual de organização da cultura, de elaboração da nacionalidade brasileira pela via estética, inclusive de uma estética “popularesca”.

Essa missão defendida por Mário aproxima-nos da concepção gramsciana do papel social do intelectual, que, propondo-se a ser “orgânico”, elabora criticamente um corpo coerente de idéias, uma filosofia que, correspondendo ao interesse do grupo social a que se liga, seja capaz de cimentar unidades culturais e políticas entre grupos de atores social e economicamente desiguais, formando um “bloco histórico”.

Para preparar a conclusão deste capítulo teórico, interessa neste momento chamar a atenção para um dos aspectos da relação entre os intelectuais e a “massa”, no enfoque de Gramsci. Pensando em termos de projeto político e, especialmente, na construção e forta- lecimento de partido político que se mostrasse capaz de conduzir à realização desse proje- to, o pensador italiano se deteve no exame das dificuldades daquela relação.

“O problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma ‘religião’, em uma ‘fé’, ou seja, que produziu uma atividade prática e uma vontade nas quais ela esteja contida co- mo ‘premissa’ teórica implícita (...) é o problema de conservar a unidade ideológi- ca em todo o bloco social que está cimentado e unificado justamente por aquela de- terminada ideologia”.138

Esse problema deriva do fato de que a “filosofia” obedece a lógicas distintas nos in- telectuais e nas massas. Os intelectuais dedicam-se à elaboração crítica, coerente e una de um corpo de idéias, mas “nas massas como tais a filosofia não pode ser vivida senão como uma fé”. Dessa disjunção de lógicas podem decorrer toda sorte de desencontros, na pers- pectiva da luta política: “este processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio de

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Andrade (1928: 20; 1931: 18; 1939: 268-9; 1944: 193), Veloso & Madeira (2000: 123). Grifamos.

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contradições, de avanços e de recuos, de debandadas e de reagrupamentos; e, neste proces- so, a ‘fidelidade’ da massa (...) é submetida a duras provas”.139

Transpondo esse raciocínio do campo político para o da arte, ainda que se trate de uma arte igualmente interessada em obter e conservar o favor da “massa”, é preciso reter o princípio da disjunção entre as lógicas, que conduz à percepção de que, no artista, a elabo- ração das composições pode dar-se em nível de exigência diferenciado daquele comparti- lhado pela sua audiência. Por exemplo, e reiterando o postulado de Bourdieu, “a transfor- mação dos instrumentos de produção artística precede necessariamente a transformação dos instrumentos de percepção artística”. O prestígio entre os pares, mesmo em música popular, deriva em proporção não desprezível da disposição do ator para se colocar pro- blemas técnico-musicais em graus de complexidade acima da média e de sua capacidade de resolvê-los em composições com graus superiores de acabamento e sofisticação mas, ainda assim, popularizáveis. Compor por acordes, por exemplo, é um desses caminhos, como explica Edu Lobo, talvez o mais bem sucedido compositor do período de predomínio da estética nacional-popular:

“Nós estávamos [em 1967] muito preocupados com harmonia, com aprender har- monias novas, cuidar das letras, cuidar das canções do melhor jeito possível. E em torcer para que as pessoas gostassem e para que a nossa música tocasse no rádio. Mas a gente não queria dirigir o trabalho para aquilo, quer dizer, não tinha uma coisa pragmática. Era uma coisa romântica mesmo, artística de verdade, como eu gosto. (...) Eu acho que a gente ficava vendo o Tom [Jobim] e querendo ser aquilo ali. Fazer uma música muito boa e que tocasse no rádio. Mas sem nenhum empo- brecimento, sem nenhuma maneirada ou simplificação. A idéia era carregar na tin- ta e fazer o melhor possível”.140

Nesse enunciado, em que “maneirada”, “simplificação” e “ser pragmático” corres- pondem à indesejada concessão do artista à facilidade de popularização, em que expressões como “as pessoas gostarem” e “tocar no rádio” remetem às “duras provas” impostas à “fi- delidade das massas” pela auto-referência – “harmonias novas”, ser “artístico de verdade”, fazer “como eu gosto” – com que os intelectuais não raro impregnam suas formulações, expressa-se com nitidez a tensão a que Gramsci alude.

Não se trata, aqui, como resta evidente das próprias palavras de Edu Lobo, de supor o esoterismo do artista que se dedica à arte pela arte, à arte pura. O campo da música popu- lar pode admitir, mutatis mutandis, a noção de vanguarda artística, mas é sempre o campo de uma arte aplicada, digamos assim. O artista, ainda que alimente pretensões elevadas, está sujeito “a exibir, de forma mais ou menos nobre em cada caso, as marcas de origem da atividade que escolheu: produção de canções banais para competir no mercado”.141 Está sujeito a ter que negociar seu trabalho com esquemas industriais e comerciais, impondo-se, em certa medida, mas sendo sujeitado em larga proporção à lógica micro-econômica do negócio musical. Mas, não obstante tais constrangimentos, ele pode inscrever-se entre os “numerosos talentos autênticos” e, no mínimo, fazer “boa má música”, pontuada por “a- 139 Gramsci (1933: 104, 109). 140 Lobo (2003: 3). Grifamos. 141 Veloso (1997: 238).

chados originais”, “volteios rítmicos” e “harmonias surpreendentes”, como lhe concede Adorno, esse crítico radical.

Apresentam-se então, como necessárias, três pares de relações, todas sujeitas a dis- junções: (i) a do artista com o público, (ii) a do artista com o aparato técnico-empresarial que, em geral, intermedia sua relação com o público e (iii) a desse aparato com o público, todas elas devendo ser vistas em dupla perspectiva, isto é, também em vice-versa. Parece provável que, quanto mais autoral e insubmisso seja o artista-intelectual que consegue atu- ar nesse quadro, mais tensas tendam a ser as negociações ensejadas por sua atuação.