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2. O acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva

2.1. Sistemas de resolução de conflitos

O conflito é inerente à coexistência humana, recorrendo ao pensamento de CARNELUTTI, todos os seres humanos têm interesses que este define como as posições favoráveis à satisfação de uma necessidade83. Pois bem, os meios que satisfazem as necessidades humanas são bens que, por sua natureza, são limitados e desproporcionais a todas aquelas necessidades, assim nascem os conflitos de interesses

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CARNELUTTI, Francesco, in “Sistema de Derecho Procesal Civil- Tomo I: Introdicción y Función del Proceso Civil”, tradução de Niceto Alcalá- Zamora, Castillo e Santiago Sentís Melendo, Uteha, Argentina, Buenos Aires, 1944, pág. 11.

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quando a relação existente entre uma pessoa e um bem é incompatível com outra relação do mesmo tipo. Um conflito supõe assim a presença de dois ou mais sujeitos que pretendem o mesmo bem, verificando-se assim uma incompatibilidade de interesses.

Os conflitos podem ser verdadeiros litígios, no sentido em que as posições das partes extremaram-se e o que está em causa para cada uma delas não é compatível com a posição da outra parte. A resolução do litígio passará pela decisão de um terceiro a quem competirá construir uma nova arquitetura para aquela situação jurídica. Diferentemente, pode-se distinguir o litígio do mero diferendo, situação em que existe um conflito de vontades, as partes pretendem o mesmo, mas não se entendem no acertamento da situação conflitual em que se encontram e, se procuram um terceiro, pretendem apenas o complemento da situação jurídica em que se encontram.

Os litígios são por isso situações contenciosas que se ultrapassam através de uma decisão jurisdicional de um terceiro, com recurso aos tribunais estaduais ou à arbitragem, intervindo, normalmente, por iniciativa de uma das partes apenas, mas sempre observando princípios básicos do processo jurisdicional: a garantia do direito de defesa, o dispositivo, o contraditório, a igualdade das partes, manifestando-se por exemplo no direito de assistência de ambas as partes.

Os diferendos não são ainda situações contenciosas e se é necessário a intervenção de um terceiro, essa intervenção é normalmente procurada por ambas as partes, destinando-se a realizar o interesse comum delas, aproximando-se as vontades em conflito, fala-se a este respeito no recurso à conciliação e à mediação.

Desta feita, compreende-se melhor a razão por que se prefere hoje reservar o conceito de meios alternativos de resolução de litígios para referir os meios privados enão contenciosos, excluindo assim a arbitragem. Esta posição ganha todo o sentido, note-se que a arbitragem, que tem entre nós, desde 1986, um espaço próprio, não constitui verdadeiramente uma alternativa à litigação comum, na medida em que opõe partes em situação de verdadeiro conflito de interesses e está por isso sujeita à necessidade de observação dos princípios próprios dos processos jurisdicionais.

É usual utilizar a expressão ADR (Alternative Dispute Resolution), um movimento que surgiu nos Estados Unidos, caracterizado pelo primado da informalidade, privilegiando a verdade material, em detrimento dos atos processuais interlocutórios, caracterizando-se por um processo instrumental e simplificado, infletindo a procura junto dos tribunais para outras instâncias públicas ou privadas.

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Evidenciadas as vantagens do movimento Alternative Dispute Resolutions, a Europa84 acolheu-o, talvez de forma ainda um pouco tímida, é possível registar uma significativa preocupação na promoção de tais meios de resolução alternativa de litígios, com o objetivo de incentivar os Estados- Membros a introduzirem mecanismos simplificados e desburocratizados no seu ordenamento jurídico.

Em Portugal, para designar o movimento e simultaneamente dotá-lo de uma tradução lógica para o português com um intuito de lhe conferir o mesmo mediatismo do acrónimo popularizado de ADR, propôs-se a designação de RAL (Resolução

Alternativa de Litígios). Apesar da proposta ser feliz e com condições para se impor, tal

conceção, a nosso ver, não será a mais rigorosa pelas razões supra referidas, tendo em conta que se usa recorrentemente o acrónimo de ADR, ensaiando-se várias traduções para as diversas línguas em latim. Esta experiência obriga a recolocar a questão da designação e a ponderar o interesse em adotar a sugestão de RAL ou aderir ao mais largamente popularizado e internacionalizado de ADR que, em português, se poderia traduzir na expressão Resolução Amigável de Diferendos, expressão que não se lhe pode recusar rigor.

As vantagens que os processos alternativos de resolução de diferendos apresentam encontram-se, numa primeira aproximação, no prolongamento assistido das vias negociais para a resolução de litígios, desde logo, são as partes que procuram a solução para o seu litígio e o acordo a que eventualmente cheguem é sempre preferível à decisão que um julgador lhe dite. Neste sentido, note-se que um desfecho alternativo é mais propício ao entendimento futuro e à continuação dos negócios entre as partes do que um desfecho de um processo contencioso, em que uma das partes vence e a outra perde. O desejável será a criação de instrumentos idóneos que proporcionem às partes alcançar uma solução para o litígio em causa pela via negocial, sem prejuízo de comprometer o recurso à via contenciosa no caso de insucesso da primeira. Deverá entender-se as formas de resolução alternativa de litígios como uma alternativa que não se esgote em si mesma e que não entrem em contraposição com a resolução judicial de conflitos, mas em complementaridade com esta.

84 Refira-se a este propósito o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, de 29 de Outubro de 2004, no Artigo III- 269.º, alí. g), n.º2, enquadrado na secção 3 dedicada à COOPERAÇÃO Judiciária em Matéria Civil; a Directiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, sobre assistência judiciária, no art. 10.º, sob a epígrafe- Procedimentos extrajudiciais; na mesma linha de orientação, a Directiva 2000/31/CE, relativa a matéria de consumo ligado ao comércio eletrónico; também a Comissão Europeia apresentou duas medidas destinadas a impulsionar os meios alternativos de resolução de conflitos, no contexto da publicação do Livro Verde e a segundo com a publicação do Código Europeu de Conduta para Mediadores.

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No nosso entender, deverá o Estado assumir um papel preponderante na criação e manutenção de formas de resolução alternativa ou amigável dos conflitos, ainda que só com um papel fiscalizador. Os cidadãos têm que sentir que a proteção que se verifica existir nos tribunais judiciais, e que resulta da intervenção de um ente independente e imparcial, não se perderá no âmbito destas formas e neste sentido. Assim, o Direito não se deve contentar em apenas regular estas realidades, criando somente regras que as disciplinem, mas, também deve proporcionar a eficiente aplicação dessas mesmas regras, tornando-as efetivas e como caminhos idóneos à prossecução da Justiça.