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2. O acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva

2.4. A Justiça como monopólio estadual?

2.4.1. Breve referência ao monopólio estadual da Justiça na história

De facto, tradicionalmente, a função jurisdicional era encarada como um poder correlativo do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito. Diz-nos MANUEL PEREIRA BARROCAS que “Filosoficamente, nos Estados modernos ocidentais, compete ao Estado através de órgãos de soberania constitucionalmente definidos, o poder de administrar a justiça em nome do povo”101. Nesse sentido, a atribuição de

97Acórdão de 29 de Maio de 1991 do STJ., em: www.dgsi.pt. 98PINA, Pedro, “Arbitragem…”, pág. 139.

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No mesmo sentido veja-se o Acórdão do STJ, de 20 de Janeiro de 2011, “É importante ter presente que os tribunais arbitrais, embora não sejam órgãos de soberania comos os tribunais estaduais, não deixam de ser entidades jurisdicionais a quem cabe definir o direito nas situações concretas que lhes são submetidas.”, em www.arbitragem.pt/jurisprudência.

100Também o TC já se havia pronunciado nesse sentido, vejam-se os Acd. n.º757/95 e o Acd. n.º259/97, refere-se que a atividade de arbitragem insere-se no âmbito da função jurisdicional, sendo que é exercida rodeada das garantias de independência e imparcialidade de quem desempenha tal função, em www.tribunalconstitucional.pt.

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poderes jurisdicionais a pessoas privadas consistiria num um desvio anómalo ao conceito.

Referem-se os movimentos revolucionários do séc. XVIII, nomeadamente a Revolução Francesa de 1789, como ponto de partida para a propagação dos meios alternativos de resolução de litígios, concedendo legitimidade à arbitragem como modo de por termo a litígios, rompendo conceitos tradicionais, como a monopolização da Justiça pelo Estado absoluto.

No entanto, não é verdade que a arbitragem tenha surgido no século XVIII com a Revolução Francesa, houve de facto uma mudança de conceitos e da forma como se via o poder do Estado, mas a existência da arbitragem insere-se num momento anterior, havendo referências à arbitragem desde a Grécia antiga102. Há referências do Império Romano em que a arbitragem terá tido consagração, facultando às partes em litigio a possibilidade de, sem intervenção do magistrado, dirimirem os seus conflitos recorrendo a um árbitro que escolhiam e no qual confiavam, obrigando-se a cumprir a sua decisão103. Para o efeito, as partes celebravam um comprimissum, acordo no qual confiavam a decisão da questão controvertida ao árbitro escolhido, este realizava um pacto, denominado receptum arbitri, no qual se obrigava a dirimir aquela controvérsia, proferindo o correspondente laudo104, sob pena de incorrerem em responsabilidade por danos causados às partes se não cumprisse a função que livremente tinha assumido. A sentença arbitral, porque não dispunha de força executiva, as partes estipulavam obrigações mútuas.

Segundo SANTOS JUSTOS, consagrada em Roma, a arbitragem foi, no direito romano, uma figura particularmente importante a que as partes em litígio recorriam, como alternativa ao processo ordinário e cujo formalismo evitavam105.

102Manuel Pereira Barrocas refere mesmo que a arbitragem tem uma longa história através dos séculos, referindo-se apenas à cultura ocidental, afirma haver várias referências à arbitragem na Grécia antiga, na “Ilíada” de Homero e também Heródoto, no século V a.C., demonstra familiaridade com um bem estabelecido sistema de arbitragem privada separada do sistema público e resolução de contendas. Refere-se, mais tarde, aos filósofos Platão e Aristóteles, Demóstenes e ainda o historiador Plutarco, tendo-se referido à arbitragem como uma instituição bem conhecida. BARROCAS, Manuel Pereira, in “Manual…”, pág. 51. 103

SANTOS JUSTOS, A., “A Arbitragem no Direito Romano- breve referência ao direito português”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas”, vol. II, Coimbra Almedina, 2011, pág. 675 e ss. Referindo-se o Autor, nesta breve referência ao Direito Romano, à época de Justiniano.

104 Ibidem, pág. 675.

105No mesmo sentido, Manuel Pereira Barrocas refere que, a arbitragem constituía uma forma comum de resolução de litígios em Constantinopla, no século IX, e mesmo a legislação arbitral compreendia leis arbitrais aplicáveis apenas aos Judeus. BARROCAS, Manuel Pereira, in “Manual…”, pág. 52.

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Refere-se frequentemente que a arbitragem não convive bem com conceitos centralistas e autocráticas de Governo, aumentando a sua importância quanto menos for o controlo do Estado sobre os indivíduos. Em Portugal, no século XII não há vestígios claros da arbitragem propriamente dita, esta viria a ser mais explícita nas Ordenações Afonsinas e Manuelinas, de 1446 e 1520106, respetivamente. Posteriormente, com as ideias acolhidas da Revolução Francesa, o liberalismo acolhido em 1820 veio também em Portugal mudar os conceitos de Estado e consequentemente de Justiça, a primeira alteração de vulto foi a consagração da arbitragem na Constituição de 1822 e posteriormente na Constituição de 1838, ganhando expressão e acolhimento em todos os textos constitucionais durante o século XIX.

Posteriormente, no século XX, a arbitragem sofreria um revés, expressando as convicções políticas da época, visível no Código Civil de 1939 e 1974, reduzindo substancialmente a função e importância da arbitragem, judicializando-a. Com as alterações introduzidas, o tribunal arbitral era instalado no tribunal da comarca, o processo era preparado pelo próprio juiz de direito e com o apoio dos funcionários judiciais. Os árbitros eram ajuramentados pelo juiz, tendo como função a instrução da causa e a prolação do laudo arbitral. Quanto à matéria de recursos, havia lugar a recurso dos despachos e da sentença arbitral para os tribunais da Relação, nos mesmos termos admitidos no tribunal de comarca.

A partir de 1974, entrou em vigor o Decreto-Lei n.º243/84, de 17 de Julho, declarado posteriormente inconstitucional, e depois com a entrada em vigor da LAV, Lei n.º31/86, de 29 de Agosto, diz-nos MANUEL PEREIRA BARROCAS que o esforço legislativo no sentido de dotar o país com uma legislação moderna e capaz de articular a arbitragem voluntária com o poder judicial esgotou-se.

Perante esta breve incursão pela afirmação da arbitragem na história ocidental é fácil concluir que a arbitragem não é um instituto estranho à Justiça, por isso defendemos existir uma necessidade de definir o seu espaço, de clarear conceitos e atribuir-lhe o seu espaço conatural. Numa época em que se nota, mais uma vez, como se a história se repetisse, uma mudança de conceitos, reiteramos a necessidade de redefinir conceitos e atribuir à arbitragem uma legislação moderna, conferindo-lhe a inerente dignida

106Nas Ordenações Manuelinas, começam a surgir os primeiros indícios de redução de autonomia da arbitragem e uma maior intervenção do poder central, visível por exemplo, pela eliminação ou restrição do direito das partes poderem renunciar aos recursos.

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