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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

II.5 As religiões afro-brasileiras

II.5.1 Candomblé: o legado dos Orixás

Muitos estudiosos do candomblé concordam em um ponto: a matriz cultural do povo Iorubá (ou Nagô) é, sem dúvida, a principal fonte de idéias para formação do candomblé brasileiro. A cultura nagô e sua religião chegaram ao Brasil com o desembarque de escravos no porto de Salvador, durante o período de vigência do tráfico escravista. Não se sabe ao certo quantos escravos iorubás aqui desembarcaram, nem quando os primeiros chegaram, a única certeza que se tem é que a religião dos orixás que hoje conhecemos ―existe em razão daquilo que pôde ser preservado, daquilo que sobreviveu‖ (PASSOS, Mara: 1999, p.30) da cultura desse povo. Embora haja testemunhos de que os escravos africanos trazidos ao Brasil continuaram a praticar aqui sua religião, não se pode de modo algum supor que as religiões afro-brasileiras atuais sejam simplesmente a continuação das religiões praticadas pelos escravos. As manifestações religiosas africanas eram sustentadas por grupos inconstantes e efêmeros, visto que seus membros não possuíam uma expectativa de vida longa e as taxas de

mortalidade superavam as taxas de natalidade. A sobrevivência desses grupos dependia sempre da chegada de novos escravos e da disseminação oral das práticas religiosas, dessa forma, o legado dos orixás resume-se ao que se manteve vivo na memória das pessoas e, somente, na memória daqueles poucos que conseguiram sobreviver a um período da história em que a distinção entre um animal doméstico e um ser humano de cor negra era praticamente nula. É por esse motivo que Mara Passos (1999, p. 30) afirma que ―candomblé significaria, então, um modelo de religião que congrega supervivências étnicas da África e que encontraram, no Brasil, campo fértil para sua disseminação e reinterpretação.‖ [grifo meu].

O início das religiões afro-brasileiras atuais data do final do século XVIII, com a fundação da Casa de Minas no Maranhão. O registro mais antigo da utilização da palavra candomblé, todavia, é do ano de 1826, em referência a um local onde os escravos africanos buscavam refúgio após uma revolta. Fundada em 1830, a Casa Branca em Salvador, é conhecida como a mais antiga casa de candomblé do Brasil. A fundação e organização de terreiros só teve início com o aumento do número de negros livres e, atualmente, não existem estimativas do número de terreiros de candomblé influenciados pela tradição iorubá. Cada terreiro e sua comunidade é uma instituição isolada e independente, ou seja, não reconhece nenhuma instância superior que determine modos de realização do culto. Assim, existem variações nos cultos de um terreiro para o outro, embora, sejam mantidos os elementos básicos da teologia iorubá. Nos grupos mais tradicionais se insiste na manutenção das tradições africanas e a interpretação teológica dessas tradições é transmitida às novas gerações através dos rituais de iniciação. Como não existe nenhuma instância de controle ou orientação, o surgimento de novos grupos ou dissidências de grupos já existentes leva ao surgimento de novas interpretações. Algumas interpretações defendem a manutenção das formas tradicionais e outras defendem a introdução, adaptação ou remoção de determinados elementos (o sacrifício de animais, por exemplo, é tema recorrente nessas discussões) .

A organização social, bem como a hierarquia religiosa, dos iorubás tinha como base a família. O culto aos orixás era uma questão familiar, assim, cada orixá tinha um terreiro próprio e cada terreiro estava sob a responsabilidade de uma determinada família. Esse sistema de organização familiar, contudo, foi totalmente destruído pelo sistema de escravidão no Brasil. Os terreiros no Brasil constituem uma tentativa de ligar os cultuadores dos orixás em uma unidade familiar aos moldes antigos. O parentesco nos terreiros não baseia-se somente em critérios biológicos, mas em critérios religiosos,

espirituais e rituais. Os membros de um terreiro e os filhos de um determinado orixá se consideram irmãos e, seguindo a mesma lógica, o líder do terreiro é chamado de pai ou mãe. Essa noção de parentesco espiritual influencia enormemente o relacionamento entre as pessoas de um terreiro, pois sua importância simbólica afeta outras esferas da vida dos membros do terreiro. A palavra de um babalorixá ou de uma ialorixá é lei para sua comunidade. Um terreiro se sustenta com base na solidariedade entre pessoas e a distribuição de tarefas segue rigorosamente uma estrutura hierárquica determinada por diferentes níveis de iniciação e tempo de pertença ao grupo. Os iniciados são introduzidos paulatinamente nos segredos da religião e essa acumulação de conhecimento confere posições mais elevadas na hierarquia religiosa da comunidade a qual pertence o indivíduo, ou seja, as obrigações e serviços são efetuados apenas dentro do terreiro do qual se é membro.

Na cosmovisão religiosa do candomblé tudo que existe no universo está situado em dois níveis de existência. Os seres humanos e todas as coisas materiais pertencem ao

Aiê, o qual é o nível de existência limitado e tangível. Paralelamente a esse plano

material de existência, há o Orum, o qual é o nível sobrenatural, ilimitado e imaterial. No Orum habitam os Orixás e os Eguns (espíritos dos antepassados dos seres humanos) e a esses compete reger o nível material da existência. Segundos mitos do candomblé, esses dois níveis de existência nem sempre foram separados. Erros humanos levaram à essa separação. Isso, todavia, não implicou no rompimento de todos os elos de ligação. Os seres humanos mantêm o contato com os seres do Orum por meio de trocas a fim de ―resistir à divisão entre os dois níveis de existência e tornar presente a realidade da ordem inicial‖ (BERKENBROCK, Volney: 1998, p.183), tida como a situação ideal, harmônica. O culto, a iniciação, as oferendas e os sacrifícios no candomblé têm por intuito permitir que os habitantes do Orum, notadamente os Orixás, possam vir ao Aiê por intermédio de seus representantes, ou seja, através da incorporação nos corpos dos seus filhos e filhas, no afã de conduzir o ser humano e o mundo à situação inicial de total harmonia e felicidade. É importante mencionar que, o contato com um meio social distinto e hostil, bem como a imposição do credo cristão, culminou com a extinção de centenas de divindades e orixás da ―teologia‖ iorubá. Sobreviveram aqueles mais ligados a elementos essenciais da natureza e da vida humana e que encontraram alguma identificação com os seres e santos que povoavam o universo religioso católico. Essa associação entre santos católicos e orixás foi motivada pelo fato dos negros escravos terem de esconder dos brancos a sua religião. O culto secreto era por demais arriscado e

o problema foi resolvido pela utilização de estátuas de santos católicos que de alguma forma lembrassem aspectos do respectivo orixá que se pretendia ocultar. O pegi (ou altar de um determinado orixá) passou a se assemelhar a um altar católico, mas as danças, velas e oferendas postas diante daquelas estátuas não se destinavam na verdade àqueles santos. Essa dissimulação, que protegia os orixás e os seus devotos, é o ponto de partida do sincretismo entre o cristianismo e as religiões africanas no Brasil.