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O gênero biográfico como eixo central na reconstrução histórica de uma ciência

2. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS PARA UMA HISTÓRIA BIOGRÁFICA DO

2.1 O gênero biográfico como eixo central na reconstrução histórica de uma ciência

gênero de segunda categoria.17 Biografia e história, mais do que não se comunicarem, apresentavam antagonismos profundos. A biografia era compreendida como saber subjetivista e desprovido de erudição, enquanto a história era apreciada como ciência objetiva e culta (Dosse, 2009). Desse modo, por muito tempo, o gênero biográfico permaneceu menosprezado como produto e fonte de saber histórico nas ciências humanas. Algumas características dessa literatura, como o grande sucesso popular que sempre experimentou, apenas confirmavam, para muitos de seus críticos, seu restrito valor acadêmico (Dosse, 2009; Loriga, 2011).

Todavia, partir da década de 1980, ocorreu expressiva mudança nesse cenário. As ciências humanas redescobriram a biografia como “um gênero que a razão gostaria de ignorar” (Dosse, 2009, p. 16). Desde então, é crescente o interesse pela biografia como campo de estudo e fonte de pesquisa respeitável. A enorme ampliação editorial e a organização da comunidade científica em torno desse gênero comprovam a inserção da biografia como parte da história e de outras disciplinas que, até então, a haviam rejeitado (Denzin, 1989).

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17 As considerações tecidas acerca do gênero biográfico são estendidas ao gênero autobiográfico. Isso se deve à

semelhança entre os diferentes conceitos de biografia, autobiografia, narrativa de vida, história oral e história pessoal, os quais, a despeito de terem suas especificidades, estão subordinados metodologicamente às mesmas normas definidoras da forma como as vidas têm sido escritas durante a longa história do Ocidente. Para Denzin (1989), os elementos equivalentes entre os diferentes modos de escrita de uma vida são: 1) textos biográficos são escritos em referência a “outros” textos biográficos e autobiográficos; 2) tais escritos conferem relevância às influências de gênero e de classe; 3) as origens familiares são o ponto de partida da história biográfica e autobiográfica; 4) as biografias apresentam definições de momentos-chave da vida do biografado; 5) contêm a concepção de que as pessoas são reais e possuem vidas reais; 6) existem demonstrações verdadeiras que distinguem o relato biográfico e autobiográfico da ficção. Ademais, tratar a autobiografia e a biografia como gêneros semelhantes é permitido porque ambas são escritas com o pressuposto de que a história de vida, mesmo a do próprio autor, é passível de ordenação e significação (Denzin, 1989).

O que tornou o gênero biográfico atraente na pesquisa historiográfica atual é uma característica que antes o desqualificava: sua dificuldade de classificação. Esse predicado, pejorativo na história positivista e estruturalista no século XX, passou a ser a prerrogativa da biografia por torná-la favorável a inúmeras interpretações e fonte aberta a diálogos inimagináveis entre a história e as ciências humanas (Dosse, 2009). Nesse sentido, a própria escrita biográfica principiou ser investigada como fenômeno histórico, psicológico, sociológico, antropológico e filosófico. Como, por que, por quem e para quem ela é escrita, as prováveis classificações de uma biografia, seu caráter mimético, seu impacto na consciência histórica, seu papel na cultura e identidade pós-moderna, entre outros fatores, tornaram-na objeto de estudo de diferentes campos do conhecimento (Denzin, 1989).

Tais particularidades do gênero biográfico, contudo, alerta Dosse (2009), não o levam a ser fonte de respostas finais ou significam infalível modo de representar a história. Pois aquele que pretende escrever uma história pautada nesse gênero “sabe que jamais concluirá sua obra, não importa o número de fontes que consiga examinar” (Dosse, 2009, p. 14).

Na história da ciência nas últimas décadas, a biografia também foi avaliada de forma distinta, com a diferença de que ela sempre fez parte da história da ciência como forma de introduzir conteúdos científicos, por meio da exposição prévia de hagiografias de eminentes cientistas. Ou seja, uma das funções que a desqualificou durante muito tempo, na história e nas ciências humanas, foi desempenhada na história da ciência desde sempre (Popkin, 2005).

Porém, do mesmo modo que a biografia ganhou novo status e papel na história a partir da década de 1980, ela sofreu alterações em seus usos na história da ciência. Historiadores da ciência defendem, cada vez mais, a utilidade desse tipo de fonte (Porter,

2006; Terrall, 2006), uma vez que ela revela fatores da vida do biografado ausentes na literatura formal da ciência. Informações de ordem biográfica favorecem o entendimento acerca de como os cientistas vivem ambições acadêmicas, e isso é identificado em processos como a sociabilidade, a informalidade, o status social e o apoio financeiro e acadêmico que eles experimentam ou não durante suas carreiras. Igualmente, o recurso ao gênero biográfico na história ciência indica como se dá a construção de lideranças científicas, a aceitação social da ciência e as disputas internas na comunidade científica, as quais raramente estão em outras fontes. Assim, o gênero biográfico provê à inserção dos leitores em embates existentes em toda a ciência, mas muitas vezes apagados em prol de uma linguagem formal impeditiva da exposição do papel desses fatores (Jo nye, 2006; Popkin, 2005).

Na historiografia da psicologia, o recurso à narrativa biográfica e autobiográfica seguiu caminho similar àquele da história da ciência. Primeiramente, compactuou-se com o que desqualificava esses tipos de narrativa nas ciências humanas: a comemoração e celebração de determinados personagens históricos (Ball, 2012; Runyan, 2006). Todavia, tal panorama também apresenta mudanças nas últimas cinco décadas.

Exemplo das alterações no padrão da escrita biográfica e autobiográfica da história da psicologia encontra-se na série A History of Psychology in Autobiography. Criada na década de 1930 com o propósito de salientar as realizações individuais de sujeitos tidos como luminares da psicologia estadunidense, essa publicação, após interrupção de quase vinte anos, foi retomada na década de 1950. Desde então, diferente de seus primeiros números na década de 1930, os relatos autobiográficos nessa publicação apresenta crescente inclusão de informações alusivas aos contextos sociais, como condições responsáveis pelo direcionamento da produção científica e da carreira de importantes nomes da psicologia (Runyan, 2006).

As inúmeras críticas sociais à ciência e sua historiografia, entre as décadas de 1960 e 1970, também ressoaram na produção biográfica da psicologia, uma vez que explicitaram os prejuízos de uma história excessivamente comemorativa nesse tipo literatura. Com isso, o gênero biográfico, como principal meio de transmissão de uma história cerimonial da ciência, foi alvo de incontáveis ataques. A absorção de apreciações indicativas das consequências nefastas de biografias heroicas na manutenção de ideologias e controles sociais resultou em abandono parcial do recurso ao gênero biográfico em análises historiográficas da psicologia. A ocultação do papel de sujeitos e grupos excluídos historicamente – inclusive envolvidos na produção do conhecimento psicológico, como foi o caso da supressão do papel de psicólogas na história dessa ciência – representa algumas das funções ideológicas do uso tradicional de biografias na psicologia (Vaughn-Blount, Rutherford, Baker & Johnson, 2009). Com isso, a investigação de personagens ditas como exemplares se tornou algo a ser evitado, sendo vista com desconfiança pelos partidários de uma visão crítica da história da psicologia.

O cerceamento ideológico da produção biográfica foi justificável em um primeiro momento, mas sua manutenção impediu a aplicação da crítica que lhe era direcionada. Com efeito, a depreciação da produção biográfica na psicologia impossibilitou a análise dos chamados grandes nomes dessa ciência, como parte de uma rede de relações sociais macro e microestruturais apagadas nas tradicionais versões biográficas e autobiográficas da psicologia (Ball, 2012). Empreendimento retomado, nesta tese, ao investigarmos a vida de um expoente na psicologia no século XX, a saber, B.F. Skinner, por meio da análise de condições sociais (microssociais) específicas relacionadas ao desenvolvimento da carreira e ciência proposta por esse psicólogo.

da principal fonte analisada nesta pesquisa: a autobiografia de Skinner. Além disso, destacamos as peculiaridades dessa fonte – as quais justificam sua escolha como base orientadora da investigação – e efetuamos descrição de seus usos, de modo a expormos como utilizamos as demais fontes biográficas e autobiográficas.

2.2 A autobiografia de Skinner como fonte orientadora de uma história social da análise

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