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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

III.2 As interpretações religiosas das doenças

III.2.2 Protestantismo: uma dicotomia desnecessária

As religiões são resultado de uma interpenetração e interdependência entre partes distintas, que se influenciam reciprocamente, proporcionando seja um produto novo ou um produto com características diferentes do fenômeno original. Nessa perspectiva é possível pensar a religião cristã como resultado de uma longa jornada na qual foram surgindo novas formas sem que isso representasse uma ruptura com as etapas anteriores. As diversas formas do cristianismo, em conformidade com a época e espaço em que estiveram situados, apresentaram maior ou menor incidência desse ou daquele fenômeno, mantendo, contudo, uma base como referencial da identidade cristã. Uma das principais mutações da fé cristã foi denominada de Protestantismo. O Protestantismo foi um movimento profundamente marcado por sua relação com a sociedade, visto que o ascetismo e a predestinação à salvação impelem seus fiéis a necessidade de provar à sociedade, por meio do trabalho e do sucesso financeiro, que de fato eram escolhidos para a salvação eterna. O entendimento da religião cristã sob essa ótica de circularidade e trocas recíprocas permite compreender que, mesmo que falemos de ―protestantismos‖, dada suas muitas facetas, ―as fronteiras normalmente interpostas entre eles não assumiram e nem estabeleceram rupturas. (...) A caminhada do protestantismo foi e continua sendo o resultado do sincretismo com diversos protestantismos e com outras religiosidades‖ (MENESES, Jonatas; 2002: p.131). Esse fato é evidenciado, por exemplo, no discurso de um fiel:

Eu não sei porque algumas igrejas dizem que nós não temos o Espírito Santo de Deus e que ele não age em nossas vidas. Se não temos o Pai e temos também o Filho é porque também temos Espírito Santo de Deus. O Espírito Santo de Deus está em nós e tem feito maravilhas em nosso meio. Portanto, eu não sou nem maior nem menor do que qualquer outro crente (transcrição do discurso de um fiel da Igreja Presbiteriana do Brasil extraído de MENESES, 2002, p. 134)

As divisões clássicas do protestantismo, a saber: protestantismo histórico ou clássico; pentecostalismo e neopentecostalismo, são assim contestadas por Meneses, cujo trabalho constatou que paradigmas (por exemplo, os dons carismáticos) tidos como práticas exclusivas dos pentecostais e neopentecostais estenderam suas ações inclusive sobre os protestantes históricos, propiciando intenso processo de pentecostalização. Segundo essa interpretação, os protestantes históricos tornaram-se praticantes de paradigmas pentecostais mesmo que mantenham, oficialmente, a identificação com

denominações originárias da Reforma Protestante. A nova classificação proposta por Meneses resume-se, também, a 3 grupos: pentecostais institucionalizados tradicionais; protestantes históricos renovados (igrejas protestantes históricas que passaram pelo processo de pentecostalização e assumiram uma nova identidade) e, finalmente, os protestantes históricos (igrejas que embora tenham absorvido paradigmas pentecostais não renunciaram suas denominações históricas).

Assim, para os fins desse trabalho, adotarei a classificação proposta por Jonatas Meneses e tratarei os evangélicos que aparecem nas rubricas do censo do IBGE como pentecostais. Isso implica dizer que os evangélicos estão alicerçados, basicamente, em dois pilares centrais: a crença na contemporaneidade dos dons espirituais e a manifestação desses dons em determinadas denominações ou momentos do movimento protestante. Não obstante, o fato de que essa ou aquela denominação evidencie em graus diferentes de intensidade esse ou aquele dom espiritual não é ignorado. Isso permite entender o fato da glossolalia ter maior evidência na primeira onda pentecostal, o dom da cura divina se destacar entre os pentecostais da segunda onda e as batalhas espirituais e a teologia da prosperidade serem mais evidentes na terceira onda (neopentecostal), por exemplo. Isso, entretanto, não refuta o fato de que até mesmo grupos históricos do protestantismo absorveram e praticam em maior ou menor medida paradigmas do movimento pentecostal.

III.2.2.1 Doença e cura divina

A cura divina para os pentecostais é elevada à categoria de obra divina e não é considerada pelos integrantes desses grupos religiosos como uma simples mercadoria, ao contrário, do que as cerimônias televisionadas fazem parecer. A cura divina é interpretada pelos pentecostais como a recompensa pela fé verdadeira e expressão do poder de Deus delegado àqueles que o buscam. Independente da importância simbólica que é atribuída a esse fenômeno e da incapacidade de se transmitir isso em shows e templos com milhares de pessoas se acotovelando, essa crença é utilizada como forte atrativo para a conquista de novos fiéis. A esse respeito, Meneses escreveu:

Os rituais de cura divina são o marketing principal que contribui decisivamente, em todos os momentos, para o processo de conversão, transformação e afiliação do fiel a uma denominação pentecostal ou pentecostalizada. O primeiro contato do candidato a fiel com o grupo é o resultado do proselitismo que anuncia o poder de Deus que cura todas as

enfermidades, e é a busca desse poder que ele vai a essas agências de salvação (MENESES, Jonatas: 2002, p. 7).

Isso ocorre porque para os pentecostais a cura é necessária para a preservação do corpo que, mesmo enfermo, ainda é a morada do espírito. Na perspectiva pentecostal, doença, corpo e cura estão necessariamente interligados.

A doença, de acordo com Laplantine (1991), não pode inscrever-se apenas no universo da biomedicina, pois ela é parte de um complexo social maior e não está isenta das representações que a sociedade estabelece a respeito do tema. Se limitarmos o conceito de doença a esfera bioquímica, a correção ou superação da função desviada seria possível única e exclusivamente por meio de intervenções no aparato fisiológico, e esse tem sido o comportamento da medicina moderna que trata das doenças sem levar em consideração os intercruzamentos da doença e do doente com fatores sociais, psicológicos, religiosos etc. A análise de alguns trabalhos acadêmicos talvez torne possível uma melhor compreensão das representações sociais e religiosas que os pentecostais atribuem ao sofrimento gerado pelas doenças.

Um estudo sobre os protestantes no Estado de São Paulo demonstrou que ―os pentecostais aceitam dois tipos básicos de diagnósticos para as doenças que os afligem: doenças originárias do pecado e doenças originárias da ação demoníaca‖ (SOUZA apud MENESES, Jonatas: 2002, p. 141). O trabalho de Souza, realizado em 1966, embora retrate um contexto muito diferente do atual, visto que hoje seria possível indicar outras possibilidades de diagnóstico em decorrência da dinâmica social e religiosa, ressalta o fato ainda válido e comprovado por Meneses (2002) de que a doença é compreendida como nociva, perniciosa, resultado do pecado e da ação de entidades espirituais maléficas. Três novos tipos de diagnósticos vêm se somar aos dois anteriormente propostos por Souza com base nos trabalhos de Meneses.

Meneses constata nos depoimentos de indivíduos pentecostais que a doença pode ser interpretada como o resultado da ação de Deus sobre o ser humano com o objetivo de provar a sua fé, ou seja, mesmo protegido e em comunhão com Deus o fiel é acometido por doenças para que sua fé seja testada com o intuito de fortalecê-lo física e espiritualmente. Adicionalmente, verificou-se que muitos discursos assinalam as doenças como não resultantes apenas de ordem espiritual, mas também de ordem fisiológica e sócio-econômica. Alguns ressaltam, inclusive, apenas o lado fisiológico revelando a eficiência na difusão de conceitos e diagnósticos oriundos da medicina oficial propiciada pela expansão do sistema de saúde brasileiro, deixando-se quaisquer

críticas de lado. O crescimento do atendimento médico, decorrente do processo de urbanização, propiciou à população pobre ―o acesso a um novo tipo de conhecimento, com um novo tipo de linguagem que, como sistema de valores, transforma-se em norma superior aos indivíduos‖ (CÉSAR & SHAULL apud MENESES, Jonatas: 2002, p. 143). Em decorrência disso, os comportamentos sociais são re-orientados e a busca das duas terapias, religiosa e médica, é o reflexo do constante contato dos indivíduos com essas novas formas de linguagem e, assim, busca-se a Deus através de orações individuais e coletivas sem, contudo, abrir mão do aparato médico à disposição. Outro diagnóstico muito comum atribuído pelos pentecostais relaciona-se com as condições de vida e de trabalho a que estão submetidos, conforme nos revela o depoimento desse fiel da igreja Evangélica Assembléia de Deus:

Nem tudo de doença que temos é do demônio ou do pecado ou do corpo. Muitas doenças acontecem porque as pessoas comem mal e vivem mal. Também, com o salário que a gente ganha (transcrição do discurso de um fiel da Igreja Evangélica Assembléia de Deus extraído de MENESES, 2002, p. 144).

Ao assumirem que a doença é causada por baixos salários, pelas moradias e alimentação precárias, pela corrupção política e pela falta de atendimento médico adequado, os discursos revelam uma adequação dos indivíduos à realidade sócio- política brasileira, bem como a disseminação das idéias da medicina social abordada no primeiro capítulo desse trabalho.

As representações pentecostais a respeito da doença apontam na direção de causas diversas: fisiológicas, pecaminosas, demoníacas, condições de vida e provação divina. Os esforços para se fazer a distinção entre a doença de origem material e a doença de origem espiritual não impedem, todavia, a adoção simultânea do tratamento médico e da oração. Isso revela uma visão totalizante do ser humano onde as fronteiras entre o material e o espiritual tornam-se por demais imprecisas. Os trabalhos de Minayo, embora não relacionado à nenhuma religião, já demonstrará essa concepção holística das representações de saúde e doença entre as classes populares, a qual geralmente é responsável pela lotação das instalações pentecostais. Mesmo mergulhado nos paradigmas pentecostais (práticas religiosas mágicas), os discursos dos fiéis destacam o corpo como dádiva de Deus que precisa ser preservado por todas as vias disponíveis. Isso se deve, principalmente, ao fato de se reconhecer o corpo sem a hierarquização da dualidade corpo/espírito. Embora isso não configure uma:

superação total da dicotomia cartesiana de corpo/alma, constitui um avanço que permite ao fiel uma melhor compreensão dos seus estados de doenças, impelindo-o à utilização dos dois modelos de terapia: a terapia médica oficial e a terapia religiosa como formas que interagem reciprocamente e que proporcionam a ajuda para a manutenção do corpo (MENESES, Jonatas: 2002, p. 157)