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A doutrina, à semelhança do que acontece num grande número de ordenamentos jurídicos, tende a identificar as matérias passíveis de serem submetidas a arbitragem por referência ao critério da disponibilidade ou transigibilidade do direito controvertido. Segundo a doutrina portuguesa e estrangeira, um direito é considerado como “disponível” quando pode ser constituído e extinto por ato de vontade do seu titular, deste modo, poderiam ser submetidas à resolução por árbitros as questões que, por não respeitarem ao exercício de poderes públicos, não têm de ser dirimidas por estrita aplicação de disposições vinculativas150.

Ora este critério geral, consagrado no art.1.º, n.º1 da LAV antiga151, era um critério de aplicação difícil, porque nem sempre é fácil determinar se certa relação jurídica é disponível ou não, segundo CASTRO MENDES, o principal vício deste

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ALMEIDA, Mário Aroso de, “Arbitragem de Direito Administrativo- Algumas Considerações”, CAAD Newsletter, n.º1/2013. 150

CARAMELO, António Sampaio, “Critérios de Arbitrabilidade dos litígios. Revisitando o tema”, em: www.mlgts.pt/, pág. 24, refere que “Os autores que abordam este tema, costumam assinalar vários graus de indisponibilidade. JOÃO CASTRO MENDES, nomeadamente, distingue entre a “indisponibilidade absoluta” e a “indisponibilidade relativa”, correspondendo esta aos casos em que uma pessoa pode dispor do direito só por certa forma ou só em certas circunstâncias ou só a favor de certas outras pessoas,”, enquanto PATRICE LEVEL, caracterizou vários graus de indisponibilidade dos direitos, nomeadamente, “direitos totalmente e

definitivamente indisponíveis”; “direitos parcialmente disponíveis” e “direitos que se tornaram disponíveis”. Enquanto JOÃO

CASTRO MENDES, distinguiu entre “disponibilidade forte do direito” e a “disponibilidade fraca do direito”.

151Art.1.º, n.º1, “Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária,

qualquer litígio que não respeito a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros”.

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critério é o facto de implicar uma assimilação entre a celebração da convenção de arbitragem a um ato de disposição, reservas semelhantes apresentaram outros autores152. É o CPTA, no seu Título IX, intitulado de “Tribunal arbitral e centros de arbitragem” que regula de um modo geral a arbitragem em matéria de Direito Administrativo, constituindo lei especial para efeito do disposto no art.1.º, n.º 5 da nova LAV.

O art.180.º, n.º1 do CPTA, consagra o âmbito material dos litígios suscetíveis de resolução por um Tribunal arbitral ad hoc. É neste artigo que se podem encontrar as matérias que, sendo da competência dos Tribunais Administrativos, poderão ser submetidos à resolução por via arbitral.

Decompondo o artigo, quanto à alí. a) do art.180.º do CPTA, podemos afirmar que se trata de uma inovação da maior importância, já que, anteriormente era pacífico o entendimento de que a arbitragem em matéria de contratos administrativos não se estendia à fiscalização, a título principal, dos eventuais atos destacáveis relativos à respetiva execução153. Esta solução tornou claro que “a tradicional barreira, aparentemente intransponível, entre o reino dos actos administrativos e o dos contratos, (…) se vai diluindo”154

. Cabendo naturalmente neste preceito aquelas questões de Direito Administrativo abrangidas pelas alí. b), e) ou f) do art.4.º do ETAF155.

No entanto, fica excluída a arbitragem em relação aos atos destacáveis do procedimento pré-contratual, consequentemente, não será possível apreciar no mesmo processo, perante um tribunal arbitral, a questão da validade de um ato pré-contratual e da invalidade do próprio contrato156.

Problema maior levanta-se quanto à interpretação e densificação da alí. c) do art.180.ºdo CPTA, com efeito, a alí. c) permite a arbitragem sobre “questões relativas a actos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade, nos

152Nomeadamente, SILVA, Paula Costa, “Anulação e Recursos da Decisão Arbitral”, in Revista da Ordem dos Advogados, 1992, pág. 922, nota 79; CORREIA, Sérvulo, “A arbitragem…”, pág. 234.

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Esta solução tem a vantagem de permitir que num mesmo processo seja apreciada a globalidade da relação jurídica controvertida.

154ALMEIDA, Mário Aroso de, e CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais

Administrativos”, Coimbra Almedina, 2007, pág. 1008.

155FIGUEIRAS, Cláudia Sofia de Melo, “Arbitragem…”pág. 86, Nota 296.

156Também no mesmo sentido, ESQUÍVEL, José Luís, in “Os Contratos… “, pág. 242, refere que “o legislador vem admitir expressamente a possibilidade da legalidade dos actos administrativos serem objeto de um juízo arbitral, optamos por considerar estarmos já diante de uma perspectiva marcada mais pelo ser carácter inovador do que problemático, (…), apenas lamentando o facto de aparentemente se ter recuado na admissibilidade do recurso à arbitragem em matéria de apreciação da legalidade de actos administrativos pré-contratuais.”

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termos da lei substantiva”. A doutrina defendia o entendimento de que os atos administrativos que, nos termos da lei, podem ser revogados sem fundamento em invalidade eram actos disponíveis 157, estes seriam suscetíveis de recurso à arbitragem. Pelo contrário, quando estejam em causa atos administrativos que só possam ser removidos da ordem jurídica com fundamento em invalidade e, portanto, em condições vinculadas, tais atos não estando na disponibilidade da Administração, seria vedado o recurso à arbitragem.

Levantam-se dúvidas quanto à questão se seria mesmo este o critério que teria presidio ao legislador aquando da formulação do regime de legal, e se assim fosse, se o critério adotado fosse realmente o da disponibilidade, tal critério levantaria outros problemas de delimitação do respetivo âmbito.

Nomeadamente, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA identificava dois pressupostos decorrentes desta interpretação, “(i) o de que a arbitrabilidade de Direito Administrativo depende de um critério de disponibilidade; (ii) e o de que, com exclusão das questões atinentes à respetiva validade, os actos administrativos discricionários se encontram na disponibilidade da Administração, pelo que lhe é legítimo dispor em favor de árbitros do poder discricionário de determinar o respetivo destino, mas já não do poder de proceder à fiscalização da respetiva legalidade, que, por não ser um poder discricionário, mas vinculado, já não seria disponível em favor de árbitros”158.

O autor não concordando com estes pressupostos por assentarem em dois equívocos, por um lado, é errada a convicção de que a arbitrabilidade de Direito Administrativo assenta num critério de disponibilidade e por outro lado, o entendimento de que os atos administrativos que, nos termos da lei, podem ser revogados sem fundamento em invalidade seriam actos disponíveis.

Em primeiro lugar, a doutrina apelava à ideia de disponibilidade para criar um paralelismo entre a posição da Administração e a posição dos particulares relativamente aos direitos disponíveis. Na opinião defendida por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, esse entendimento não era aceitável, desde logo por o domínio dos contratos e da responsabilidade civil extracontratual, por exemplo, não serem domínios em que a

157ALMEIDA, Mário Aroso de, e CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, in “Comentário…”, pág. 1010. 158ALMEIDA, Mário Aroso de, “Sobre…”, pág. 14.

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Administração goze de posição semelhante à dos privados159160. Este equívoco levaria à conclusão de que a discricionariedade administrativa correspondia a um domínio de indiferença jurídica, ou seja, todas as soluções seriam boas. O que não é verdade. A discricionariedade administrativa pressupõe que a Administração encontre a melhor solução, no respeito pelo fim legalmente imposto e pelos princípios jurídicos aplicáveis. Outro equívoco que decorria desta interpretação é aquele que supõe que, quando as partes confiam em árbitros a resolução do litígio, estar-se-á a delegar nos árbitros o seu poder de disposição dessas situações jurídicas, com o intuito de neles delegar o poder de disposição. Isso também não corresponde à verdade, o que a lei exige, o correto entendimento será que essa disponibilidade seja apenas um pressuposto para que possa haver arbitragem sobre essas situações jurídicas e não um alheamento de Direito e, quando for admitida, a equidade161162.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, apesar do critério da disponibilidade ter sido largamente debatido na doutrina, tornando-se difícil encontrar um âmbito coerente, defendia que não seria sinónimo da autonomia privada característica dos privados. Na redação anterior do art.180.º, alí. c), deveria entender-se principalmente que o objetivo do legislador não seria o de atribuir aos tribunais arbitrais a possibilidade de formular juízos de mérito em substituição da Administração163, mas pelo contrário, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA entendia que se devia interpretar no sentido de possibilitar a

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Neste sentido, a prossecução do interesse público e a vinculação à lei ou aos termos dos contratos pelas entidades públicas, impedem que estas atuem com um livre arbítrio comparável à autonomia privada dos particulares quando livremente dispõem de direitos que a lei não qualifique como indisponíveis.

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Por essa mesma razão, há ordenamentos jurídicos onde a arbitragem não é admitida, nem sequer em matéria de contratos e de responsabilidade civil extracontratual. Acontece que em Portugal, se entende que na atuação da Administração que não envolve poderes de autoridade, a função do juiz administrativo não é diferente à função do juiz judicial, pelo que não haverá inconveniente em submeter tais questões à arbitragem.

161Razão pela qual o Mário Aroso de Almeida distingue a Arbitragem do instituto da transação. A arbitragem não deixa de envolver a participação das partes, mas não depende do assentimento destas na determinação da solução do litígio. Os poderes dos árbitros têm natureza jurisdicional que não lhe são atribuídos pelas partes. Ora neste sentido, quando uma entidade pública investe na arbitragem, não está a delegar os poderes de disposição que a lei lhe confere, está sim a constitui um tribunal que, em substituição dos tribunais estaduais, irá exercer a função jurisdicional.

162Contrariamente a esta questão, Martins Claro aceita a “possibilidade teórica de cometer a árbitros o julgamento de questões de legalidade, desde que os árbitros não possam julgar segundo a equidade”, in ESQUÍVEL, José Luís, in “Os Contratos….”, pág. 138, Nota 678.

163Neste sentido, FIGUEIRAS, Cláudia Sofia de Melo, in “Arbitragem…”, refere que “nada impede que a norma tenha o sentido e alcance de permitir a apreciação da legalidade de tais actos (…) pelo contrário já nos coloca imensas dúvidas a possibilidade de «um tribunal arbitral (…) diminuir ou suprimir os efeitos desfavoráveis de um acto administrativo», e, por essa via, ser «possível a substituição da decisão ou (…) a substituição da entidade administrativa competente para apreciar um pedido de revogação em relação a uma pretensão que diminua os extinga os efeitos desfavoráveis de um acto administrativo»”.

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fiscalização em sede arbitral da legalidade desses atos administrativos. Pois nesses domínios, o tribunal arbitral, aplicando regras e princípios jurídicos, mais não lhe compete do que fazer as vezes do tribunal do Estado164, julgando o cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação, art.3.º do CPTA. Neste sentido, entendia-se que a indisponibilidade do direito não deveria ser considerada como fundamento da exclusão da possibilidade de submissão de controvérsias à arbitragem, mas antes como limite ao poder decisório dos árbitros.

Conclui-se que não haveria uma justificação lógica para adoção do critério da

disponibilidade, tal implicaria uma ambiguidade do âmbito das matérias suscetíveis de

arbitragem, dependendo de um conceito mais ou menos amplo.

Contrariamente a este critério, outros ordenamentos jurídicos, como o inglês, suíço ou austríaco, não recorriam ao critério da “disponibilidade do direito”. Algumas legislações nacionais adotaram outros, nomeadamente o da transigibilidade, isto é, a possibilidade de sobre o litígio em presença se poder ou não celebrar mediante transação. Em Portugal, onde o critério mais aceite era o da disponibilidade do direito, alguns autores recorriam à indagação sobre a possibilidade de se celebrar transação sobre o direito em causa, como meio indireto de determinação da sua disponibilidade. Este critério foi também discutido pela doutrina, considerado também ele erróneo165.