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Uma análise ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 311/08, 30 de Maio de 2008

B. O critério da patrimonialidade na NLAV

2.2. Uma análise ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 311/08, 30 de Maio de 2008

Maio de 2008194

Este acórdão merece relevo porque, apesar de continuar na mesma linha do acórdão referido supra, teve o mérito, na nossa opinião, de considerar inconstitucional a interpretação feita à norma 494.º, n.º1, ali j) do CPC, no sentido de a exceção de

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violação de convenção de arbitragem ser oponível à parte em situação superveniente de insuficiência de económica, justificativa de apoio judiciário.

No entanto, e ainda longe do que defendemos, reitera a anterior jurisprudência constitucional, no sentido de não considerar o direito de acesso aos tribunais extensível aos tribunais arbitrais, consequentemente não os incluindo no conceito de jurisdição.

No sentido que ora explicitamos, a parte C., LDA interpôs uma ação de condenação no tribunal cível contra A., S.A, e B.,LDA., preterindo o tribunal arbitral que havia sido convencionado pelas partes em caso de litígio. No entanto, por dificuldades económicas supervenientes, a autora recorreu aos tribunais estaduais, pois como foi referido supra, o instituto do apoio judiciário não está previsto para os tribunais arbitrais. Os réus na contestação alegaram a exceção dilatória de violação da convenção arbitral, pelo que deveria ser absolvido da instância. Os tribunais de primeira e segunda instância julgaram improcedente a exceção dilatória.

Inconformado com a decisão do tribunal a quo, o réu interpôs recurso para o TC, ao abrigo do art.70.º, n.º1, ali a) da LTC, pretendia ver apreciada a questão da inconstitucionalidade da norma segundo a qual a exceção dilatória de violação da convenção de arbitragem prevista no art.494.º, n.º1, ali j) do CPC não é aplicável nos casos de dificuldades económicas de uma das partes da convenção arbitral, tornando inexigível que ela cumpra o acordo de arbitragem. Fazendo uma interpretação conforme à CRP, o tribunal a quo julgou a norma inaplicável ao caso concreto, por considerar que implicaria uma denegação do acesso à justiça.

Nas alegações, concluiu não ser aceitável o entendimento que o tribunal a quo havia feito do art.494.º, n.º1, ali j) do CPC, a procedência da exceção dilatória não implicaria a denegação da justiça, pelo que deveria ser procedente e consequentemente absolvido da instância.

Quanto à natureza dos tribunais arbitrais, alegou tratarem-se de verdadeiros tribunais fazendo parte das categorias de tribunais previstas na CRP, pelo que o direito de acesso à justiça não é suscetível de ser violado pela procedência da exceção dilatória. A recorrente referiu ainda o facto de que a norma assim interpretada violaria princípios constitucionais, nomeadamente da proteção da confiança e da determinabilidade da lei aplicável, tendo em conta que os tribunais arbitrais fazem parte da administração da justiça, defendendo o seu estatuto de independência e imparcialidade dos próprios juízes.

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O recorrido, C., LDA. contra-alegou, concluindo que o direito de acesso aos tribunais é um direito fundamental inalienável que não pode ser alterado, sobrepondo-se a uma convenção de arbitragem celebrada entre as partes, ou seja, sobrepondo-se aos princípios invocados pelo recorrente de autonomia privada e autodeterminação.

O direito de acesso à justiça é garantido pelo Estado pelo instituto do apoio judiciário, mecanismo que não está previsto para os tribunais arbitrais, o processo nos termos em que o recorrente o coloca, equivaleria à negação do direito fundamental de acesso aos tribunais.

2.2.1. O sentido da decisão do Tribunal Constitucional

Contrariamente ao acórdão supra referido, o TC conheceu do objeto do recurso e decidiu pela confirmação da decisão recorrida julgando inconstitucional a interpretação do art.494.º, n.º1, ali j), por violação do art.20.º da CRP, quando oponível à parte em situação de insuficiência económica superveniente.

Este acórdão, diferentemente do supra referido, incidiu sobre o juízo de inconstitucionalidade que esteve por detrás da decisão de não aplicação da norma do CPC, em vez de se limitar ao objeto da norma que a decisão recorrida julgou inaplicável, ou seja, numa situação de insuficiência económica superveniente a aplicação do art.494.º, n.º1, ali j) não tem lugar.

Apesar das considerações final do TC, consideramos que ainda há aspetos que deixam muito a desejar, nomeadamente a reiteração pelo TC de que a falta de apoio judiciário nos tribunais arbitrais, preterindo esta forma de resolução de litígios é de ordem puramente instrumental, tem a ver apenas com o afastamento de uma via preferencial de apreciação e solução do litígio. Citando o Acórdão do TC, “Sendo assim, o sacrifício que a solução representa, para o interessado na via arbitral, afigura-se necessário e perfeitamente proporcionado à salvaguarda do bem protegido com a garantia da tutela jurisdicional”. Na decorrência do supra citado, acrescenta o TC que” A solução contrária, acarretando, pela perda de apoio judiciário, a perda definitiva e total do direito de levar à apreciação de um tribunal uma pretensão jurídica, é que redundaria na desprotecção absoluta da posição jurídica reivindicada…”.

O acórdão do TC reconheceu que o poder de decisão do tribunal arbitral é sujeito a condicionamentos e restrições que decorrem da regulação estadual, o Estado não abre mão da garantia do acesso à justiça. Quando a efetivação dessa garantia

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depende do apoio judiciário, não prevista para os tribunais arbitrais, o único meio de evitar este resultado inconstitucional, é o reassumir a competência dos do tribunal judicial. Quanto à questão levantada pelo recorrente, relativamente à denegação da tutela constitucional do livre desenvolvimento da personalidade, o TC pronunciou-se no sentido de não poder invocar-se tal tutela, quando a execução da referida convenção de arbitragem deixe desprotegido o direito fundamental de acesso à justiça. Desta forma, entendeu o tribunal, que a proteção da autonomia privada devia ceder, como única forma de dar efetividade à proibição de indefesa.

3.A posição do Tribunal Constitucional quanto à não concessão de Apoio Judiciário à Arbitragem

Apesar de se ter pronunciado no sentido da inconstitucionalidade da interpretação da norma do CPC, quando interpretada no sentido de a excepção de violação da convenção arbitral ser oponível à parte em situação superveniente de insuficiência económica, justificativa de apoio judiciário, o TC reiterou a distinção entre os tribunais arbitrais e os tribunais estaduais. Permaneceu na linha do acórdão referido supra, no sentido de que, nestes termos, a garantia de acesso ao direito não é realizável com o recurso aos tribunais arbitrais.

Não podemos deixar de ter em consideração a jurisprudência anterior do TC, na qual já se veio pronunciar no sentido de que a legitimidade dos tribunais arbitrais resulta do acordo enquanto expressão de autodiceia. Nesta medida, não são órgãos de soberania pois que esta é um exclusivo atributo de Estado, e neste sentido veja-se o Acd. n.º230/89, onde se lê “que mesmo que os tribunais arbitrais não se enquadrem na definição dos tribunais enquanto órgãos de soberania… nem por isso deixam de ser qualificados como tribunais para outros efeitos.” Reiteramos que a tutela jurisdicional efetiva não se esgota assim na tutela jurisdicional dispensada através dos tribunais comuns. A arbitragem, longe de ser um direito fundamental perfeito, requer uma intervenção estatal em sede legislativa que lhe dê exequibilidade e eficácia. E daquele direito fundamental resulta que do ponto de vista do Estado, resulta um dever de organização dos serviços adequados à mesma tutela, marcado por princípios gerais e abstratos, de modo a que sejam acessíveis aos cidadãos e este dever estatal concretiza o referido direito fundamental dos cidadãos.

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Por esta ordem de ideias, consideramos que o TC deveria ir mais longe, não fazendo uma distinção que a nosso ver se encontra desatualizada à luz dos princípios enformadores do nosso ordenamento jurídico. Fazer uma tal distinção, sem recurso a um argumento atualista, viola o princípio da igualdade e o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

Haverá ou não possibilidade de encontrar no sistema normativo uma solução capaz de pacificar a relação jurídica de um modo que otimize as várias possibilidades em vez de se decidir pela sobreposição de um dos direito? Neste sentido, JOSÉ MIGUEL JUDICE195, em anotação ao Acórdão do TC, veio dizer que, este entendeu que o “direito ao acesso ao direito” ou “direito à tutela jurisdicional efectiva” deve prevalecer sobre o “direito ao contrato” ou da “liberdade contratual” e o “direito à arbitragem”. Assumindo que assim possa ser, não conviria perguntar se isso não poderia ter sido assegurado sem lesão dos compromissos contratuais livremente assumidos, incluindo o direito a um meio alternativo de resolução de litígios?

O TC não colocou esta questão, nem que fosse no sentido de dar uma resposta negativa à harmonização e conciliação dos direitos. Parece-nos que este lapso é incompreensível, note-se que esta matéria é bem conhecida da prática arbitral, das normas de direito arbitral e da doutrina arbitral internacional, mesmo o TEDH já se veio pronunciar nesse sentido. Relembremo-nos que situações semelhantes acontecem com frequência com empresas que se obrigaram por cláusula compromissória e com o passar do tempo, vêem-se numa situação de graves dificuldades financeiras.

É certo e premente que seja dada uma resposta cabal para este tipo de situações. Em primeiro lugar, poder-se-ia recorrer às instituições que se dedicam à arbitragem, a parte desencadeia o procedimento arbitral tem de suportar os preparos da parte faltosa. No entanto, esta solução não resolve o problema, visto que os custos da arbitragem continuam a presentes.

Outra solução que tem sido praticada, com o intuito de harmonizar os direitos aparentemente conflituantes, é a de impor à parte que não é afetada pelo problema que custeie integralmente a arbitragem, incluindo honorários razoáveis de advogado, sendo ressarcido a final nos termos do decaimento da outra parte e da lei aplicável às custas processuais.

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Independentemente das soluções que possam ser adiantadas, não seria inviável que o TC adiantasse alguma investigação que fosse consentânea com a importância crucial para o futuro da arbitragem em Portugal, optando por não o fazer, concluindo apressada e sumariamente, sem mesmo encarar a questão suscitada pela recorrente, “a concreta configuração dilemática deste conflito de direitos só admite uma solução optativa, de preferência absoluta de um com sacrifício total do outro”.196

Perfilhamos da opinião de JOSÉ MIGUEL JÚDICE, ao não ter feito tal averiguação, nem ao menos deixando uma linha de orientação para o futuro, não respondendo à questão crucial, o TC falha, havendo formos de levar ao máximo a otimização dos direitos em conflito, sem necessidade de optar exclusivamente por um deles.

Outra problemática que se pode levantar, prende-se com a possível existência de tensões futuras relacionadas com outras finalidades, em vez da legítima preocupação de solucionar o problema nuclear. Vejamos, o TC decidiu que havendo um conflito entre o acesso ao direito e uma regra contratual, a simples invocação de uma das partes de que sofre de insuficiência económica deve gerar o efeito de afastar o compromisso contratual da escolha da arbitragem. O TC, ao fazê-lo nestes moldes, não definindo critérios ou princípios aferidores, poderá criar situações em que sempre que uma empresa não queira ter de se sujeitar a um procedimento arbitral, basta-lhe avançar com uma ação judicial em que invoque estar numa situação de insuficiência económica.

Este tipo de situações podem trazer efeitos negativos e sem necessidade para a arbitragem em Portugal, o TC mesmo declarando a inconstitucionalidade, deveria ter densificado a sua conclusão com rigor e segurança para o futuro, não “escancarando a porta a manobras dilatórias de partes inadimplentes”197.

E esta factualidade poderá ser usada muito para além da questão de um meio alternativo de resolução de litígios, poderá nomeadamente ser usado em Portugal por toda e qualquer empresa estrangeira que seja parte num processo arbitral que não lhe interesse, para assim obrigar a outra parte a ir ataca-la nos tribunais do respetivo foro, que sejam por assim dizer, subsidiariamente competentes, o que no fundo seria o objetivo a evitar com a opção pela arbitragem.

Implicitamente, no Acórdão está em causa um pré-conceito relativo à arbitragem, degradando o “direito à arbitragem”, que já supra tivemos oportunidade de

196Júdice, José Miguel, “Anotação…”, pág. 6. 197Ibidem, pág. 7.

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referir, remetendo-o para um mero “interesse de ordem puramente instrumental, (que) tem a ver com o afastamento de uma via preferencial de apreciação e solução do litígio”198

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De facto, não podemos ignorar a importância deste acórdão, sobretudo numa conjuntura atual em que as dificuldades financeiras afetam fortemente tanto as empresas como as pessoas singulares, partes em em processos arbitrais. JOSÉ MIGUEL JÚDICE refere que este acórdão tem a especificidade que a solução tenha sido concretizada nestes termos, sem que a parte que recorreu ao tribunal judicial tenha iniciado qualquer processo de insolvência.

Ao decidir nestes termos, o TC afastou-se do raciocínio que tinha levado o STJ a decidir de forma oposta numa situação semelhante199. Admitindo que se a recorrida se tivesse apresentado a processo de insolvência, a decisão do TC estaria correta, tomando nota que a solução não é porventura pacífica a nível internacional. O mesmo autor lamenta que o TC tenha assim decidido sem essa “passagem jurídico-factual”, tomando conhecimento e decidido pela inconstitucionalidade no caso concreto.

No nosso entendimento, não deixamos de concordar com JOSÉ MIGUEL JÚDICE, no sentido de que o TC deveria de facto ter sido mais preciso, no entanto não podemos contornar a importância de pela primeira vez o TC se ter pronunciado pela inconstitucionalidade da norma 494.º, alí. j) do CPC, no sentido interpretado no caso concreto, não ignorando a responsabilidade que decorre de ter sido a primeira vez.

4.Jurisprudência do TEDH