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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

III.3 O consenso religioso

III.3.1 A causalidade

III.3.1.2 Causas Eficientes

Os agentes apontados pelo discurso religioso são bastante diversos: sete diferente tipos de agentes foram citados nas obras consultadas. Esse sete agentes, por sua vez, podem ser divididos em dois grupos: os sobrenaturais e os naturais. No grupo sobrenatural encontramos Deus, santos, demônios, divindades e espíritos diversos como causadores das enfermidades. No segundo grupo, o natural, encontramos como agentes eficazes dos estados mórbidos as condições socioeconômicas (terceiros), os membros da sociedade relacionados com o indivíduo enfermo (terceiros) e o próprio indivíduo enfermo.

Conforme já exposto nos parágrafos acima, embora admita-se a natureza orgânica das doenças, o discurso religioso é capaz de incutir a responsabilidade pelo aparecimento e permanência da doença em um indivíduo aos seres sobrenaturais ou transcendentes. Dada a herança católica do povo brasileiro, não causa surpresa que Deus, santidades do catolicismo popular e outras divindades das religiões afro- brasileiras sejam apontados como agentes das doenças. Essa mesma herança católica legitima a interferência de forças demoníacas no estado de saúde dos seres humanos e as práticas exorcistas são comuns nos meios religiosos (notadamente dos protestantes) que se atêm à essa crença. Já por conta da influência das idéias de Allan Kardec, os espíritos são apontados também como agentes causadores de enfermidades, principalmente no

caso de doenças psicológicas. É interessante observar, porém, que a crença em espíritos e na sua influência sobre os encarnados não se limitou à religião espírita, pois observa- se que cristãos e praticantes das religiões afro-brasileira também reconhecem sua existência.

O maior grau de conscientização política e o maior contato com o saber médico talvez tenham contribuído para que alguns indivíduos das religiões aqui abordadas se dessem conta de que as condições socioeconômicas desempenham papel relevante nas condições de vida e, sobretudo, na saúde. Saneamento básico, alimentação, condições de moradia e trabalho precários são apontados, assim, como responsáveis por doenças diversas. A interferência sobrenatural é descartada nesses casos, mas ainda se roga à Deus e aos santos como meio de se obter ajuda e alterar a dura realidade da vida.

A magia, a feitiçaria, o "mau-olhado", a "coisa feita", o "encosto" e outras denominações povoam o imaginário religioso e, portanto, indivíduos de má índole são apontados como causadores de muitos infortúnios àqueles que despertam seu desafeto, sua inveja ou qualquer outro tipo de interesse. A crença na capacidade de outros seres humanos afetarem, à distância, a integridade física de um determinado indivíduo repousa não na crença em super-poderes, mas sim na crença na habilidade que certos indivíduos possuem de colocarem à seu serviço seres espirituais e "energias cósmicas" despertadas por emoções negativas (raiva, inveja, ciúme, vingança etc.) desses indivíduos. Cristãos, evangélicos e praticantes de religiões mediúnicas acreditam na eficácia dessas habilidades e elaboraram práticas terapêuticas de contra-ataque e defesa contra os agentes sociais supostamente possuidores desses dons. Assim, só para ilustrar, no catolicismo popular a benzedura muitas vezes tem por propósito anular ou dirimir os efeitos negativos do "mau-olhado", o ébo (despacho), no candomblé, é uma importante prática ritual para os indivíduos que se julgam vítimas de ações de terceiros mal intencionados e as sessões de descarrego tornaram-se práticas comuns nos cultos evangélicos.

O último agente destacado nos relatos e textos das religiões aqui analisadas é o próprio indivíduo. A noção de que o indivíduo é o responsável por sua enfermidade permeia todas as religiões aqui estudadas, assim como a noção de que terceiros podem causar mal à saúde desse mesmo indivíduo sem que haja contato físico ou qualquer ato de violência. Esta constatação contraria a suposição de que a responsabilidade dos estados mórbidos pode ser sempre transferida para alguma causa além da vontade da pessoa doente e, assim sendo, isentando essa mesma pessoa de quaisquer tipos de

sanções sociais. Adicionalmente, sob o ponto de vista sociológico, isso nos faz encarar a doença como um processo judicial inverso. Um livro clássico de histórias infantis –

Alice nos País das Maravilhas (1865) de Lewis Carroll – ilustra bem o que é um

processo judicial inverso. Em uma passagem do livro, na qual Alice está sendo julgada pela sua própria inimiga ( a rainha de Copas), o júri contesta os protestos de Alice proclamando: "a sentença primeiro, o julgamento depois!". Seguindo a mesma lógica do magistrado louco, quando o indivíduo é o culpado por seu estado enfermo, a doença corresponde a sentença e o julgamento, ou seja, a apreciação social de sua conduta, somente ocorre após o pronunciamento da sentença. Essa noção de culpa e responsabilidade pelo estado enfermo é devedora de uma tradição judaica cristã que durante séculos moralizou as doenças permitindo que as faltas de um indivíduo pudessem ser supostamente deduzidas a partir das mazelas do corpo. Os riscos desse tipo de concepção das causas das doenças já era apontado nos textos bíblicos do Novo Testamento: a estigmatização, a exclusão e a negação de solidariedade à pessoa enferma. Alheias à esses alertas, as representações sociais das doenças revelam que há mais permanências do que mudanças ao longo de nossa história. Quanto ainda deveremos percorrer para nos livrarmos de velhos conceitos e preconceitos é algo incerto e, talvez, um dos papéis mais importantes da Academia seja pelo menos expô- los e ansiar pelo melhor.

Há alguns autores, entretanto, que acreditam que quando se passa do discurso teológico à sua aplicação prática o indivíduo é sempre considerado vítima. Em outras palavras, as doenças advindas da irresponsabilidade do próprio indivíduo se fundem ao grupo daquelas provenientes das ações de terceiros, reais ou simbólicos, que não são passíveis de controle. O carma, por exemplo, remete a uma responsabilidade tão distante e fora do controle da vontade pessoal que acaba por colocar o indivíduo mais no papel de vítima do que de transgressor de certas regras morais. A ignorância, enquanto carência de conhecimentos que leva à transgressão de certos tabus religiosos e que supostamente traria as doenças como meio de alerta da falta cometida, muitas vezes desperta a piedade e compaixão daqueles que cercam o indivíduo acometido pela doença. Isso ocorre porque esse tipo de violação contrapõe-se à idéia de pecado que supõe uma falta a ser expiada por um sujeito livre e responsável que, se quisesse, de outra maneira poderia ter agido. Mas mesmo no caso dos pecados, em decorrência das fraquezas humanas, o indivíduo é menos culpado e mais vítima de forças cósmicas que escapam à sua consciência limitada. O ser humano é vítima da inexorável batalha entre

o "bem" e o "mal" e a doença é apenas um momento no qual o "mal" prevaleceu, momentaneamente, sobre o "bem". O corpo é o palco desse combate transcendente e, portanto, estará sujeitos aos "efeitos colaterais" dessa disputa.

Essas objeções ao discurso teológico nos faz crer que as religiões, na verdade, podem ser comparadas a uma "lâmina de dois gumes"; em outras palavras, concomitante ao ato de acusação e julgamento (o dedo indicador acusador) vem atrelado a condescendência e absolvição ( a mão estendida em sinal de ajuda). Deixando de lado estas metáforas, mediante uma análise da história comparada das religiões não há porque esperar por uma postura religiosa distinta, haja vista a estreita relação entre saúde e salvação discutida em tópicos passados. Quanto dessas elucubrações é compreendido e assimilado pelos agentes sociais é discutível e carece de estudos empíricos que corroborem sua aplicabilidade, mas ignorar a existência dessas críticas poderia levar a conclusões errôneas, dispares da realidade.