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O núcleo denso da bossa nova

O grupo dos nomes consensualmente associados à emergência e consagração da bossa nova é integrado por Vinicius de Moraes, Aloysio de Oliveira, Antonio Carlos Jo- bim, Newton Mendonça, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal, João Gilberto, Sylvia Telles e Alaíde Costa. Não há no campo relato que lhes negue tal associação no período 1958-62, que constitui o lapso central deste capítulo.

Nesta seção, começaremos por aqueles que são, principalmente, autores de canções: compositores musicais e letristas. Em seguida, trataremos dos intérpretes. Essa separação de papéis em música popular não é rígida. Mas em geral não é difícil distinguir com clare- za aqueles que são principalmente autores e os que são principalmente intérpretes. Os auto- res, quando interpretam, dedicam-se quase exclusivamente às suas próprias composições. Os intérpretes, quando também compositores, formam repertório majoritariamente com peças da lavra de outros autores. É possível encontrar casos limítrofes. Roberto Menescal e João Gilberto estão entre eles, como logo veremos.

A. Os autores

Vinicius de Moraes (1913-1980), o mais velho de todos os nomes consensuais vin- culados à bossa nova, é também em 1958, destacadamente, o de maior prestígio artístico e intelectual, simbolicamente o mais capitalizado. É o único que, além de haver concluído curso superior, bacharelando-se em direito (1933), já consolidou inserção social coerente com o status de diplomado, isto é, de integrante da elite cultural do país.6

Poeta premiado desde o segundo livro (1935), sua obra lírica precedera de vários anos a tendência de recu- peração do rigor formal, que veio a ser característica da “geração de 45”.

Fora o primeiro brasileiro a receber bolsa do Conselho Britânico, o que lhe permiti- ra estudar poesia inglesa e aperfeiçoar sua própria técnica no Magdalen College da Univer- sidade de Oxford (1938-9). Diplomata de carreira desde 1943, já tem no currículo postos ocupados em Los Angeles (1945-50) e Paris (1953-7), quando sua composição Chega de saudade, feita em parceria com Antonio Carlos Jobim em 1956, é interpretada em disco por João Gilberto, no fonograma que é considerado, pela maioria dos cronistas e pelos pró- prios artistas do campo da música popular, o marco fonográfico inicial da nova estética (julho de 1958).7

Aloysio de Oliveira (1914-1995), segundo sua autobiografia, também formou-se, em Odontologia, mas não fez carreira. Limitou-se a concluir o curso e colar grau, para a- tender à expectativa dos pais. Já estava profissionalmente engajado na música, enquanto cursava a faculdade.

“Entre viagens [excursões a trabalho, no país e no exterior], cassino, rádio, grava- ções e shows em teatros e clubes, o Bando [da Lua] foi talvez, de todos os artistas, o que mais faturou nos anos 30. Não sabíamos o que fazer do dinheiro. Nossas fa- mílias já começavam a achar que tocar violão não era tão degradante. [...] Preguei meu diploma na parede de casa e nunca obturei dente de ninguém”.8

Em 1958, é o mais experiente na música popular e também o que possui mais poder nesse campo. Fora o líder do Bando da Lua, conjunto que, formado em 1931, fizera suces- so no Brasil, apresentara-se com êxito na Argentina, Chile e Uruguai e acompanhara Car- men Miranda nos Estados Unidos, onde Aloysio também trabalhara para os estúdios cine- matográficos de Walt Disney.9 De 1939 a 1955, suas atividades – interpretação musical, locução e consultoria na trilha sonora de filmes de temática latino-americana, colocação de letras em português em números instrumentais brasileiros ou brazilian-like aproveitados nessas trilhas, colaboração na versão de algumas delas para o inglês e respectiva edição –, foram exercidas quase exclusivamente naquele país.

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Em 1933, ano em que Vinicius concluiu o curso de Direito, havia 24.166 alunos matriculados em curso superior no Brasil, ou 0,06% da população total, estimada em 39.9 milhões, cf. IBGE (1936).

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Dados biográficos encontram-se sobretudo em Castello (1994). V. tb. Moraes (1959). A seção Pais funda-

dores, no próximo capítulo, é dedicada à análise da intervenção de Vinicius no campo da música popular. 8Oliveira (1982: 59).

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Em 1958, é já há dois anos o diretor artístico da Odeon, maior empresa produtora de discos no Brasil, subsidiária da britânica EMI. Nesse papel, cabe-lhe participar, em condição privilegiada, da seleção de artistas e composições que irão para o disco. Desem- penha papel central na decisão de abrir o estúdio da gravadora para registrar as primeiras interpretações bossanovistas de João Gilberto.

Durante o período em que Aloysio é seu diretor (1956-60), a Odeon reúne notável elenco de intérpretes “modernos” – Sylvia Telles, João Gilberto, Sérgio Ricardo, Dick Far- ney, Lúcio Alves, Elza Soares, Rosana Toledo e Trio Irakitan, além da atriz Norma Ben- gell –, que não são grandes vendedores de discos, mas, conforme a terminologia do próprio negócio fonográfico, são artistas de “prestígio”, atributo que conferem à gravadora cujo selo se imprime em seus discos e respectivas capas. Na seção dedicada ao estudo das gra- vadoras, no próximo capítulo, exploraremos a diferença entre o capital simbólico acumula- do pessoalmente por Aloysio e o poder que lhe é conferido pelo papel de dirigente- empregado de gravadora, enquanto o exerce.10

Antonio Carlos (Tom) Jobim (1927-1994) começou o curso de arquitetura, mas só o freqüentou por poucos meses, em 1946, abandonando-o para prosseguir os estudos musi- cais com professores particulares. É em 1958 compositor, arranjador e regente – “maes- tro”, palavra que denota competência reconhecida e elevada posição hierárquica, entre os músicos. Já ocupou, durante alguns meses, o cargo de diretor artístico da Odeon, no qual foi sucedido por Aloysio. Permanece na empresa, onde participa da direção musical dos discos e é formalmente o responsável pelos arranjos das gravações de João Gilberto e de vários outros cantores.

Jobim começara a alcançar patamar diferenciado de prestígio no meio da música popular quando em 1954 foi lançada a primeira gravação de sua obra Sinfonia do Rio de Janeiro. Era uma suíte de 11 canções populares, variando entre sambas-canções e sambas, feita em parceria com Billy Blanco, por iniciativa deste.11 Subiu novo degrau na apreciação dos pares e dos críticos quando, a convite de Vinicius de Moraes, compôs com este as can- ções e escreveu a partitura da peça musical Orfeu da Conceição. Orfeu foi à cena no mais prestigioso teatro do país, o Municipal do Rio, em setembro de 1956, com a colaboração de Oscar Niemeyer (cenários) e Carlos Scliar (“consultor plástico da produção”), entre outros artistas e intelectuais.12

O samba-canção Se todos fossem iguais a você, uma das composições da peça, tor- nara-se em 1956-7 o primeiro grande sucesso de Jobim. Receberia mais de 20 gravações, até 1959. Somou-se a outro samba-canção lançado em 1956, Foi a noite (13 gravações até 1959), feito em parceria com Newton Mendonça, no repertório apreciado por jovens prati- cantes amadores de música da Zona Sul do Rio, cujo gosto é imantado por manifestações contemporâneas da canção norte-americana temperada pelo jazz. O nome do compositor

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Para dados biográficos, v. Oliveira (1975, 1982). Para sua atuação como diretor artístico da Odeon, v. Castro (1990: 156-8) e Cabral (1997a: 162-4).

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Cabral (1997a: 84-6). 12

O programa completo da peça, com identificação de elenco e equipe técnica, pode ser obtido, na opção

entra para a agenda de referências musicais desses jovens e Jobim, por mercê dessas e de outras composições que vai lançando, e que vão sendo percebidas como “modernas”, as- cende em pouco tempo à condição de “ídolo” desses jovens. Todos lembrar-se-ão, nas dé- cadas por vir, do exato dia e das circunstâncias em que conversaram com Tom Jobim pela primeira vez.13

Para aferir a ascensão que já experimentara, cumpre ver que sua trajetória profis- sional começara em 1950 no papel de pianista em boates e restaurantes de Copacabana, o que compreende (i) a execução solo, (ii) em conjunto instrumental – sendo ou não o líder – e (iii) o acompanhamento de cantores. Dessa atividade noturna incerta e nem sempre salu- bre passara ao trabalho regular e diurno de, em editora musical situada no centro da cidade, colocar no pentagrama as criações dos compositores populares que não dominam a escrita musical. Daí, ascendera à orquestração, primeiro em emissora de rádio, depois em grava- dora: primeiro, a Continental, integrante de grupo empresarial associado a capitais estran- geiros; depois, a subsidiária da empresa britânica. Em 1957-8, era regente da orquestra da TV-Rio, no programa semanal Noite de Gala, o mais prestigioso da televisão carioca nesse período, espécie de primeira ilha de modernidade na televisão artesanal dessa época.

Seu progresso se exprime tanto nessa escalada de postos profissionais de prestígio crescente quanto nos registros da imprensa, com a publicação de elogios, a inclusão em listas de “melhores do ano” etc. Em 1959, o compositor parece chegar ao apogeu. É o autor brasileiro mais gravado no país: composições suas estão em 179 diferentes fonogramas. O segundo mais gravado nesse ano, com 120 registros, é seu parceiro Vinicius de Moraes. Note-se que essa predominância denota prestígio no meio musical, mas não implica dizer que tais fonogramas façam parte dos discos mais vendidos. Em vez disso, ela denota que Jobim é amplamente identificado, no campo musical, como o detentor da chave da moder-

nidade, do novo bom-gosto.14

Resume-se a 20 dias a diferença de idade entre Newton Mendonça (1927-1960) e Jobim. São amigos e parceiros musicais desde os 15 anos, quando, morando a não mais que três quarteirões de distância, se conheceram em Ipanema. Continuam parceiros de composição até a morte do primeiro, em novembro de 1960. Compõem numa cooperação em que revezam-se ao piano, em que ambos intervêm na letra, na melodia, na harmonia e na escrita da partitura e em que às vezes um, às vezes outro, toma a iniciativa de esboçar o projeto da composição. Ambos também compõem sozinhos ou com outros parceiros, sendo Jobim o mais prolífico. 1953 é o ano em que seus nomes chegam pela primeira vez aos selos dos discos, como compositores.

Não obstante o passado e o presente comuns, as perspectivas de Mendonça são bem diferentes das de Jobim em 1958. Não é músico em tempo integral. Acumula o trabalho

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Cabral(1997a:125-6,490,529;2001:23-4,32,34-5),Castro(1990:127).CarlosLyraentrevistadopor Luiz

RobertoOliveiraem1996,<http://www.jobim.com.br/clyra/lyra.frame.html>.Acessoem:29 mar. 2007.

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Cabral (1997a: 68-82, 157). Segundo a discografia das composições de Jobim em Cabral (1997a: 483-90), Eu sei que vou te amar e A felicidade (ambas em parceria com Vinicius) tiveram em 1959, respectivamen- te, 28 e 26 gravações diferentes. Parece improvável que esses números tenham sido alguma vez igualados por outro compositor no Brasil. V. tb. Jobim (1996: 95-6) e Santos (2003: 96).

diurno de escriturário concursado, no Hospital dos Servidores do Estado, com o de pianista em boates de Copacabana. Em parte, a vertente musical de sua carreira está estacionada no mesmo ponto em que se achava em 1952. Diferente da de Jobim, sua família, desintegrada e com menos recursos, não lhe propicia rede de relações sociais tão ampla e bem situada. Não conclui o curso científico. Começa a trabalhar três anos antes do amigo, em serviços burocráticos. Jobim é praticamente sua única via de acesso a gravadoras, editoras e intér- pretes de prestígio. Esse acesso, por opção ou limitação sua, é restrito ao compositor, não contempla o músico, cuja técnica de execução e criatividade são muito admiradas, mas apenas pelos outros músicos. Observado em escala social mais ampla, é como se Mendon- ça fosse apêndice de Jobim e é sob esse enquadramento que sua carreira de compositor está progredindo, pois as composições da dupla vão sendo cada vez mais gravadas, ainda que quase toda a visibilidade desse progresso esteja focada em seu parceiro.

Às vezes referido como “revoltado”, militou no Partido Comunista na adolescência e, embora não haja notícia de que continue militante, mantém, segundo seu biógrafo, as convicções e relacionamentos com alguns membros do Partido. Suas convicções políticas não se exprimem na obra do compositor.

De temperamento irritadiço (“pavio curto”) e extremamente arredio, mal é conheci- do pelos demais bossanovistas de primeira hora. Não participa pessoalmente nem compa- rece a qualquer dos eventos que deslancham a bossa nova no Rio de Janeiro em 1959-60.15 Mas, apesar dessa abstenção, não se encontra, em qualquer relato ou abordagem, um só registro de questionamento do vínculo recíproco entre Newton Mendonça e a bossa nova. De fato, três das composições feitas em parceria com Jobim estão entre as que em geral se considera mais representativas da estética bossanovista: Desafinado, Samba de uma nota só e Meditação. É desta última o verso em que se explicita o trinômio famoso: “o amor, o sorriso e a flor”. E as duas primeiras podem ser consideradas, de certa forma, canções- manifesto dessa estética. Contudo, às vezes é mencionado apenas como letrista, por pesso- as que abordam o tema da bossa nova, num dos indícios do esmaecimento de sua persona pública, para o qual contribui a morte precoce.16

Esses quatro formam, dentre os nomes consensualmente identificados ao surgimen- to da bossa nova, o grupo dos “veteranos”, que se caracteriza não apenas pela idade, mas principalmente pela posse de bagagem profissional no campo da música ou, no caso de Vinicius, pelo currículo intelectual e artístico em sentido amplo, no qual todavia também se incluem incursões esporádicas no campo da música popular. Em 1958, possuem capital simbólico, ainda que de diferentes tipos e diversas proporções nos elementos de que se compõe: (i) reconhecimento no estrito meio musical, (ii) nos estratos superiores do meio intelectual e (iii) nos segmentos sociais que dão atenção aos produtos culturais em que eles

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Câmara (2001: 19-21, 23-5, 32, 36, 47-53, 66-7, 71-2), Castro (1990: 204-5, 254-6), Bôscoli (1994: 57). 16

Análise semiótica-musicológica de Desafinado e Samba de uma nota só está em Pinheiro (1992: 58-60,

65-7). O caráter de canção-manifesto de Desafinado já fora postulado por Augusto de Campos, em artigo

publicado na imprensa diária, conforme trecho transcrito em Brito (1960: 34-5). Discutir-se-á, mais à fren- te, a intencionalidade ou não dos compositores de constituir manifestos musicais com essas canções.

se empenham. Formam o que Ruy Castro chama a “turmona” da bossa nova.17 Freqüentam escritórios e determinados bares do centro do Rio, para o trabalho e o convívio boêmio – intelectual e artístico –, nos finais de expediente. A exceção é Newton Mendonça, o menos capitalizado dos quatro autores, e que também trabalha próximo ao Centro, mas cuja vida musical e boêmia, muito parcimoniosa em palavras e pobre em conexões, transcorre quase toda em Copacabana.

Nos anos 50, atuar nos bairros centrais do Rio de Janeiro faz parte da ascensão pro- fissional do músico aos estratos superiores do establishment musical. Na Zona Sul estão quase todas as boates e demais lugares de prestígio em que se faz música à noite. Mas o prestígio social dos freqüentadores de alguns desses locais não se converte necessariamen- te em prestígio profissional para o músico que entretém a clientela. No Centro estão as gravadoras, as editoras musicais, as emissoras de rádio com suas orquestras, as sociedades arrecadadoras de direitos autorais. Um excerto de depoimento de Antonio Carlos Jobim ajuda-nos a entender os valores envolvidos na comparação entre os ambientes profissionais do músico na Zona Sul, principalmente Copacabana, e no Centro. Nele evidenciam-se co- nexões profissionais, evolução técnica – passando da execução individual ou em pequenos conjuntos para os arranjos e orquestrações –, empregos regulares com endereço constante:

“Toquei em tudo quanto é inferninho de Copacabana [...] até que finalmente fui trabalhar na Continental Discos: escrevia as músicas dos compositores que não sa- biam escrever e ajudava a fazer uns arranjos para orquestra. Consegui de certa for- ma passar da noite para o dia, o que foi um grande passo na minha vida. Aquela vida noturna era pouco sadia. Aí, trabalhando de dia, indo à cidade, entrei em con- tato com os arranjadores: Radamés, Gaya, Léo Peracchi, Lyrio Panicalli que me ajudaram bastante; comecei a fazer uns arranjinhos”.18

Também seria possível estabelecer distinções dentro da área central da cidade do Rio de Janeiro, recortando paisagens peculiares. Para compreender as diferenças entre os trajetos cotidianos desses personagens, basta constatar que o trabalho de Mendonça está localizado no bairro da Saúde, próximo ao cais do porto, em área separada do Centro pro- priamente dito pelo Morro da Conceição, que é preciso contornar para ir-se do Hospital à avenida Rio Branco, a mais moderna e prestigiosa do centro do Rio.

Os outros veteranos transitam principalmente pela área situada entre o Castelo e o Passeio Público, a mais beneficiada pela modernização da cidade empreendida no início do século. Aí está a maioria dos aparelhos públicos ligados à cultura: o Ministério da Educa- ção e Cultura, o Teatro Municipal, o Museu e a Escola Nacional de Belas Artes, a Biblio- teca Nacional, a Academia Brasileira de Letras, a Escola Nacional de Música, o agora re- cém inaugurado prédio modernista do Museu de Arte Moderna e a Associação Brasileira de Imprensa.

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Conforme Castro (1990: 228), onde a distinção e os termos são vinculados a apreciação que teria sido feita por Aloysio de Oliveira, a partir da observação do desempenho dos artistas que participaram do 1º Festival de Samba-Session, em setembro de 1959.

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Há também na Cinelândia a concentração de salas exibidoras de filmes, várias delas “lançadoras”, e, ali mesmo ou nas proximidades, as redações de alguns dos jornais mais influentes, como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, este então já passando pela modernização que o elevaria alguns anos depois à posição de maior prestígio entre os jor- nais brasileiros. Em 1958, todos os pontos de reunião boêmia de intelectuais, no Centro, situam-se nessa área.19

Diferentes dos veteranos, os integrantes da “turminha”, têm pouca afinidade com o centro da cidade e não freqüentam seus ambientes de convívio boêmio e intelectual nem, à exceção do letrista Ronaldo Bôscoli (1928-1994), seus ambientes de trabalho. O mais ve- lho desse grupo, menos de dois anos mais novo que Jobim e Mendonça, Bôscoli é em 1958 repórter esportivo e de variedades, com inserção profissional em alguns periódicos cujas redações ficam “na cidade”, mas em endereços afastados do circuito intelectual das proxi- midades do Castelo.20

O espaço urbano dos novatos estende-se pelos bairros da Zona Sul, de Laranjeiras e Flamengo à Gávea e Leblon, sendo Copacabana o seu centro. Por causa da diferença de idade e por circular mais ampla e diferenciadamente no espaço social e, portanto, ser capaz de estabelecer mais conexões fora do grupo do que os demais integrantes da “turminha”, Bôscoli parece exercer em seu âmbito certa liderança. É menos tímido. Há nele qualquer coisa de flâneur, de personagem pouco arraigado, disposto a – e disponível para – circular socialmente, sempre na Zona Sul do Rio, sobretudo na praia, e que desenvolve capacidade para identificar situações e tirar proveito delas. Na pré-adolescência,

“...nem pensava em ser músico, artista. Meu projeto era ser rico. E, para isso, acha- va que o melhor, o mais prático, era casar com uma mulher rica. [...] [Aos 20 anos] ...eu era a materialização viva daquele mocinho bonito do samba do Billy Blanco, que não trabalha e se sustenta com o dinheiro que a irmã lhe dá toda semana”.

Filho de pais separados nos anos 30, quando essa era condição extraordinária e po- tencialmente traumatizante, estudara apenas até o final do ginásio. Passara muitos anos sem estudar nem trabalhar. O fato de pertencer a famílias que tanto pelo lado materno quanto, principalmente, paterno têm muitos artistas nos ramos do entretenimento ajuda-o a acreditar que também possui o pendor, ainda que este só se concretize quando se aproxima dos 30 anos de idade. A esse elenco familiar vem somar-se Vinicius de Moraes, casado de 1951 a 1957 com Lila Bôscoli, irmã de Ronaldo, que por conta desse laço atua como assis- tente de Vinicius nos preparativos da encenação de Orfeu.

Na emergência da bossa nova, Bôscoli envolve-se na organização das primeiras a- presentações públicas dos novatos, nas quais assume a função de mestre de cerimônia (a- presentador), além de se empenhar na divulgação. Em 1958, em música, ainda é, mais que

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Cabral (1997a: 98-100) faz a lista dos pontos boêmios e seus usuários, baseado em crônicas de Paulo Men- des Campos, freqüentador dos mais assíduos.

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Bôscoli trabalhava na revista semanal Manchete, na Cidade Nova, perto do Estácio, área que já aponta para

a Zona Norte; e no vespertino Última Hora, junto à Praça da Bandeira, conexão entre a região central e a

Zona Norte. Isso não o impediria de circular no espaço boêmio da intelectualidade, no Centro, mas a leitu-