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As críticas de Morin e de Eco

Em texto de 1962, Edgar Morin (1921) principia por pôr em xeque a posição do in- telectual, cuja reação negativa à cultura de massa dever-se-ia à perda de poder na definição dos padrões de gosto estético. Na perspectiva desse autor francês, a intelligentzia via-se “despojada”, “espoliada”, num “mundo cultural em que a criação [fora] deslocada” do domínio dos artistas para o dos artífices da produção. Dado que, para ele, o observador crítico possuía um parti pris em relação ao objeto de sua ojeriza, então tornava-se “preciso primeiramente que o observador se estudasse, pois o observador ou perturba o fenômeno observado, ou nele se projeta de algum modo”.84

O método de abordagem de Morin é, então, autocrítico. E a autocrítica, em sua con- cepção, deve subordinar-se a um “método da totalidade”, que inclua “a participação do observador no objeto de sua observação”, isto é, a vivência direta das relações próprias da cultura de massa. Essa observação tem que relativizar a posição do observador, evitar que a relação observador-observado seja apenas de acrescentar (os preconceitos do observador ao objeto) ou de subtrair (aspectos do objeto para fazê-lo caber na idéia preconcebida do observador). É como se o francês dissesse, à maneira do antropólogo, que para conhecer a

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Benjamin (1936: 33). 84

cultura indígena não basta visitar os índios, é preciso viver durante algum tempo na aldeia. Daí, ele se propõe a superar o impasse entre a pesquisa eminentemente empírica e a abor- dagem predominantemente teórica, costurando uma à outra:

“...o método da totalidade deve ao mesmo tempo evitar o empiricismo parcelado, que, isolando um campo da realidade, acaba por isolá-lo do real, e as grandes idéi- as abstratas que, como as vistas televisionadas de um satélite artificial, só mostram um amontoamento de nuvens acima dos continentes. É preciso seguir a cultura de massa, no seu perpétuo movimento da técnica à alma humana, da alma humana à técnica, lançadeira que percorre todo o processo social. Mas, ao mesmo tempo, é preciso concebê-la como um dos cruzamentos desse complexo de cultura, de civili- zações e de história que nós chamamos de século XX”.85

Morin encaminha a discussão para um aggiornamento, que implica reconhecer li- minarmente que, com vícios e virtudes, a cultura de massas é a cultura do século XX. A leitura do livro de Morin encoraja Umberto Eco (1932) a aprofundar essa idéia.86

Sua crítica é ainda mais acerba. O conceito “indústria cultural” seria, ele próprio, um fetiche, cuja peculiaridade seria a de “bloquear o discurso, enrijecendo o colóquio num ato de reação emotiva”. Para o italiano, o fenômeno denunciado por Horkheimer e Adorno como sendo próprio do século XX – rebaixamento e padronização dos referenciais estéti- cos e culturais inscritos nos produtos oferecidos ao público pela indústria cultural – seria na verdade típico de processo cujo desenvolvimento atravessaria toda a cultura ocidental desde meados do século XV, a partir do advento das técnicas de impressão xilográfica e de tipos móveis. Essas técnicas permitiram multiplicar mecanicamente as cópias de cada tex- to, baratear sensivelmente o custo unitário do livro, ampliar o universo de seus potenciais compradores e assim propiciar sua maior difusão, dando ensejo ao hábito da leitura. A re- gra geral desse processo seria, desde o nascedouro, que os produtores de objetos culturais procuram adequar tais produtos aos padrões de gosto e de linguagem característicos da “capacidade receptiva” do consumidor médio. E tais objetos culturais já se desincumbiam, desde esse início, de múltiplas tarefas: (1) “difundir entre o povo os termos de uma morali- dade oficial”, portanto (2) “desempenhar tarefa de pacificação e controle” social, (3) “for- necer material de evasão” (4) “prover a existência de uma categoria popular de ‘literatos’” e (5) “contribuir para a alfabetização de seu público”.87

O processo social instaurado com o livro mecanicamente reproduzido se aprofunda. Cada livro diz, de uma vez por todas, o que autor e editor entendem que lhe cabe dizer.

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Morin (1962: 22-3). Grifamos. Trata-se aí, muito provavelmente, de menção implícita aos impasses que

frustraram a colaboração entre Theodor Adorno, que seria o teorizador abstrato, e Paul Lazarsfeld, que se- ria o adepto do empirismo parcelador. Essa tentativa de colaboração ocorreu na Costa Leste dos EUA, em 1938-41, no âmbito do Princeton Radio Research Project. As questões suscitadas foram um pouco mais complexas do que permite entrever essa oposição simplista. Posteriormente, tanto Lazarsfeld (1969: 322-5) enfatizou a importância das idéias críticas para a pesquisa em sociologia da comunicação, quanto Adorno (1969: 352-3) reconheceu a necessidade de comprovar as idéias teóricas mediante pesquisa empírica. V. tb. Jay (1984: 107-8) e Wiggershaus (1986: 263-73).

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“...leggo L’Esprit du Temps, di Edgar Morin, il quale dice che per poter analizzare la cultura di massa bi-

sogna segretamente divertirvicisi, non puoi parlare del juke box se ti fa schifo infilarci la monetina...”. Eco

(2005: XI). 87

Mas, com o surgimento da imprensa periódica, nova situação se apresenta. O periódico é obrigado a dizer, a cada edição, algo relativamente novo e em quantidade suficiente para preencher todas as suas páginas. Cria-se outro tipo de laço, entre o periodista e seu leitor: uma regularidade de produção e de leitura de textos que é um novo hábito e uma nova condição. Na concepção do ensaísta italiano, o jornal diário já é a indústria cultural. E cor- responde, na esfera propriamente cultural, a processo histórico muito mais amplo, que tem no avanço da democracia, no igualitarismo político e civil, na conscientização das classes subalternas, suas outras dimensões. Daí Eco extrai a proposição de que aquilo que Hor- kheimer e Adorno denominaram indústria cultural é um “sistema de condicionamentos” que integra, dialética e inseparavelmente, a formação social moderna. É um dos atributos característicos dessa sociedade, de sua modernidade. Não há sociedade moderna sem in- dústria cultural. Nessa sociedade, todo agente social que queira “comunicar-se com seus semelhantes” deve “prestar contas” ao sistema da indústria cultural.88

Diante dessa realidade, impossível de reverter, Eco propõe atitude análoga à dos que, no século anterior, em vez de quebrar as máquinas – que seria a postura apocalíptica – ou de acreditar que as máquinas vinham para libertá-los – que seria a postura dos integra- dos –, trataram de lutar para se libertar em relação às máquinas. O estudo das manifesta- ções da indústria cultural deve, então, dedicar-se à “descrição analítica desses fenômenos e à sua interpretação com base no contexto histórico em que aparecem”. Umberto Eco censura nos apocalípticos “o jamais tentarem, realmente, um estudo concreto dos produtos [culturais] e das maneiras pelas quais eles são, na verdade, consumidos”.89

Tanto quanto Adorno, Morin e Eco não realizam pesquisas empíricas do tipo “ad- ministrativo” para examinar os objetos culturais ou para verificar como se dá sua apropria- ção pelos consumidores. O que neles muda mais significativamente em relação aos dois frankfurtianos é a posição intelectual de que partem, é sua filosofia.