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Breve história e caracterização da escrita autobiográfica de Skinner

2. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS PARA UMA HISTÓRIA BIOGRÁFICA DO

2.3 Breve história e caracterização da escrita autobiográfica de Skinner

Sobre a autobiografia de Skinner, é relevante ainda mencionar seu processo de formulação e algumas de suas particularidades. Ela teve início com o término da primeira versão de seu livro About Behaviorism (1974), no início da década de 1970, quando Skinner decidiu prosseguir a empreitada autobiográfica iniciada com a elaboração do artigo A Case

History in Scientific Method, publicado em 1956, e com o convite para escrever um capítulo

da série A History of Psychology in Autobiography, editado em 1967.

A respeito da continuação da escrita de sua autobiografia, sistematizada em três livros publicados entre meados da década de 1970 e 1980, Skinner (1984b) afirma que o trabalho foi mais do que mera narração de memórias aleatórias de sua vida. A produção de sua autobiografia se assemelhou a uma investigação científica. Por isso, alega que “uma pesquisa era necessária” (1984b, p. 363). A extensa coleta de informações em seu arquivo pessoal, em meios de comunicação de massa e de divulgação científica, o acesso ao arquivo de diversas pessoas e instituições e o contato por intermédio de conversas pessoais e

correspondências – seja para tirar dúvidas de eventos dos quais não se lembrava, seja para saber o que outras pessoas comentaram a respeito dele e de condições relacionadas a sua vida – exigiram de Skinner labor análogo ao de um biógrafo. Com a diferença já mencionada de que, para ele, sua autobiografia era exemplo de interpretação comportamental de uma vida realizada mediante sua explicação do comportamento, a qual Skinner (1984b) assumiu ser limitada como qualquer outra interpretação comportamental. Como revelou:

Isso não significa que eu possa explicar tudo que eu faço ou fiz. Eu sei mais sobre mim mesmo do que sobre qualquer outra pessoa, mas isso ainda não é suficiente. No entanto, eu tenho tentado interpretar a minha vida à luz do que tenho aprendido através da minha pesquisa. Eu tenho feito tão mais à medida que a análise experimental avança e alguns dos meus esforços são partes dessa história. Alguma coisa mais pode ser dita agora. Uma autobiografia é um caso histórico e, como behaviorista, eu espero falar algo sobre isso. (Skinner, 1984b, pp. 400-401).

Em outro momento de reflexão acerca de sua escrita autobiográfica, além de descrever mais uma vez a vinculação entre sua visão científica do comportamento e a descrição de sua vida, Skinner justifica a razão de haver mencionado tantas informações pessoais em sua autobiografia.

É comumente dito que os behavioristas não veem a eles mesmos como eles veem os seus sujeitos – por exemplo, que eles consideram o que eles dizem como verdade de alguma forma que não se aplica as pessoas que eles estudam. Ao contrário, eu acredito que o meu comportamento ao escrever Comportamento Verbal, por exemplo, foi precisamente o tipo de comportamento que o livro discute. Seja por narcisismo ou por curiosidade científica, eu tenho estado muito mais interessado em mim mesmo do que em ratos e pombos. Eu tenho aplicado às mesmas formulações, tenho procurado as mesmas espécies de relações causais e tenho manipulado o comportamento da mesma forma e às vezes com sucesso comparável. Eu não publicaria fatos pessoais desse tipo se eu não acreditasse que eles trazem alguma luz para minha vida como cientista. (Skinner, 1970, p. 16).

Capshew (1999) salienta que pouca atenção foi dada à valiosa afinidade entre a teoria do comportamento skinneriana e a descrição autobiográfica do autor, o que constitui enorme desperdício, visto que a autobiografia de Skinner, talvez, represente um dos maiores exemplos do esforço autobiográfico da história da psicologia. Tudo isso, no entanto, não significa que o empenho autobiográfico de Skinner tenha sido fenômeno isolado no contexto da tradição psicológica estadunidense. Estava, sim, conexo a uma tendência emergente nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, quando expoentes da psicologia daquele país principiaram inúmeras autorreflexões a respeito do desenvolvimento de suas áreas de pesquisa por meio de suas histórias de vida.

O fenômeno foi resultado do aumento da consciência dos psicólogos estadunidenses de que a expansão tão almejada e planejada da psicologia nos Estados Unidos havia tomado rumos inesperados e alcançado, naquele momento, seu maior reconhecimento e uso público (Jackson, 1988). A constatação produziu uma série de tentativas de análise da conjuntura da psicologia estadunidense e indicou, mais do que nunca, os efeitos da divisão entre o conteúdo e o contexto do trabalho científico, além de revelar a ambiguidade dos compromissos dos psicólogos como cultivadores da autoimagem de cientistas profissionais e profissionais científicos. Em outros termos, internamente, a comunidade científica da psicologia se qualificou baseada em valores da pesquisa científica e, externamente, esses valores revelaram a visão de excelentes provedores de serviços (Capshew, 1999).

Diante desse cenário, a vinculação entre a vida privada do universo científico e o domínio público do exercício profissional da psicologia se transformou em questão essencial, pois era urgente que os psicólogos conseguissem harmonizar o conflito entre valores, o apropriado comportamento científico e o devido comportamento profissional. A

questão era conciliar, portanto, aquilo que muitos psicólogos viam como improvável: relevância social e rigor científico. Aspecto responsável por induzir a psicologia nos Estados Unidos a assumir forma dissociável na visão de muitos dos seus praticantes (Jackson, 1988; Capshew, 1999).

Como sintoma desse cenário, de conflito de identidade da psicologia, meta-análises surgiram com o intuito de verificar a percepção interna dos psicólogos estadunidenses sobre os rumos da área. Exemplar dessa conjuntura é o estudo de Kenneth E. Clark, America’s

Psychologists: a Survey of a Growing Profession (1957), encomendado pela APA como

parte de projeto mais amplo de investigação dos fatores que afetavam a pesquisa e a prática psicológica nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.19 A partir de então,

esforços reflexivos propagaram-se de modo que o autoexame da psicologia extrapolou as análises amparadas por métodos quantitativos aceitos pela comunidade científica e encontrou terreno fértil no recurso às experiências subjetivas de expoentes da psicologia estadunidense; os quais, por sua vez, passaram a avaliar os nortes de suas áreas de pesquisa e da psicologia como um todo, por meio de relatos autobiográficos. Para Capshew (1999), “tais formas de autoexemplificação se transformaram em tentativas mais analiticamente sofisticadas de desenvolver a psicologia dos psicólogos e a psicologia da pesquisa psicológica” (p. 240).

Nesse sentido, embora o relato autobiográfico de Skinner apresente peculiaridades, emerge como integrante de um cenário mais amplo, em que o exercício autorreflexivo se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

19 Na introdução do trabalho de Clark (1957), o valor dado naquele momento ao exercício de autoexame da

psicologia como uma questão para todo o campo é expresso nos seguintes termos: “Se feito sem vaidade, é válido que, de tempos em tempos, haja um olhar crítico e de pesquisa procurando o seu íntimo. Tal autoexame é tão válido para as organizações e profissões como para indivíduos, porque ele ajuda a identificar os problemas maiores, a ver como são os membros, a avaliar o estágio de desenvolvimento do campo representado, a rever procedimentos educacionais e, em geral, tenta estabelecer onde o grupo está indo e qual progresso está fazendo, tentando chegar lá. Quando a Associação Americana de Psicologia passou por uma reorganização maior no final da Segunda Guerra Mundial, os membros estabeleceram um Quadro de Política e Planejamento e completavam aquele quadro periodicamente para revisar os problemas maiores e as tendências que afetaram a psicologia e os psicólogos”. (p. 7).

difundia e se tornava parte das estratégias de disputas por domínio no campo psicológico. Tal movimento, aderido por todas as perspectivas psicológicas nos Estados Unidos, foi responsável pela propagação e pelo uso instrumental de um novo nível discursivo na ciência psicológica daquele país. Ademais, retratou, mesmo que de modo inconsciente e contraditório, a crescente desconfiança e o abandono parcial do critério de observação pública como meio mais seguro para a produção de conhecimento. Eis, portanto, que, oposto à visão hegemônica de uma epistemologia positivista na psicologia norte-americana, o relato autobiográfico, como componente da empreitada científica, sugere uma adesão, mesmo que ambígua, a uma epistemologia na qual a subjetividade do cientista se tornou fonte privilegiada de conhecimento.

No caso de Skinner, a questão ganha dimensão ainda mais intrigante. Considerando que ele se tornou um dos principais nomes, senão o principal, do programa behaviorista do início da segunda metade do século XX, é no mínimo curioso que tenha proposto uma narrativa acerca de sua vida, em que a interpretação e a privacidade ocuparam lugares centrais. Por essa razão, a autobiografia de Skinner surpreende aqueles que desconhecem sua proposta de interpretação dos chamados eventos privados (Skinner, 1945), quando evidencia sua divergência em relação às demais tendências behavioristas que julgavam a privacidade como fenômeno secundário na explicação do comportamento (Skinner, 1945).

Por causa dessas particularidades, ao enfatizar a relevância da descrição autobiográfica de Skinner, Capshew (1999) argumenta: “foi surpreendente quando Skinner começou a discutir sua própria história de vida como uma fonte de interpretação comportamental. O diálogo interior privado que ele tinha guardado por anos, documentado de forma volumosa e significativa é exemplar de sua abordagem comportamental” (p. 237).

quais incidiram na estrutura de nossa narrativa: a não linearidade e a aparente falta de unidade narrativa. Em outras palavras, mesmo que Skinner mantenha nos três volumes de sua autobiografia uma descrição temporal que transcorre da segunda metade do século XIX, quando seus antepassados chegaram aos Estados Unidos, até sua situação acadêmica e profissional na década de 1970, isso não denota que Skinner tenha descrito sua vida de modo rigidamente linear, unitário e progressivo. Um padrão muito diferente desse é observado em seu relato autobiográfico e é verificado quando, por exemplo, no terceiro volume de sua autobiografia, narra um evento referente à década de 1960 e o relaciona a um episódio de sua vida na década de 1930, que não havia sido citado em nenhuma outra parte. Igualmente, embora haja uma lógica evolutiva quando Skinner se atém a descrever o desenvolvimento de seu programa de pesquisa, esse tipo de relato não é acompanhado de um otimismo cego; ele narra também seus percalços, suas desilusões, seus sentimentos de retrocesso, isolamento, solidão, desconfiança e pessimismo acerca do futuro.

Outro indício de que Skinner não visou dar ao relato autobiográfico uma lógica tradicional, unitária, é notado na organização e apresentação do conteúdo dos três livros que compõe sua autobiografia. O primeiro aspecto que chama a atenção é a ausência de qualquer divisão em capítulos ou tópicos.20 Desse modo, por exemplo, descrições relativas à sua vida familiar são seguidas de relatos sobre a elaboração de um conceito científico, assim como esse tipo de observação, em diversos momentos, é sucedido por algum aspecto de sua vida institucional e, ainda, não raro, é acompanhado de detalhes sobre sua vida política ou sua relação com amigos e familiares.

Sobre a aparente falta de unidade e nexo, tão fácil de ser notada no relato de vida de Skinner, vale registrar o comentário de Coleman (1987) a respeito do estilo da escrita !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

20

Apenas no primeiro volume, Particulars of My Life, Skinner divide a narrativa autobiográfica em sessões, mas essas não possuem títulos e servem tão somente para demarcar o avanço cronológico da narrativa.

autobiográfica desse cientista. Sobre isso ele diz:

Unidade e coerência não são imediatamente aparentes quando uma pessoa examina o desenvolvimento pessoal de B. F. Skinner, como foi reportado em suas autobiografias (Skinner, 1976, 1979, 1983), e compara esse desenvolvimento com as vidas dos indivíduos que dizem terem sido dominados por um pequeno número de problemas relacionados e persistentes como, por exemplo, Carl Jung (Jung, 1961). Uma pessoa pode até mesmo ser persuadida de que a procura por coerência é uma busca ilusória depois de ler os pronunciamentos de Skinner sobre a identidade pessoal (ex. Skinner, 1953, pp.284-288; 1974, pp. 164-167, 247), especialmente se alguém suspeita que esses pronunciamentos sejam parcialmente autobiográficos (cf. Skinner, 1976, p. 255). É lógico que a dificuldade em encontrar um ou mais temas que unificam os escritos autobiográficos de Skinner poderia ser meramente uma consequência de sua preferência, ao longo da vida, por um estilo de escrever descritivo e circunstancial (Coleman, 1985), combinado com uma relutância persistente em hipostasiar forças unificadoras. A literatura descritiva de Skinner deixa o leitor com um leque de particulares, no qual a diversidade é a impressão dominante. Enquanto este estado de coisas poderia concebivelmente resultar de mera teimosia como um autobiógrafo, "os fatos" da vida de Skinner normalmente suportam a impressão de diversidade. (p. 48).

Mesmo sem efetuar estudo da composição da narrativa autobiográfica de Skinner – o que exigiria outra pesquisa –, compreendemos que sua estrutura não linear e sua diversidade de temas são congruentes e têm paralelos com a sua concepção sobre a determinação do comportamento. Como expõe Chiesa (1994), uma análise da determinação histórica do comportamento em uma perspectiva skinneriana não exige descrições lineares e contíguas, e as descrições causais aludem a atributos não abarcados normalmente nas investigações circunstanciais. Padrões comportamentais podem ser formados no decorrer de extensos períodos de tempo, por padrões de consequências (esquemas de reforço). Assim, para compreender o comportamento no behaviorismo skinneriano:

Uma relação ponto a ponto entre unidades discretas de comportamentos e consequências discretas não é essencial para uma descrição dessa interação

referência aos eventos ocorrendo ao longo do tempo no ambiente do organismo. (Chiesa, 1994, p. 120).

Por isso, uma vez que Skinner não descreve sua vida como um evento linear composto de relações entre unidades ponto a ponto, dela foi possível abstrair padrões integrais de comportamentos ocorrendo ao longo de sua carreira. Em outros termos, uma análise da autobiografia de Skinner proveu a identificação de padrões integrais de comportamento desse cientista ocorrendo ao longo do tempo em que ingressa na psicologia até sua decisão em aposentar na década de 1970. Aspecto detalhado adiante.

Essa discussão acerca da relação entre a descrição autobiográfica de Skinner, seu contexto de produção e sua teoria do comportamento justifica-se em função de seus efeitos na organização estrutural da presente tese, que reproduz, a despeito de seguir uma cronologia definida, a lógica adotada por Skinner e outros biógrafos, que não restringem suas descrições a uma cronologia rigorosamente linear e progressiva, delimitada pela exposição episódica ponto a ponto dos eventos históricos ocorridos ao longo do tempo. De modo similar à investigação da determinação do comportamento na interpretação de Skinner, ordenarmos os temas históricos de nosso interesse, indicando suas repetições, variações e articulações entre si ao longo do tempo.

Sobre a recorrência de temas históricos no relato autobiográfico de Skinner, Coleman (1985) já havia sugerido a possibilidade de identificar padrões históricos a partir de uma leitura sistematizada da autobiografia de Skinner; do mesmo modo, Cerullo (1996) elabora tipologias sociológicas por meio da análise da autobiografia de Skinner; e Demorest e Siegel (1996) sugerem como a narrativa de vida de Skinner expõe padrões históricos de repetição relacionados às diferentes fases de sua vida.

auto-análise comportamental de uma vida, ela não foi interpretada como neutra e isenta dos diversos controles a que toda linguagem autobiográfica está submetida. Aliás, não apenas a autobiografia de Skinner, mas as demais fontes biográficas e autobiográficas foram examinadas, tendo em vista a possibilidade de interpretação dos significados implícitos revelados, por exemplo, pela ênfase de determinadas informações históricas, pela rara atenção dada a outras, pela ambivalência dos relatos e até mesmo pela ausência de informações. Como enfatiza Massimi (2011), ao discutir o uso de fontes autobiográficas na ciência – o que transpomos aqui também para a análise de fontes biográficas –, o recurso a esse gênero de documento histórico exige atenção aos sentidos das definições da experiência tácita na elaboração de tais fontes.

2.4 Definição e caracterização das fontes !

As fontes utilizadas para a investigação foram classificadas em duas categorias: 1) fontes primárias e 2) fontes secundárias.

As fontes primárias foram constituídas de relatos autobiográficos. Dentre elas, destacam-se os três volumes da autobiografia de Skinner (1979, 1984a, 1984b) e seus primeiros esboços autobiográficos, no artigo A Case History in Scientific Method, publicado em 1956; no capítulo B. F. Skinner... An Autobiography, de 1967; na série A History of

Psychology in Autobiography, bem como em outras passagens autobiográficas em sua obra

e identificadas em fontes secundárias. Também integraram as fontes primárias a autobiografia e os relatos autobiográficos do principal apoiador e divulgador do projeto científico skinneriano, Fred S. Keller, e, ainda, narrativas autobiográficas da primeira e da segunda geração de analistas do comportamento, localizadas, em periódicos como Journal

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