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Concebemos, pois, que esses três tipos de atores – o artista-intelectual, o público e o esquema empresarial que se coloca entre eles – trabalham dialeticamente variando entre alinhamentos e desalinhamentos recíprocos, em devir inquieto e, não raro, rebelde. Dessa inquietude imanente e permanente já decorreria uma dinâmica de ajustamentos e desajus- tamentos capazes de aflorar nos enunciados, até porque de fato interferem nas condições de enunciação.

Uma representação aproximada dessa dinâmica está no Quadro 4, em que as setas horizontais representam as intenções dos três tipos de agentes – que em princípio consiste em tentar obter o alinhamento perfeito das três partes, maximizando seu próprio benefício. As setas verticais representam os impulsos que levam cada agente a, procurando maximi- zar o próprio benefício, afastar-se do alinhamento almejado, pois não nos parece provável que o máximo benefício de cada um conduza necessariamente ao alinhamento perfeito. O que chamamos “benefício” se compõe de parcelas variáveis de ganho simbólico e ganho material, sendo aquele também exprimível em termos de prestígio e distinção.

QUADRO 4

Dinâmica de ajustamento-desajustamento entre o campo e o espaço social

Situação Papéis no Campo

Enunciador- Formatador- Consumidor- produtor distribuidor fruidor

↑ ↑ s1 ←Artista-intelectual→ ↑ ←Ouvinte-espectador→ ↓ ←Empresa→ ↓ ↓ ↑ ↑ s2 ↑ ←Empresa→ ←Ouvinte-espectador→ ←Artista-intelectual→ ↓ ↓ ↓ ↑ ↑ ↑ ←Ouvinte-espectador→ s3 ←Artista-intelectual→ ←Empresa→ ↓ ↓ ↓

O artista-intelectual é do nosso ponto de vista um enunciador de discursos que, a- lém de atos de fala, podem se apresentar também sob a forma de músicas ou canções. Do ponto de vista da empresa – que pode ser uma produtora de discos, uma rede de televisão etc. – o artista é o produtor de um original, que ela, empresa, submete ao formato próprio à sua atividade, atividade esta que também compreende a copiagem do original formatado, isto é, convertido em mercadoria-matriz, e a distribuição das cópias, que assumem dimen- são de mercadoria estrito senso. A distribuição consiste em criar facilidades de tempo e de lugar, colocando a mercadoria ao alcance do consumidor. O consumidor adquire a cópia e habilita-se a usufruir o valor simbólico que encontra na – ou que atribui à – obra formatada e copiada.

O processo é circular, de tal forma que, embora tenhamos colocado o artista- intelectual na coluna da esquerda, isto é, como que detendo primazia no processo, este de fato é, em elevada proporção, contínuo e retro-alimentador.

Nem por ser circular o processo é baseado em simetrias. A empresa, situando-se no meio da relação, funciona em boa parte do tempo como gargalo seletor: sua condição cos- tuma ser a mais forte. Ela detém o artista, perante o público, e detém o público, perante o artista.

Mas, por outro lado, nem por ser assimétrico, o processo deixa de ser baseado na interdependência. O artista pode acumular força na condição de inovador, é potencialmente capaz de desorganizar-reorganizar os padrões de apreciação “legítima”. E a reação do pú- blico ao que lhe é oferecido não é plenamente garantida de antemão.

A condição forte da empresa depende de existir, na formação social, mais ou me- nos possibilidade de competição no desempenho de seu papel, seja a competição entre empresas do mesmo ramo, por exemplo, entre produtoras de fonogramas, seja entre ra- mos distintos, como por exemplo entre produtoras de fonogramas e emissoras de televi- são.

Tais relações de competição (ou de cooperação) exprimem, em parte, o estado em que se encontram, em cada momento, a matriz cultural e, especialmente, a dimensão musi- cal dessa matriz. De resto, cumpre averiguar até que ponto os formatadores-distribuidores podem ser referidos no singular – “a empresa” –, como homogeneizadoramente se supõe na teoria da indústria cultural, e até que ponto a análise pode mostrar diferenciações entre os que concretamente desempenham esse papel, também em regime de cooperação e com- petição.

Em dada situação, o alinhamento perfeito entre os três papéis assinalados no Qua- dro 4 contemplaria todas as variáveis em jogo: teríamos expectativas plenamente coinci- dentes quanto ao valor simbólico e material da obra artística e da mercadoria-suporte que a transporta. Representamos, nesse Quadro, três situações, isto é, três dos alinhamentos- desalinhamentos possíveis. Na primeira, as intenções do artista-intelectual e do ouvinte- espectador conduziram a um alinhamento recíproco e a empresa está desalinhada em rela- ção aos dois (ou vice-versa). Nas outras duas situações, produzem-se os outros dois ali-

nhamentos possíveis entre pares de papéis, sempre restando desalinhado um dos três tipos de agentes. Evidentemente, poder-se-ia igualmente representar situação de alinhamento perfeito entre os três, assim como outra de completo desalinhamento.

Deve-se considerar que, ao longo de um período, um artista-intelectual pode encon- trar-se, em diferentes momentos, em cada uma dessas situações.

Mas, ademais dessa dinâmica própria do campo musical, estão todos os três tam- bém sujeitos às interferências provenientes de outros campos, seja dos campos vizinhos, também culturais, seja do campo político, seja das condições macro-econômicas ou ainda de transformações do espaço social. Essas interferências respondem, em parte, pelos mo- vimentos indicados pelas setas verticais no Quadro 4. Para cada uma das estéticas aborda- das é preciso, portanto, montar ou esboçar um quadro como o anterior, articulando-o com os movimentos previstos no Quadro 1 (pág. 16).

A possibilidade de montagem desses quadros funcionará metodologicamente como guia da pesquisa. As respostas às interrogações lançadas nas interseções do Quadro 1 con- sistem, grosso modo, em verificar se e como incidem – e afloram nos discursos –, as forças internas e externas ao campo, e se e como elas “empurram” na direção deste ou daquele tipo de discurso.

O trabalho será bem sucedido se conseguir montar um painel articulado de discur- sos, relacionando-os às forças presentes: (i) a disposição expressiva do artista-intelectual, (ii) sua disposição para obter satisfação simbólica e ganho material, (iii) a disposição de ganho da empresa, (iv) a disposição do consumidor-fruidor, predominantemente dirigida para a obtenção de satisfações simbólicas, (v) as pressões proveninentes do campo macro- econômico, (vi) as pressões provenientes do campo político, (vii) a pressão exercida do campo musical sobre o campo político, (viii) o capital simbólico obtido em interações com outros campos artísticos.

A posição cada vez mais central que as manifestações culturais vêm conquistan- do nas formações sociais contemporâneas, o peso da música popular no âmbito das ma- nifestações culturais e a permanência dos artistas-intelectuais e de seus repertórios su- gerem que tal painel pode ajudar a compreender o Brasil das últimas décadas e, mesmo, o do tempo presente, em especial os dilemas de seus intelectuais. Dados estatísticos sugerem que a música é, de todas as expressões localizáveis na confluência entre arte, cultura, indústria e entretenimento, a de maior presença na vida social, em âmbito mundial.142

Mas, no caso brasileiro, além dessa presença quantitativa da música, há a caracte- rística, talvez peculiaríssima, de o campo musical desempenhar amiúde também um pa-

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A Confédération Internationale des Sociétés d’Auteurs e Compositeurs (CISAC), que reunia, em junho de 2006, 217 associações de autores de 114 países, englobando música, artes dramáticas, literatura, obras au- diovisuais, artes gráficas e artes visuais, informa que os direitos autorais musicais representam pouco me- nos de 90% do movimento mundial de arrecadação de direitos autorais, que superou 6,5 bilhões de euros

em 2004. Conforme <http://www.cisac.org/web/content.nsf/Builder?ReadForm&Page=Article&Lang=EN

pel político e de, por vezes – e notadamente pela ação dos atores vinculados àquelas três estéticas do período em estudo – as canções populares avizinharem-se da cultura erudita, como que fazendo as suas vezes, independentemente da vontade manifesta dos que as criaram.

C

APÍTULO

2O

S ATORES DA BOSSA NOVA