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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

II.5 As religiões afro-brasileiras

III.1.2 A função terapêutica das religiões

III.1.2.2 Religião e Medicina: a saúde como ideal social

No último capítulo de seu livro Antropologia da Doença, Laplantine busca ir além das interpretações e processos etiológico-terapêuticos (como fiquei doente e como vou me curar?). O autor desloca a discussão para as razões da doença, ou seja, a discussão situa-se no porquê da doença e as respostas à essa questão demonstram a estreita relação que há entre medicina e religião, saúde e salvação. Sobre a relação da medicina com a religião, Laplantine escreve:

A função médica, desligada da função religiosa, assume uma autonomia relativa e, depois, total, com relação a essa última, tornando-se uma prática específica e especializada. A eventual dimensão religiosa (da medicina), seja sob forma residual, seja sob uma nova forma, não é absolutamente percebida pela sociedade, tanto da parte dos que são curados quanto da parte dos que curam, os quais afirmam que são praticantes de uma ciência neutra e objetiva, nada mais (LAPLANTINE, François: 1991, p. 215).

O autor justifica essa afirmação através de uma análise histórica da medicina no Ocidente cuja maior dificuldade epistemológica foi separar seu conhecimento do corpo e de seus males da mitologia e das questões sacras e filosóficas a respeito do ser humano e do mal. Em outras palavras, o processo de diferenciação do pensamento médico científico reside em um ato de diferenciação consumada entre o que advém do mal biológico e o que advém de outros males (tidos como não científicos) oriundos de crenças metafísicas, de especulações filosóficas e interrogações psicológicas. Porém, quando um indivíduo se depara com a doença, inevitavelmente, há a presença de dois níveis interpretativos estritamente ligados: uma interpretação referente ao como (processo etiológico-terapêutico) e outra quanto à questão do sentido e do porquê. Assim sendo, seria ilusório pensar que existem práticas puramente médicas ou puramente mágico-religiosas.

No ano de 1976 a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu saúde como ―um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de

distúrbios e doenças‖ (MOURA apud DIAS, Luciana: 1995, p. 11). Essa definição de saúde proposta pela OMS provocou muita polêmica e insatisfação em diversas áreas de conhecimento acadêmico, pois, além de ser considerada utópica, ela caracteriza um retorno à visão terapêutica religiosa, na qual as fronteiras entre religião e medicina se encontram e se confundem. Isso é logicamente inaceitável em um mundo em que o trabalho médico tornou-se cada vez mais técnico e dependente das diferentes medições e monitoramentos realizados por máquinas de alta tecnologia e, no qual a visão religiosa da doença foi banida por carecer de correspondências verificáveis e; portanto, sem valor estimável. Essa visão científica das doenças esquece-se, porém, de que o conceito de doença está relacionado à aspectos culturais, ―pois a percepção e a conceitualização da realidade apresentam-se sempre mediadas por modalidades sociais de apropriação dela. Não existe doença independente do relato que é feito da doença e do significado que socialmente lhe é atribuído‖ (TERRIN, Aldo: 1998, p. 208).

A especialização médica trouxe, sem dúvida, resultados significativos por justamente não ter se atido a um conceito holístico das doenças, mas esses resultados são parciais, circunscritos, limitados e unilaterais. Diante da doença, a especialização, leva o médico a considerar o corpo como um organismo biológico em total isolamento orgânico, não se questionam causas psicológicas, motivos conflitivos e dificuldades de adaptação a uma determinada situação que poderiam ajudar a diagnosticar o estado enfermo, ou seja, descartam-se as vivências subjetivas. Em suma, enquanto a intervenção médica oficial pretende fornecer uma explicação experimental dos mecanismos químico-biológicos da morbidez e dos meios eficazes para controlá-los, as religiões associam uma resposta integral a uma série de insatisfações (não apenas somáticas, mas psicológicas, sociais, espirituais e até existenciais). Laplantine (1991) acredita que a permanência das práticas medicinais populares, calcadas basicamente em crenças religiosas, deve-se ao fato de que o indivíduo doente encontra dificuldades em conformar-se com a questão do porquê de sua doença. Enquanto, por um lado, não se pode afirmar que a ―saúde real do corpo e da mente dependa, em última análise, da vida religiosa‖ (KELSEY apud ALVAREZ, Francisco: 2000, p. 444); por outro lado, seria incorreto também aceitar indubitavelmente o modelo médico inspirado por um dualismo cartesiano que limita a saúde à sua dimensão biológica, negligenciando sua dimensão biográfica. Do ponto de vista teológico, o que torna a saúde/doença interessante não é sua componente biológica, e sim, sua dimensão biográfica. A doença e a saúde tornam- se relevantes porque, no momento em que são assumidas pela consciência humana,

transformam-se em objetos de decisões, integrações e cisões, revelando um sistema de valores e princípios culturais. Há que se ressaltar que ao moralizar a doença corre-se o risco de prejudicar o doente, pois isso poderia vir a servir de escusa para negar-lhe a solidariedade devida; não obstante, os danos seriam ainda maiores caso a doença fosse vista exclusivamente como algo natural, inevitável, independente da pessoa e da sociedade.

As interpretações e avaliações a respeito das doenças abrangem um mosaico de fatores culturais, socioeconômicos e religiosos que tornam a saúde um ideal social ―dotado de grande valência simbólica, elemento agregador que reúne acima das diferenças (...) aquilo que identifica a condição humana: o desejo de viver em plenitude; de superar aquilo que é fragmentário e precário‖ (ALVAREZ, Francisco: 2000, p. 445). De fato, as preocupações concernentes à saúde são tão importantes atualmente que acabaram por se transformar em objetivo, fim e valor da existência humana. Neste contexto, o papel da medicina deixa de ser o de apenas curar e passa a ser o de elevar ao extremo essa preocupação do indivíduo consigo mesmo. A medicina tornou-se um segmento dominante nas sociedades ocidentais, influenciando sobremaneira sua cultura a ponto de que as representações globais do indivíduo e da sociedade outrora religiosas, políticas, sociais e econômicas tendem a se tornar biomédicas. A medicina passou a ditar o que é verdadeiro e bom, tornando se a diretriz da conduta dos indivíduos e ―estendendo seu monopólio bem além dos limites do domínio biológico‖ (LAPLANTINE, François: 1991, p.237). A medicina ordena, prescreve, certifica, promete e, sobretudo, ameaça (provocando a angústia em todos aqueles que não obedecem aos comportamentos padrões que garantem a saúde e a longevidade). Em suma, a medicina é capaz de ditar a moral.

Esse caráter de normatividade da medicina, o qual lhe permite medir a ignorância, recompensar a obediência, punir a transgressão, lutar contra as práticas não oficiais e, principalmente, intervir cada vez mais na vida cotidiana de cada um de nós, pode ser qualificado de religioso, no sentido literal do termo. A saúde nas sociedades atuais ocupa rigorosamente o mesmo lugar que antes era ocupado pela idéia religiosa da salvação. Já a fé médica (crença no progresso infinito que levará o ser humano à saúde absoluta, através da eliminação gradual de todas as doenças), por sua vez, preenche parte do vazio deixado pelo enfraquecimento das grandes religiões. E analogamente às promessas utópicas de salvação das grandes religiões, o discurso médico parece falar de um estado de completo bem estar físico, mental e social. Em decorrência disso, a

medicina passou a ser uma atividade diferente das outras, alcançando prestígio e admiração social que desperta ao mesmo tempo fascínio e temor, tal como nos escreve Rudolf Otto em sua análise fenomenológica do sagrado. Esse temor e fervor reafirmam a ligação da doença com o sagrado, tornando a medicina uma prática correlata das religiões.