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Breve histórico da norma e do purismo linguístico

1.3 Norma

1.3.1 Breve histórico da norma e do purismo linguístico

O caráter normativo de uma tradição gramatical está presente na história da linguística, principalmente, a partir da segunda metade do século XVII, segundo Padley (2001). Casevitz e Charpin (2001) enfatizam que existia uma diversidade de dialetos até a formação do “coinés”, que corresponderia a línguas comuns (CASEVITZ; CHARPIN, 2001, p. 23). No entanto, os gregos só experienciaram o sentimento de “unidade linguística” após os primeiros textos literários, como apresentam os autores:

A unidade linguística de alguns grupos dialetais, e, para além, do grego, se apoia num sentimento de comunidade: não somente, é claro, a comunidade religiosa ancorada nos grandes santuários, mas também a comunidade do patrimônio literário conservado pelo ensino [...] a língua logo cedo se misturou à vida da cidade, que viu nela matéria a ser legislada (CASEVITZ; CHARPIN, 2001, p. 28-29).

A ideia de unidade na língua nasce, assim, do ensino das letras e dos textos literários na Grécia. Tanto é que os filósofos começam a perceber os “traços regulares numa língua” para depois pensar o enunciado “[...] das regras, das normas” (CASEVITZ; CHARPIN, 2001, p. 30) É neste contexto que surgem indícios da gramática normativa. Ainda fazendo referência a esses autores, fica evidente que os gramáticos “preocupados antes de tudo com a eloquência, vão fundar uma gramática normativa antes de tudo, utilitária”. É com Platão e, posteriormente, Aristóteles, que se complementa a preocupação com as formas, surgindo “de um lado, o purismo dos filólogos e, do outro, o estudo das categorias gramaticais” (Idem).

Sobre a gramática normativa, Padley (2001) reforça que foi, a partir da metade do século XVII, que se deu o início do trabalho com a prescrição de uma noção de norma com um duplo aspecto: uso falado ou escrito recomendado e o modelo que impera determinando “os elementos da língua que se escolherá pôr em relevo ou inventar” (PADLEY, 2001, p. 55). Nesse ensaio, o autor trata a tradição normativa desde os primeiros gramáticos, compreendendo os anos de 1500 a 1700, partindo dos gramáticos franceses e ingleses que seguiam o modelo prescritivo, fornecido por Donato e Prisciano, da tradição latina. Esses estudiosos se baseavam “no uso dos melhores autores”, mas foram os italianos Perotti e Sulpizio, que, segundo Padley (2001, p. 57), mesmo baseados em Donato e Prisciano,

forneceram “a camisa-de-força que a gramática das línguas vivas será obrigada a vestir durante longo tempo”.

Padley (2001, p. 57) apresenta a forte preocupação dos gramáticos sempre com a unificação da língua e com a arte de falar e de escrever corretamente, “[...] uma arte que se aprende nas páginas dos poetas e dos prosadores”. Por isso, Nebrija é destacado como o primeiro autor de uma gramática humanista de língua “vulgar”, a gramática castelhana de 1492. O desejo desse autor era a uniformidade da língua castelhana, a fim de que a língua escrita pudesse “permanecer num mesmo estado e perdurar durante todo o tempo por vir” (NEBRIJA, 1492, apud PADLEY, 2001, p. 57). Um dos papéis da gramática, para Nebrija, inclusive, era o de preservar “o uso de ser corrompido pela ignorância”, decorrendo daí o fato de se olhar para a língua em “uso dos sábios”.

Padley (2001) ainda mostra que a simples prescrição da língua não define o que é norma ao longo da história seja grega, seja latina, mas que norma está para o modelo estabelecido e ditado pelas imposições escolhidas pelos gramáticos. O autor descreve tentativas de normas baseadas no uso da língua, iniciadas por gramáticos como Meigret (1550 apud PADLEY, 2001, p. 59-60) que se esforça por basear a gramática no uso que se figura como “árbitro”, ou seja, não cabe ao gramático impor regras, antes, deve extraí-las de uma observação que as prescreve tal como numa lei. Diante disso, Meigret preconiza regras a partir do uso e modo de falar “dos homens bem instruídos em língua francesa” (PADLEY, 2001, p. 60), mas, na verdade, a norma baseada no uso é contestada desde seu início e Padley (2001) deixa evidente que, no decorrer da história, a norma representava um conjunto de regras que deveriam ser obedecidas para alcançar o falar e o escrever bem.

No Brasil, a discussão de norma linguística a partir do purismo não é diferente. Mendonça (2006) discute os tipos de purismos que encontrou na mídia durante a sua pesquisa: o neoliberal e o nacionalista. O purismo nacionalista está indicado em discursos de escritores do século XIX e, comparando-os com os discursos de escritores no final do século XX e início do XXI, percebe que o lugar de “dizer a língua” do escritor brasileiro se funda na relação com o purismo nacionalista e com o saber gramatical tradicional.

Mendonça (2006) aborda estudos em que o purismo brasileiro, a partir da segunda metade do século XIX, volta-se ao purismo discursivo metalinguístico e um purismo discursivo stricto sensu, que se realizaria por meio de escolhas lexicais e sintáticas do falante, ou seja, o “purismo como um fenômeno de preservação da norma que nem sempre está ligado à correção” (MENDONÇA, 2006, p. 41). No entanto, a relação entre purismo e correção é evidenciada pela autora no decorrer da pesquisa.

Assim, a autora sente a necessidade de significar norma, já que cada um dos diferentes purismos encontrados nos dados defende a preservação de um tipo específico de norma. A autora apresenta três tipos de purismos produzidos no Brasil: 1) o purismo histórico ortodoxo – preservação da norma prescritiva portuguesa; 2) o nacionalista – a norma a ser preservada era a objetiva, praticada no Brasil; 3) histórico heterodoxo – um embate entre norma prescritiva e objetiva.

É a partir de um purismo heterodoxo que ocorre o embate entre as normas “prescritivas” e “objetivas” chegando às duas grandes tendências destacadas por Mendonça (2006) e já citadas, como purismo neoliberal e purismo nacionalista. O purismo nacionalista, conforme a autora, é constituído como uma reapropriação do purismo ortodoxo que preserva a norma prescritiva. Entretanto, ao lutar para preservar os valores da nação, há uma centralização em questões relativas à língua nacional e à exclusão de estrangeirismos.

Mendonça (2006, p. 46) observa que os “românticos” lutavam contra Portugal, na produção de sua identidade como nação, na tentativa de preservar uma norma nacional, um português do Brasil, de uma língua mais pura utilizando como parâmetro a língua praticada no país. No entanto, para a autora, o purismo não será apenas esse fenômeno comum à linguagem, mas uma atitude linguística histórico-sócio-politicamente condicionada, e por isso, não é um efeito funcional da linguagem. Por esse motivo, a autora afirma que o purismo é um produto dos micro e macro poderes exercidos na sociedade, em que os usuários da língua veem o “direito de cuidar dela” para que se possa “falar bem” de acordo com a cidade letrada sendo valorizado no social (MENDONÇA, 2006, p. 46).

Diferentemente do purismo nacionalista que tem vistas para Portugal para o falar europeu, Mendonça (2006) afirma que o purismo neoliberalista segue a ideia do movimento “neoliberal”, cuja base fundadora justifica a expansão da burguesia e a focalização dos gastos em programas públicos específicos. Diante do histórico político-social, a autora considera que o purismo neoliberal tem a necessidade de limpar os “erros” da fala e da escrita da classe média, que quer ter sucesso econômico ou acesso ao mercado. “Trata-se de uma atitude linguística sócio-politicamente condicionada, em que, frente ao desemprego estrutural, à terceirização, à insegurança, supervaloriza-se o sucesso pessoal/individual, em detrimento da ‘coletivização’” (MENDONÇA, 2006, p. 64, grifo da autora).

Mesmo, de um lado, tendo o purismo nacionalista e, de outro, o purismo neoliberal, com bandeiras diferentes, sendo um na tentativa de tirar os estrangeirismos da língua para procurar uma identidade linguística nacional (com certa defesa da variação linguística regional) e outro com o “falar correto”, sem muitos erros, fazendo da língua mais um

instrumento de escala social, parece que o purismo neoliberal perpetuou no país até o momento, sendo divulgado pela mídia.

Mendonça (2006) mostra que não são os documentos oficiais que regulamentam o ensino de língua ou os linguistas, menos ainda os professores, quem têm autoridade em “dizer a língua”, ou seja, para os puristas não há justificativas para “os erros”, “desvios”, “diversidade linguística”, principalmente na mídia. Assim, na pesquisa de Mendonça (2006), quem define a “norma” do certo e do errado no PB, parecem ser os jornalistas como se fossem eles quem determinassem o que é certo de dizer na nossa língua.

O purismo linguístico perpetua na nossa sociedade, como observamos nas discussões de Padley (2001) e Mendonça (2006), no entanto, ainda não se pode aceitar que “purismo” e “norma” sejam sinônimos. Mesmo a mídia sendo influenciadora do “certo” e “errado” no PB, para nós, são os linguistas que cumprem com a tarefa de discutir, teorizar, conceituar o que é norma, consequentemente, revelando os vários tipos de norma e as distinções conceitual- sócio-políticas entre elas.