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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

III.2 As interpretações religiosas das doenças

III.2.3 Espiritismo e sua lógica

III.2.3.1 Hospital celestial: a doença como terapia

O Livro dos Espíritos apresenta pouco mais de mil respostas a perguntas dirigidas por seu autor aos espíritos. Kardec organizou essas respostas em quatro livros: ―As Causas Primárias‖, no qual ele discute os elementos gerais do universo, a existência de Deus, a criação e o princípio vital; ―Mundo dos Espíritos‖, onde esclarece a tipologia dos espíritos e a sua interação com os seres vivos, a reencarnação e o papel dos espíritos em fenômenos psicológicos; ―As Leis Morais‖, que apresenta onze leis morais que regem o universo e; por fim, ―Esperanças e Consolações‖, no qual discute-se as penas e gozos terrenos e celestiais. Para Kardec, seu livro apresenta uma doutrina sistemática e científica do mundo espiritual que se fez possível mediante a redescoberta da mediunidade. Além de atestar a existência de outro plano existencial, os espíritos prescreveram modelos de comportamento para a vida terrena baseados em princípios morais tipicamente cristãos. Isso é compreensível, levando-se em conta que os avanços científicos do século XIX erodiam a visão religiosa do mundo, desmistificando a cosmologia e a cronologia histórica cristã apresentada na Bíblia. Kardec, assim como muitos intelectuais de sua época, preocupava-se com a crise moral que adviria dessa erosão da fé cristã; portanto, seu trabalho caracteriza-se por um esforço em criar uma ponte entre ciência e religião, entre o ―é‖ e o ―deve‖. Embora Kardec tenha interpretado sua doutrina como uma ciência empírica, capaz de interpretar e condensar a comunicação espiritual em princípios morais, no Brasil sua doutrina acabou sendo identificada e assimilada de imediato como uma religião. Em certa medida, isso ocorreu porque o Espiritismo se propagou mais rapidamente entre as classes populares.

É bem provável que foram os seguidores populares de Kardec que contribuíram para enfatizar a capacidade terapêutica da mediunidade, tendo em vista seus interesses e crenças. Embora Kardec tenha se distanciado da visão cristã dos milagres e da idéia de seres sobrenaturais (anjos e demônios), ele aparentemente não se opunha a utilização da mediunidade com propósitos curativos. A pergunta 556 do Livro dos Espíritos fornece maiores esclarecimentos a esse respeito:

556. Certas pessoas têm realmente o dom de curar por simples contato? O poder magnético pode chegar até isso, quando é secundado pela pureza de sentimentos e um ardente desejo de fazer o bem, porque os bons espíritos auxiliam. Mas é necessário desconfiar da maneira como as coisas são contadas por pessoas muito crédulas ou muito entusiastas, sempre dispostas a ver o maravilhoso nas coisas mais simples e mais naturais. É necessário também desconfiar dos relatos interesseiros por parte de pessoas que exploram a credulidade em proveito próprio. (KARDEC, p. 204, 2006)

Essa passagem do Livro dos Espíritos mostra que a possibilidade de cura espiritual é aceita, ademais recomenda cautela e ceticismo quanto aos relatos sobre esses atos. De uma forma geral, acredito que Kardec julgava que a mediunidade deveria ser utilizada mais para educar e prover orientação moral do que para curar. Isso, entretanto, não impediu o advento de uma série de interpretações etiológicas das doenças, respaldadas na crença de um mundo celestial e na lei de causa e efeito, bem como de terapias espirituais com o propósito de restaurar a saúde física e mental mediante os mais diversos tipos de intervenção celestial. Em seu livro Apometria para

Iniciantes (2002), Patrícia Barz & Geraldo M. Borbagatto destacam as seguintes causas

dos estados mórbidos segundo a ótica espírita:

a) Indução Espiritual

É o processo em que desencarnados (espíritos) transmitem energia negativa aos encarnados (seres humanos) em decorrência de suas angústias e dores, a ponto de causar uma desarmonia que se traduziria em mal estar físico e psíquico. A indução espiritual, segundo Barz & Borbagatto, poderia ser desencadeada pela conduta do indivíduo afetado. Acredita-se que os hábitos perniciosos, os vícios, o medo despropositado e a descrença seriam atrativos para esses espíritos malfeitores. Adicionalmente, os mesmos autores também afirmam que em certas circunstâncias alguns indivíduos podem ter vislumbres de experiências marcantes ocorridas em outra encarnação. Essas reminiscências, guardadas no âmago do espírito, poderiam causar sensações de angústia, desespero ou remorso sem causas aparentes; psicologicamente falando, essas seriam manifestações do que comumente conhecemos como neurose.

b) Obsessão espiritual

É a ação maléfica e persistente de um espírito sobre um indivíduo que, diferentemente da indução espiritual, muitas vezes independe da conduta do indivíduo alvo. A obsessão pode causar perturbação completa do organismo e das faculdades mentais do indivíduo afetado. Quanto às causas das obsessões, Allan Kardec escreveu:

245. As causas da obsessão variam, de acordo com o caráter do Espírito. É, às vezes, uma vingança que este toma de um indivíduo de quem guarda queixas da sua vida presente ou do tempo de outra existência. Muitas vezes, também, não há mais do que o desejo de fazer mal: o Espírito, como sofre, entende de fazer que os outros sofram; encontra uma espécie de gozo em os atormentar, em os vexar, e a impaciência que por isso a vítima demonstra mais o exacerba, porque esse é o objetivo que colima, ao passo que a paciência o leva a cansar-se. (...) Outros são guiados por um sentimento de

covardia, que os induz a se aproveitarem da fraqueza moral de certos

indivíduos, que eles sabem incapazes de lhes resistirem (KARDEC, texto extraído da versão eletrônica do Livro dos Médiuns, sem paginação) [os grifos são meus].

No entanto, as causas não se limitam a essas apontadas no texto acima. No tópico 252 do mesmo livro são indicadas outras causas para a obsessão. É possível deduzir, mediante leitura do relato das irmãs atormentadas por um espírito zombeteiro, no tópico 252, que a obsessão pode resultar de transgressões graves dos encarnados e desencarnados e o sofrimento provocado por esse processo serve como expiação das faltas. Ainda, nesse mesmo tópico, Kardec afirma que as imperfeições morais dão azo à ação dos espíritos obsessores. Calcados, talvez, nessa interpretação, Patrícia Barz e Geraldo Borbagatto (2002) afirmam que a obsessão espiritual seria a causa primordial de todas as doenças mentais. É interessante observar que esses autores interpretam e tratam, inclusive, as formas de dominação tirânicas entre seres humanos como pseudo- obsessões. Esse tipo de relação interpessoal, alimentado pelo ódio mútuo, teria segundo a concepção dos referidos autores os mesmos efeitos nocivos da obsessão espiritual e, além disso, o maior culpado, nesse tipo de comportamento errôneo, seria justamente aquele que se deixa dominar. Os autores também relacionam os processos de obsessão com os conceitos biológicos de simbiose (relação mutuamente vantajosa entre espíritos e seres humanos) e parasitismo (associação entre espíritos e seres humanos que resulta em prejuízos aos últimos).

c) Estigmas cármicos não obsessivos: físicos e psíquicos

O carma é um termo religioso utilizado pelo Budismo, Hinduísmo e Jainismo para designar as conseqüências das ações humanas, ou seja, de forma análoga aos postulados físicos de Isaac Newton (1687), essas religiões assumem que para toda ação existe uma reação de força equivalente em sentido contrário. Assim, segundo essa formulação, um indivíduo que comete uma má ação irá com certeza receber um mal equivalente àquele que praticou. No Ocidente, essa noção de carma foi adotada e reformulada pelo espiritismo. Vale ressaltar que o termo carma não foi utilizado por Allan Kardec em nenhum de seus livros. Isso, longe de ser apenas um fato frívolo, revela a oposição de Kardec quanto às idéias deterministas inerente à concepção oriental do termo carma. Essa discordância conceitual levou Kardec a uma reformulação da idéia original, a qual foi denominada de Lei de Causa e Efeito ou Lei das Causalidades. Assim, enquanto o conceito de carma sugere que as ações passadas resultarão em dívidas a serem resgatadas, a lei das causalidades apresenta a idéia de que os acontecimentos da vida, inclusive o sofrimento, possuem um motivo justo e uma finalidade proveitosa.

As doenças, assim como qualquer contingência humana, podem então ser interpretadas como resultado dessa lei. Acredita-se que as ações antiéticas produzem "complexa desarmonia psíquica que (...) se enraízam no perispírito, só se exteriorizando mais tarde sob a forma de deficiência ou enfermidades complexas no transcorrer das reencarnações sucessivas" (BARZ, Patrícia & BORBAGATTO, Geraldo: 2002, p. 25). As deficiências físicas congênitas (ausência de membros, surdez, cegueira etc.) e manifestações mentais patológicas (Síndrome de Down, esquizofrenia, autismo etc.) são vistos, sob essa ótica, como uma oportunidade para reaprender e evoluir espiritualmente, pois se assume que os estados patológicos de nascença resultam de faltas cometidas em existências passadas. Pode-se dizer, na verdade, que as doenças na existência terrena são muitas vezes interpretadas pela ótica espírita como ―recursos terapêuticos, requeridos pelo espírito moralmente enfermo, visando o reajuste de sua consciência culpada‖ (BARZ, Patrícia & BORBAGATTO, Geraldo: 2002 , p. 26).

d) Síndrome da Mediunidade Reprimida

A mediunidade é a faculdade psíquica que permite a interação com o plano de existência espiritual. O médium é, portanto, um instrumento de ligação ou sintonização entre dois planos existenciais distintos e, que é capaz de captar, canalizar e transmitir energias do mundo espiritual. Acredita-se que essa capacidade, entretanto, quando não é disciplinada pode causar grandes perturbações psíquicas (ansiedade, angústia, mania de perseguição etc.) que podem, em casos extremos, levar a psicose. Mas o que justifica o fato daqueles que exercem a mediunidade em sua plenitude não sofrerem os efeitos negativos desse dom? Antes de responder a essa indagação, convém salientar se de fato a mediunidade oferece riscos à saúde humana. De acordo com Allan Kardec:

221. 2ª O exercício da faculdade mediúnica pode causar fadiga?

O exercício muito prolongado de qualquer faculdade acarreta fadiga; a mediunidade está no mesmo caso, principalmente a que se aplica aos efeitos físicos, ela necessariamente ocasiona um dispêndio de fluido, que traz a fadiga, mas que se repara pelo repouso. (KARDEC, texto extraído da versão eletrônica do Livro dos Médiuns, sem paginação definida)

221. 5ª Poderia a mediunidade produzir a loucura?

Não mais do que qualquer outra coisa, desde que não haja predisposição para isso, em virtude de fraqueza cerebral. A mediunidade não produzirá a loucura, quando esta já não exista em gérmen; porém, existindo este, o bom- senso está a dizer que se deve usar de cautelas, sob todos os pontos de vista, porquanto qualquer abalo pode ser prejudicial. (KARDEC, texto extraído da versão eletrônica do Livro dos Médiuns, sem paginação definida)

Fica claro pelo conteúdo dos trechos acima que a mediunidade só oferece riscos à saúde quando usada de forma exagerada ou inescrupulosa. Portanto, poderíamos dizer que o fato dos médiuns saberem ―desligar‖ a conexão com o mundo espiritual é essencial para a manutenção da sua saúde. Essa constatação responde à indagação proposta no parágrafo anterior e justifica a origem da crença de que o não- aprimoramento das habilidades mediúnicas possa acarretar sérios prejuízos ao equilíbrio psíquico-físico de um indivíduo. Acredita-se que o contato constante com forças e energias celestiais gera um desgaste insuportável para o corpo humano, esse desgaste inevitavelmente traduzir-se-á em doenças e, portanto, o estudo e a prática dos dons mediúnicos são necessários para manutenção de um equilíbrio.