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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

II.5 As religiões afro-brasileiras

III.1.2 A função terapêutica das religiões

III.1.2.1 Saúde e Salvação: uma divisão secular

Pesquisas históricas revelam, entretanto, que no passado as religiões não dissociavam a missão de salvação da tarefa terapêutica. Reflexões filológicas e semânticas demonstraram, também, que os termos saúde e salvação são co-originais, ou seja, originaram-se de um mesmo conceito e compartilharam durante muito tempo o mesmo significado global. Isso indica que no passado cabia às religiões salvar seus adeptos em sua totalidade física, pois a salvação não era dissociável de saúde. A salvação não estava isolada dos contextos concretos de existência e, portanto, era antecipada de forma significativa ainda nessa existência no exato momento em que se tornava sinônimo de saúde e cura. Assim como a saúde e salvação são correlatas, também, em contrapartida, a doença se confunde com o pecado, a possessão de espíritos maus e de demônios. A doença é a experiência pessoal do caos e da desordem, é a

manifestação dos espíritos malignos, dos demônios e, até mesmo, de Deus. A desordem cósmica parece ser o ―paradigma original sobre o qual se conjugam as correspondências próprias de qualquer outra desordem que intervém de modo variado para perturbar o organismo humano e provocar as doenças‖ (TERRIN, Aldo: 1998, p.157).

Nas religiões antigas, monstros e deuses mitológicos estavam na origem do mal metafísico e das doenças. Tiamat (no mundo Mesopotânico) e Leviatã (no mundo judaico antigo), por exemplo, aparecem de modo genérico na origem dos males e do caos, portanto, são a fonte de todas as coisas de cunho negativo. Não havia, entretanto, nesses primórdios, uma acusação precisa, ou seja, não se buscava ir mais à fundo na etiologia do mal a ponto de atribuir a responsabilidade por essa ou aquela doença a um determinado ser mitológico. Porém, aos poucos, essa necessidade de encontrar uma causa mais precisa das doenças é objetivada mediante a criação de uma etiologia de inspiração ético-religiosa que lentamente substituiu os grandes monstros e deuses mitológicos por seres maus menores – os demônios – que podiam ser combatidos de uma forma mais pragmática. Assim, devido ao desespero provocado pelas doenças, os indivíduos passaram a invocar, por meio de orações, a piedade de seus deuses. Somente os deuses podiam curar, libertar das doenças e salvar as pessoas cujas feridas infligidas no corpo faziam o espírito agonizar. Salvação e saúde aparecem aqui como faces de uma mesma experiência.

Para melhor compreender a relação entre doença e visão religiosa no mundo antigo, Terrin (1998) acredita que é fundamental analisar certos aspectos da cultura do antigo Egito, onde a busca pela juventude eterna e a não prestação de contas à morte era uma obsessão. A doença, para os egípcios antigos, era o resultado de uma invasão do corpo humano por espíritos ou pelas próprias divindades cultuadas naquela época. Acreditava-se, inclusive, que as divindades podiam ser acometidas pela doença se fossem atacadas por espíritos malignos. Com base nessa concepção das doenças e na sua preocupação extrema com a saúde, os egípcios desenvolveram na área cultural e religiosa diagnósticos muito avançados das doenças, aliando uma visão empírica indutiva com uma visão espiritual marcada pelas orações e encantamentos. É mérito dos antigos egípcios a visão localista das doenças, ou seja, de que a doença deveria estar ligada e ser estudada em relação ao lugar e ao órgão doente. Se por um lado havia esse conhecimento técnico-prático, por outro lado, era respeitada também a crença de que cada órgão era presidido por uma força espiritual e, desta forma, a fronteira entre medicina, magia e religião era bem flexível.

O mundo do Extremo Oriente, por sua vez, considerava a doença estritamente ligada a um equilíbrio total de energias e forças. Se a desordem é a causa de todos os males, a harmonia espiritual e energética é o princípio do bem-estar. A doença é, portanto, uma desarmonia do espírito e surge de um desequilíbrio entre as energias espirituais individuais e as energias cósmico-universais e, assim ―o espírito – esse microcosmo, espelho de todo o universo – torna-se o verdadeiro protagonista da saúde e da salvação‖ (TERRIN, Aldo: 1998, p. 170). No hinduísmo, por exemplo, o cosmo é feito de transações, fluxos e interações entre diversos níveis: o atman (microcosmo) e o

brahman (macrocosmo). A doença é, sob essa concepção, o resultado de um

desequilíbrio entre a natureza e o ser humano, entre fatores sociais e pessoais, espirituais e materiais. A religião leva à meditação, que por sua vez leva à consciência espiritual que liberta o espírito dos conflitos e, por conseguinte, das enfermidades. Saúde e salvação são continuação uma da outra e não podem ser separadas.

Ainda seguindo essa linha de equilíbrio de energias, a doutrina de Yin e Yang tornou a filosofia religiosa chinesa bastante conhecida. Os fenômenos universais dependem da alternância desses dois princípios e de seu equilíbrio, visto que são forças de polaridades opostas e ao mesmo tempo complementares de um mesmo princípio: o

tao. A saúde humana depende, segundo esse ponto de vista, da interação do organismo

com o ambiente que o cerca e do fluxo de energia ki, que pode ser definida como a expressão energética e espiritual do corpo com relação à natureza. Essa visão sistêmica faz do corpo humano um palco de conflitos e tendências que estão nas origens das doenças. Baseado nisso, a medicina tibetana deu extremo valor aos ―fenômenos espirituais e ao equilíbrio psicofísico do paciente, em combinação com o tipo de alimentação, o regime alimentar e a constituição pessoal‖ (TERRIN, Aldo: 1998, p. 176). Esse tipo de visão que alia aspectos espirituais e somáticos permitiu incluir no diagnóstico das doenças a ignorância, o ódio e o desejo, pois se acredita que a falta de controle da própria mente gera bloqueios no plano espiritual que provocam desequilíbrios no plano físico. Dessa maneira, a cura e a saúde dependem de capacidades intrínsecas e espirituais da pessoa que diante de circunstâncias negativas é capaz de superar seus condicionamentos para criar o ambiente adequado para o reequilíbrio das energias e dos elementos fundamentais do corpo. Esses exemplos mostram que as religiões orientais, mais antigas que as religiões e a medicina ocidental, não separam os conceitos de saúde e salvação, a qual é ―vista em estreita correlação

com a capacidade de desvincular-se dos condicionamentos psicofísicos‖ (TERRIN, Aldo: 1998, p. 179).

Não há, segundo as representações das religiões orientais, uma separação entre corpo e mente, entre mente e energias espirituais capazes de fazer refletir no corpo as desarmonias de um plano transcendente. Embora não seja possível calcular o real alcance e estabelecer o tipo de influência, a mente sem dúvida desempenha papel relevante nos estados enfermos e nos processos de cura. A eficácia do placebo demonstra que o sofrimento e a cura pertencem, muitas vezes, ao domínio do processo mental, no qual as idéias e informações podem funcionar como causas. Assim, pode se supor que talvez a força terapêutica das religiões resida não nas religiões em si, mas no fato de que a experiência religiosa influa positivamente na psique. A experiência religiosa ajuda a eliminar as contradições da vida e, de alguma forma, injeta força no sujeito a ponto de lhe permitir superar dificuldades existenciais; porém, considerar toda e qualquer doença como um sintoma de um desequilíbrio psíquico espiritual é um caminho pouco recomendado para se chegar a uma concepção de doença que esteja em linha com os conhecimentos acumulados ao longo dos séculos pela humanidade.

No mundo greco-clássico e ocidental em geral, a medicina manteve seu caráter holístico, ecológico e quase religioso até o limiar do Renascimento, quando toda filosofia religiosa cedeu lugar ao positivismo da pesquisa científica que, como defensora de um saber objetivo e indutivo, rebela-se contra os saberes vinculados à esfera religiosa. Isso fez com que a religião cristã se diferenciasse bastante das religiões orientais, pois fatores culturais acabaram por lhe forçar uma visão mecanicista e determinista da existência humana que culminaram com a separação dos significados de saúde e salvação. Para ainda encontrar um lugar no mundo secularizado, por exemplo, a Igreja Católica praticamente abdicou de toda e qualquer função terapêutica. Isso não impediu, entretanto, que outros segmentos religiosos cristãos se apoiassem exatamente nessa função para atrair e engrossar seu contingente de fiéis. Uma vez que os textos bíblicos revelam que Jesus Cristo propunha a saúde física como sinal e antecipação da salvação final, esses novos grupos cristãos encontraram as justificativas necessárias para sua empreitada no mercado religioso.

Desta forma, a história comparada das religiões nos permite concluir que, de uma forma geral, as religiões além de dar conta da força negativa atribuída às doenças, fazendo-as derivar de causas psíquicas ou espirituais, arrogavam para si uma função terapêutica que buscava antecipar a salvação final mediante a recuperação e manutenção

da saúde física e mental durante a existência material. Adicionalmente, uma vez que essa história revela que as práticas terapêuticas tinham quase sempre seu ponto de apoio e de força no mundo religioso, pode-se afirmar que ―a medicina não passa de uma especialização da religião e/ou até constitui a verdadeira praxe religiosa original‖ (TERRIN, Aldo: 1998, p. 197).