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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

III.2 As interpretações religiosas das doenças

III.2.1 Catolicismo: as doenças sob a ótica bíblica

III.2.1.4 Catolicismo popular: na saúde e na doença, rogai ao santo!

São muitas as nuances da fé cristã e, no Brasil, uma dessas nuances contrasta sobremaneira com as demais: trata-se do catolicismo popular. A Bíblia e sua mensagem, a igreja institucional e o que o padre diz ocupam posição secundária na visão desse grupo de católicos. Isso ocorre porque, de acordo com Alba Zaluar (1983), existem quatro categorias básicas na organização do sistema cosmológico do catolicismo popular, a saber: a promessa, o milagre, o mal de Deus e o castigo divino. Essas quatro categorias constituem ―a base de um sistema fechado para a explicação de acontecimentos percebidos pelos agentes como extraordinários ou incontroláveis‖ (ZALUAR, Alba: 1983, p. 80). O uso e a manipulação dessas categorias permitem o controle desses acontecimentos. Através de suas normas e valores, essas categorias legitimam as relações sociais e expressam a manifestação da vontade divina e a aprovação ou desaprovação dos santos quanto à conduta dos humanos.

É notório que o campo sob domínio de Deus e dos santos no catolicismo popular não se restringe às doenças. A ajuda dos santos é solicitada em todos os acontecimentos em que há elementos de incerteza ou que escapem ao controle humano. A ajuda do santo é obtida mediante o estabelecimento de uma relação de reciprocidade, isto é, uma relação entre seres humanos e santos que engloba uma série de prestações e contraprestações socialmente estipuladas. A idéia de reciprocidade é sintetizada no termo promessa. Uma promessa denota ao mesmo tempo o pedido feito ao santo, a dívida a saldar e a efetivação do pagamento. As promessas enfatizam o sacrifício pessoal do promesseiro e muitas vezes envolvem longas peregrinações a um determinado santuário, além da execução de penitências propriamente ditas: andar de joelhos na cidade do santo, carregar pedras, fazer jejum, raspar a cabeça etc. No ciclo de vida de um indivíduo, a proteção é invocada principalmente nas fases ―liminares‖, por exemplo: no parto, no batismo, no casamento, na doença e na morte, isto é, em ocasiões em que a pessoa atravessa um período de transição de um estado socialmente definido para outro, durante o qual deixa de operar o controle social. Os elementos de indeterminação dessas fases transitórias são dirimidos ao se delegar seu controle aos santos em uma tentativa de ordenar a experiência vivida durante essas fases. Busca-se, em outras palavras, a ordenação da esfera social (real) mediante a interferência da esfera transcendente (espiritual). A manifestação do poder do santo é nesses casos denominada de milagre. O milagre é considerado, para os devotos, como o resultado benéfico da intervenção do santo nos momentos de necessidade e em situações cujo desfecho não é óbvio ou certo em termos de expectativas, antes ou depois da execução de uma promessa. Em alguns casos, acredita-se que a devoção ao santo por si só garante graças ao devoto sem que promessas sejam rogadas.

Embora cientes da amplitude do campo de atuação de Deus e dos santos, nos estudos de Alba Zaluar (1983) sobre o catolicismo popular verificou-se que há entre seus praticantes uma marcante preocupação com as doenças, às quais se atribuem causas sobrenaturais, e os meios de evitá-las ou superá-las. As interpretações das origens dos estados mórbidos situam-se, em geral, em dois pólos distintos: o do mal e o do castigo. A característica principal das doenças classificadas no pólo do mal é que essas são interpretadas como resultado da ação maléfica de uma pessoa contra outra. Quando os métodos da medicina oficial falham ou quando a doença prossegue por muito tempo ou quando há acessos de doença inesperados, a origem da doença é atribuída ao mau-olhado, malfeito, feitiço, quebranto, coisa-feita dentre outros termos

que designam a interferência proposital ou não de indivíduos de má índole no curso natural da doença. Uma análise superficial desse tipo de interpretação da etiologia das doenças pode levar o observador a menosprezá-la, visto que essa interpretação compartilha muito das crenças medievais de bruxaria e feitiçaria, as quais são comumente vistas como formas ―primitivas de pensamento‖ (na plenitude do significado pejorativo que o termo primitivo encera no meio acadêmico). Entretanto, esse sistema de crença possui uma lógica própria que, em linhas gerais, oferece ―uma explicação a posteriori para a ocorrência de fenômenos inesperados e imprevisíveis que revelam pontos de conflito na estrutura social‖ (ZALUAR, Alba: 1983, p. 83). Em outras palavras, esse tipo de interpretação na verdade projeta para uma esfera sobrenatural os significados e tensões das relações da ordem social construída pelos seres humanos. Conflitos de interesse, manipulação e conflito de normas sociais, não cumprimentos de regras moralmente obrigatórias e/ou relações inamistosas e tensas entre indivíduos envolvendo interesses pessoais podem desencadear acusações em que a parte atingida projete a culpa de seu mal ao atrito com a outra parte da relação. Essa forma de interpretação das doenças, quando as acusações são declaradas publicamente, pode resultar no rompimento de relações ou na negação de obrigações sociais consideradas insatisfatórias. Não causa espanto o fato de essas acusações serem geralmente dirigidas a pessoas estigmatizadas e marginalizadas pela sociedade, pois essas pessoas geralmente não contam com o apóio de uma rede de parentes e amigos com os quais trocar favores e obrigações.

No pólo oposto está o castigo, ou seja, a idéia de que a doença é resultado de um castigo enviado pelo ser supremo – Deus – e seus intermediários – os santos. O sofrimento é explicado pela vontade das entidades sagradas e a ineficácia das tentativas mágicas é tida como resultado dessa vontade sobrenatural, a qual não se contesta e tampouco está sujeita à barganha. O castigo, nesse sistema ideológico, é visto sob dois prismas distintos: primeiro, subentende-se que o sofrimento é inerente à condição humana e que, dessa forma, todos estão sujeitos a padecer dos mais diversos males durante a existência terrena e; segundo, está implícita a idéia de que os indivíduos são responsáveis por suas ações e que o sofrimento é uma provação devida pelos que praticam más ações. Dentre todas as más ações possíveis, o catolicismo popular enfatiza principalmente as sanções de auto-sustentação do sistema, ou seja, aquelas vinculadas ao rompimento do equilíbrio entre o santo e os indivíduos. ―O infortúnio presente de alguém é sempre remetido a uma falta contra os santos no passado: falta de respeito,

esquecimento ou quebra de promessa ou, pior ainda, omissão ou escárnio pelas coisas do santo‖ (ZALUAR, 1983, p.85). Tamanha é a importância das obrigações para com os santos que, mesmo quando há falecimento de um indivíduo, os deveres decorrentes de uma promessa, especialmente naqueles envolvendo pedidos de proteção em casos de doença, continuam a valer. Cabe aos parentes mais próximos saldar a dívida para que a alma do falecido logre o merecido descanso. A esse respeito, Zaluar escreve que ―a análise dessas promessas constitui um meio para se inferir o grau de proximidade e a estreiteza dos laços que unem as pessoas que as cumprem, ao mesmo tempo em que elas são, para os agentes, um meio de ativar os laços de solidariedade entre eles‖ (ZALUAR, Alba: 1983, p. 85).

A preocupação com o pecado, a qual é uma idéia que permeia todo o universo cristão, parece não ser relevante no âmbito do catolicismo popular. Os atos de honra ao santo e a obrigatoriedade do cumprimento das promessas sobrepujam a idéia de pecado e, podem inclusive, servir como meios bem mais efetivos de controle social. Por exemplo, as histórias de castigos decorrentes do desrespeito pelo santo incitam fazendeiros e comerciantes a assumirem encargos com as festas enquanto pessoas de maior posse localmente. Em linhas gerais, o sistema do catolicismo popular envolve dois tipos de relação: uma explícita e outra implícita. A relação explícita é aquela entre o santo e o indivíduo devoto e a relação implícita remete as relações das pessoas entre si. As obrigações para com os santos são, nessa perspectiva, obrigações para com os semelhantes. Primeiro, porque para pagar suas promessas e cumprir suas obrigações para com os santos as pessoas se organizam e realizam atividades em conjunto. A realização dessas atividades depende de um esforço coletivo que reforçam os laços simbólicos de união dos seres humanos, união essa que é mediada pelo santo da comunidade. Em segundo, porque num plano simbólico a relação entre o devoto e o santo reproduz relações sociais idealizadas de proteção e segurança, tal como pai (protetor e provedor) e filho (carente e dependente). A realização das festas em homenagem aos santos incorpora essa noção: cabe, em geral, aos indivíduos de maior posse o provimento de recursos para a concretização da festa. Esse ato acaba se tornando uma forma de legitimação da ordem social revelando as redes de solidariedade e a divisão na estrutura social da comunidade devota, além de constituir ―uma oportunidade para a competição pelo prestígio e para expressar simbolicamente a unidade e os conflitos inerentes a essas relações sociais estabelecidas‖ (ZALUAR, Alba: 1983, p.95).