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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

II.4 Espiritismo no Brasil

II.4.1 Chico Xavier: espiritismo à brasileira

No dia 2 de abril de 1910, nasceu na cidade de Pedro Leopoldo (MG), Francisco de Paula Cândido, o qual em meados dos anos 60 alteraria oficialmente seu nome para Francisco Cândido Xavier e, que seria conhecido simplesmente como Chico Xavier. Entre histórias comoventes de maus tratos na infância, escândalos, acusações de

pastiche, abnegação, problemas de saúde, prática da caridade e genuína humildade, o médium de Pedro Leopoldo passou a ser conhecido como o mais importante médium psicógrafo do mundo e, sua biografia mescla-se com a história do espiritismo brasileiro. Chico Xavier ganhou destaque, entre outras coisas, pela sua capacidade de psicografar mensagens transmitidas pelos espíritos desencarnados.

Apoiado pela FEB, em 1932, Chico Xavier publicou sua primeira obra psicografada: ―Parnaso de Além-Túmulo‖, o qual era uma coletânea de 56 poemas atribuídos a 14 poetas brasileiros e portugueses já falecidos. A edição definitiva desse polêmico livro seria, mais tarde, composta de 259 poemas cuja autoria é atribuída aos espíritos de 56 poetas renomados. O livro é polêmico porque reconhecer a produção literária de Chico Xavier como mediúnica e sobrenatural significa legitimar a tese espírita de imortalidade da alma, em contrapartida, refutar tal afirmação e chamá-lo de embusteiro, significa atribuir ao indivíduo de curso primário extraordinária cultura e talento literário dignos de uma recomendação à Academia Brasileira de Letras. A esse respeito, o jornalista, historiador e escritor brasileiro Mário Donato (1915-1992) escreve:

(...) opto pela explicação sobrenatural, que não satisfaz minha consciência, é verdade, mas apazigua a minha humaníssima vaidade de literato. Pode lá um homem avultar tantos palmos, por suas próprias forças, sobre a cabeça dos demais? Pode lá plagiar, velozmente como faz o Chico, Humberto, Antero e outros do mesmo naipe, a quem não se ‗pasticha‘ senão depois de larga experiência literária e trabalhosa noite de insônia? Não, absolutamente. É milagre. Coisas assim não podem ser senão milagre, puro milagre. Há qualquer intervenção sobre-humana no fato; não porque o diz Chico Xavier, mas porque assim o exige a nossa arrogância...(TIPONI apud STOLL, Sandra: 2003, p.78)

A polêmica esmoreceu com o desinteresse da imprensa, principalmente após o encerramento do caso ―Humberto de Campos‖, ou seja, depois da ação que os familiares do escritor Humberto de Campos moveram contra Chico Xavier e a FEB, pleiteando a obtenção de direitos autorais das obras póstumas se sua autoria fosse realmente atribuída ao poeta, ter sido considerada imprópria. Chico Xavier psicografou por mais de 60 anos e quando encerrou sua carreira editorial, em 1993, haviam sido publicados 378 títulos e que cujas vendas ultrapassam os 20 milhões de exemplares segundo a FEB. Embora legalmente proprietário dessas obras, Francisco Cândido Xavier abriu mão dos direitos autorais de todas elas.

Segundo estudiosos, as obras de Chico Xavier podem ser divididas em três fases: a primeira, segundo eles, é de convocação (ou chamamento), a segunda é de esclarecimento e, a terceira seria de consolação. As primeiras obras psicografadas por Chico Xavier tem como temática a experiência e o significado da morte, a qual é utilizada como ponto de partida para a reflexão doutrinária. A morte, em suma, nas palavras dos renomados poetas que se expressaram por intermédio do médium, não representa uma ruptura. A morte nesses poemas e crônicas é apresentada apenas como uma ―passagem‖, do mundo físico para o espiritual, que não implica na perda de consciência, ou seja, na situação pós-morte há a preservação da memória e de sentimentos terrenos. Assim, servindo como chamariz das idéias espíritas, a temática da imortalidade da alma, em termos de preservação da memória temporal e afetiva, foi divulgada nas primeiras obras de Chico Xavier. É notória a utilização de linguagem rebuscada nesses primeiros trabalhos, o que permite supor que essas obras tiveram receptividade relativamente limitada junto ao público, quando se leva em consideração os níveis de escolaridade da população brasileira naquela época.

A fase de esclarecimento, cuja duração aproximada foi de 35 anos (de 1939 a 1974), é marcada pela publicação de outro gênero literário: o romance. Nesta fase, a autoria dos trabalhos de Chico Xavier é atribuída aos espíritos Emmanuel, o guia espiritual do médium, e André Luiz . ―Há 200 anos‖, publicado em 1939, foi o romance precursor desta segunda fase. Os romances têm um caráter autobiográfico dos referidos espíritos e descrevem, de maneira contextual e histórica24, a experiência pessoal e subjetiva desses autores com relação à vida e a morte. O intuito desses romances históricos é fazer um relato do tipo exemplar: os ―erros‖ cometidos por pessoas comuns em ―vidas terrenas passadas‖ servem de exemplo às avessas. É notório o caráter didático dessas obras cuja pretensão ―é promover uma nova disciplina religiosa, centrada na idéia de que o indivíduo e responsável por seu destino‖ (STOLL, Sandra: 2003, p. 92), e assim o sendo propõe padrões de conduta e modelos condizentes com a doutrina espírita mediante a intensificação de certos temas doutrinários tais como: o sacrifício, a renúncia, a resignação, a tolerância, a humildade etc. São abordados nos livros publicados nesse período termos e temas essenciais para a doutrina espírita tal como a idéia de livre-arbítrio, de carma (especificamente através da autobiografia de

24 Aparentemente, o recurso à história teria propósito meramente de contextualização da narrativa.

Entretanto, Sandra Stoll (2003) considera que o papel da história, nos livros de Chico Xavier, é na verdade outro: a mesma é manipulada com vistas a produção de evidências que contribuam para ajuizar a veracidade de fatos.

Emmanuel), de reencarnação, de evolução espiritual e, inclusive, a descrição da vida no ―plano espiritual‖ ou pós-morte (―Nosso lar‖ , publicado em 1943, de autoria do espírito André Luiz foi o primeiro livro sobre o tema).

Além de abordarem a doutrina espírita por uma perspectiva moral, dois livros desse período (―Evolução em dois mundos‖ e ―Mecanismos da mediunidade‖ publicados em 1959 e 1960, respectivamente) de autoria do espírito André Luiz (suposto médico em sua última encarnação) e escritos em parceria com Waldo Vieira (médium recém-formado em medicina e odontologia) abordam as questões doutrinárias pelo prisma ―científico‖, numa tentativa de obtenção de legitimação social da doutrina espírita mediante a aproximação dessa com o discurso científico. Essas duas obras, entretanto, não apresentam uma atualização da doutrina de Allan Kardec com os conhecimentos científicos da época, apenas descrevem fenômenos já conhecidos com uma nova linguagem, supostamente científica. Supõe-se que em decorrência das críticas e da pouca aceitação pelo público em geral, esse gênero literário deixou de ser produzido, mas a parceria com Waldo Vieira viria a render ainda mais 17 livros entre poesias, crônicas e textos doutrinários, mais simples no estilo e linguagem, com vistas à orientação da vida diária.

Nos meados dos anos 70 a terceira fase literária de Chico Xavier vem à tona. A literatura de consolação, como é comumente conhecida, é composta por coletâneas contendo mensagens particulares, psicografadas por Chico Xavier, de recém-falecidos aos seus familiares mais próximos. Essas narrativas rememoram os acontecimentos e sentimentos que antecederam a morte dos espíritos autores no intuito de dissipar os sentimentos de culpa ou revolta a que, possivelmente, estariam sujeitos os entes queridos do autor da mensagem. A linguagem coloquial e o forte apelo sentimental visam promover o consolo e a resignação daqueles que ―aqui ficaram‖. Embora constituam uma inovação na produção do médium, as obras dessa terceira e última fase somente reiteram a tese da imortalidade da alma e a necessidade de reeducação moral por intermédio da prática da caridade.

O intuito desses poucos parágrafos dedicados ao médium Chico Xavier é mostrar que a análise de sua influência deve, pois, ser feita num amplo espectro, desde sua pessoa carismática e exemplar até o conteúdo de suas obras. Foi a partir de seu trabalho que a doutrina espírita se popularizou e o vocabulário e idéias típicas dessa doutrina acabaram sendo absorvidos pelos brasileiros, todavia, isso com certeza não ocorreu da maneira como Allan Kardec idealizou. Isso, contudo, não significa que o

―espiritismo à brasileira‖ seja um subproduto, algo adulterado ou ―menor‖ que o original, pois ―as diferenças no modo de se praticar uma mesma religião decorrem de uma tensão que é inerente ao processo de universalização das religiões‖ (GEERTZ apud STOLL, Sandra: 2003, p. 60). O espiritismo é, sem dúvida, uma religião importada cujo processo de difusão no Brasil envolveu o confronto com uma cultura religiosa já consolidada e hegemônica. Postula-se que a difusão do espiritismo foi facilitada pelo fato das práticas mediúnicas de tradição africana estarem socialmente disseminadas no Brasil, resultando em uma predisposição à mística/mágica por parte da população brasileira. Não se pode descartar tal hipótese por completo, porém, é inegável que o espiritismo definiu sua identidade assumindo traços tipicamente católicos. A noção cristã de santidade, por exemplo, encontra respaldo na carreira religiosa e comportamentos de Chico Xavier, cuja figura revela o impacto que o imaginário e práticas católicas exerceram sobre o espiritismo. Essa ―parceria‖ da doutrina espírita com valores católicos, talvez, explique a grande aceitação das idéias espíritas em um país majoritariamente católico mais do que a hipótese de predisposição natural à mística/mágica.