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I. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS

III.3 O consenso religioso

III.3.1 A causalidade

III.3.1.3 Causas Conjecturais

A obtenção de respostas para as três primeiras indagações do diagnóstico de uma doença, em muitos casos, é seguida por uma última questão – por que? – que complementa e dá sentido ao quadro geral. Sociologicamente, julgo que essa questão seja a mais importante, pois é capaz de revelar valores e princípios culturais de uma dada sociedade. Adicionalmente, as resoluções apresentadas em decorrência desse questionamento ajudam a elucidar tanto o comportamento do indivíduo enfermo quanto a reação social (resignação, apatia, solidariedade, revolta etc.) daqueles diretamente ligados à esse indivíduo. Em nosso cotidiano, essas nuances não são tão nítidas, mas quando nos movemos para o espaço religioso é possível, em teoria, lançar luzes sobre essas particularidades.

Sete foram as causas conjecturais destacadas pelo discurso religioso, a saber: punição, provação (incluindo o carma), má conduta (comportamentos reprováveis socialmente), magia, mediunidade, fatores emocionais e socioeconômicos. Vale ressaltar que as causas conjecturais decorrem das duas primeiras causas analisadas, ou seja, há uma relação direta entre meio, agente e finalidade da doença.

Comecemos discutindo a noção de doença-punição, a qual é muito valorizada pelas religiões cristãs. As escrituras sagradas dessas religiões, bem como o discurso de seus seguidores indicam um alto grau de absorção dessas idéias. Teologicamente, essa

representação encontra seus fundamentos na suposta relação de troca entre seres humanos e Deus, ou seja, Deus premia ou castiga os seres humanos de acordo com as ações desses últimos. Dentro desse sistema lógico, as boas ações e o respeito aos princípios doutrinários são recompensados por Deus com a saúde, a manutenção e prosperidade das posses e a vitória sobre os inimigos dentre outras dádivas. Já o comportamento pecaminoso e as más ações de forma mais geral são repreendidas imediatamente com males físicos de todas as sortes. Os textos bíblicos forneceram as idéias básicas desse tipo de representação social, embora saibamos que os textos bíblicos reproduzam muito das crenças de religiões mais antigas30, bem como dos costumes e valores das primeiras comunidades judaicas. Quando se trata do catolicismo popular, observa-se que essa idéia foi reformulada, mas em essência compartilha da mesma noção: a capacidade de seres transcendentes interferirem na ordem material e afetarem diretamente o corpo e a saúde humana. Os santos, entidades divinas hierarquicamente inferiores a Deus, possuem a habilidade de recompensar ou castigar devotos e/ou descrentes tal como o Deus Javé dos relatos bíblicos.

A doença-provação, por sua vez, decorre exatamente da mesma visão exposta no parágrafo anterior, ou seja, da crença na capacidade que seres transcendentes teriam de influenciar diretamente o plano físico, material. O propósito dessa interferência, entretanto, é bastante distinto. A doenças antes vista como uma punição pelas faltas passa a ser encarada como uma prova da fé do indivíduo acometido pelos males físicos. A doença configura-se como eleição e oportunidade para evolução e fortalecimento espiritual (o carma, para os espíritas, por exemplo). Os relatos bíblicos levam a crer que se trata do sofrimento dos justos (o caso de Jó, por exemplo) e os discursos contemporâneos ainda são devedores dessa concepção. Entender os processos mórbidos como carma ou como uma prova de caráter divino oferece aos indivíduos enfermos uma justificativa que leva indubitavelmente à resignação e acomodação em virtude da impossibilidade de reversão dos quadros clínicos de doenças congênitas ou crônicas.

A terceira causa conjectural destacada pelos discursos é a má conduta do indivíduo. Antes de tudo, é importante salientar que em decorrência do fato de o

30 Essa afirmação é baseada na suposta relação entre a Bíblia e o poema épico da antiga Babilônia

denominado Enuma Elish. Esse poema, escrito em sete tábuas de argila que foram descobertas no século XIX nas ruínas da biblioteca de Assurbanipal, atualmente localizada na cidade iraquiana Ninive, narra o mito da criação. Estima-se que essas tábuas de argila são do século XII a.C. e que podem refletir idéias ainda mais antigas provenientes da civilização sumeriana. A incontestável semelhança com a narração bíblica do Gênesis fez surgir inúmeras discussões sobre qual das histórias é uma adaptação à religião em causa.

indivíduo ser designado como agente dos processos mórbidos em todas as religiões tratadas, o seu comportamento é utilizado, da mesma forma e nas mesmas proporções, para explicar a origem do mal que o acomete.

A má conduta dentro do quadro religioso cristão pode ser entendida como pecado, ou seja, a violação de uma lei ou de princípios religiosos, éticos ou normas morais. O pecado para os cristãos pode ser cometido por meio de palavras, ações ou por negligência e omissão (deixar de fazer o bem). Em suma, o pecado é um ato e não um estado do ser. Vale ressaltar que para as religiões de cunho mediúnico (espiritismo e religiões afro-brasileiras) a má conduta distancia-se da noção de pecado cristão. Para essas religiões a má conduta pode ser resultado da ignorância dos preceitos religiosos, ou seja, é em muitos casos uma violação não-intencional e desapercebida de princípios religiosos. O pecado diferentemente é uma ação premeditada e intencional, ou seja, o indivíduo tem ciência de que seu ato é reprovável e, se o quisesse, poderia não cometê- lo. Embora a terminologia cristã não seja empregada tal como é concebida no seu meio de origem, as religiões mediúnicas não descartam que algumas má ações podem ser levadas à cabo intencionalmente pelo indivíduo com o intuito de lesar ou obter benefícios ilícitos.

Sociologicamente, a má conduta configura-se como um ato desviante, ou seja, uma ação individual que contraria os valores e princípios de uma determinada comunidade, em um dado período histórico, e que; portanto, está sujeita à sanções por partes dos demais agentes sociais. A união dos dois conceitos de má conduta, o religioso e social, permitiu a permanência de representações sociais da doença calcadas na idéia de que o comportamento individual deixa o corpo mais ou menos exposto às ações nefastas do plano espiritual, transcendente ou cósmico que podem ser desencadeadas por Deus(es), demônios ou espíritos. Assim, a doença aparece sempre como resultado da ação espiritual em um corpo "enfraquecido" pelo vício, pelo pecado ou pela violação de qualquer regra religiosa ou moral. Vale lembrar que atitudes de descrença ou escárnio dos símbolos religiosos também são taxadas como má conduta passíveis de sanções de caráter fisiológico.

A crença em magia e/ou feitiçaria aparece também como explicação da origem das doenças. Os evangélicos (neopentecostais) e os praticantes dos cultos afro- brasileiros acreditam que existam indivíduos capazes de fazer uso de energias, forças ou seres sobrenaturais para promover distúrbios de todas as sortes na vida de uma pessoa. A prática de magia negra para os evangélicos está, em geral, vinculada aos praticantes

dos cultos afro-brasileiros e, portanto, as acusações são dirigidas tanto aos seus praticantes quanto às divindades cultuadas por esses grupos religiosos. Comumente, segundo a interpretação religiosa, as mazelas do corpo são atribuídas à ação de um "encosto", o qual é supostamente um demônio ou espírito inferior invocado por alguém que pratica magia negra. Motivado por sentimentos negativos (raiva, rancor, inveja etc.) ou interesses pessoais diversos, o feiticeiro supostamente comanda esses seres que se acercam dos seus alvos e influem negativamente no seu comportamento, na sua mente e/ou no seu corpo. Embora o espiritismo rejeite a noção de goécia desses grupos religiosos (na questão 552 do Livro dos Espíritos as pessoas que crêem nesses pretensos poderes mágicos são taxadas de supersticiosas e ignorantes das leis da natureza), admite-se a influência dos espíritos por meio da transmissão de energias aos encarnados. Seguindo a mesma lógica espírita, no catolicismo popular é mais comum se ouvir a respeito do "mau-olhado" ou "olho gordo" ou "quebranto", o qual é supostamente uma energia negativa transmitida de uma pessoa para outra. Acredita-se que alguns indivíduos, motivados pela cobiça ou inveja ou "apego excessivo", sejam capazes de ocasionar a degradação de situações de prosperidade de outros por meio do "mau-olhado". Sensações de mal estar, doenças cuja duração prolonga-se para além das expectativas, revés financeiro dentre outros acontecimentos são geralmente atribuídos à este fenômeno, por exemplo.

A mediunidade também aparece como explicação última das doenças. A mediunidade ou faculdade psíquica que permite a interação com o plano de existência espiritual, para os espíritas e praticantes dos cultos afro-brasileiros, pode explicar a origem das doenças de duas formas distintas. A primeira, está relacionada ao desenvolvimento desta capacidade. Sendo considerada um dom inato, cabe ao indivíduo desenvolvê-la para evitar os malefícios decorrentes de uma exposição e contato prolongado com forças e energias cósmicas, espirituais. A segunda, está relacionada ao mau uso dessa capacidade. Faz parte do sistema de crenças dessas religiões que aqueles que fazem uso indevido dessa capacidade podem sofrer efeitos colaterais negativos. O uso indevido da capacidade mediúnica é entendido como o contato com espíritos ou entidades de ordem inferior com o propósito de obter benefícios ilícitos para si próprio ou para alguém mediante o prejuízo de outrem. A doença, em ambos os casos, é apenas um sintoma de uma influência espiritual negativa derivada da ignorância ou da violação moral de preceitos doutrinários.

Uma vez que há, sob o ponto de vista das religiões mediúnicas, uma estreita relação entre corpo, mente e espírito, as emoções ou aspectos da personalidade de um indivíduo são utilizados para explicar a causa dos males físicos e infortúnios da vida. As representações dessas religiões reconhecem o caráter endógeno ou psicossomático de algumas doenças. A neurose, a depressão e outros tipos de expressão dos sentimentos humanos (raiva, ansiedade, mágoas dentre outros) considerados negativos são utilizados para explicar processos mórbidos de natureza fisiológica ou psicológica. Os praticantes das religiões mediúnicas crêem que esses problemas psicológicos e emocionais, em última instância, deixam o corpo suscetível à uma maior influência negativa espiritual que, por ventura, materializar-se-ia em algum tipo de enfermidade.

O discurso de protestantes e praticantes das religiões afro-brasileiras a respeito das doenças revela algumas idéias provenientes da medicina social, ou seja, são algumas vezes marcados pela noção da influência de fatores socioeconômicos nos processos de debilidade física. As doenças são explicadas pelas condições materiais de existência, tais como: o tipo de trabalho, a moradia, o saneamento básico, a alimentação, o acesso a serviços públicos básicos dentre outras questões sociais. As condições precárias de moradia, a baixa renda familiar, a falta de alimentação e as condições insalubres de trabalho são apontadas como principais causas de diversas enfermidades. É importante mencionar que embora essas religiões sejam capazes de destacar a influência das condições sociais na saúde de seus membros, pouco ou nada é feito para mudar as condições socioeconômicas responsáveis pelas mazelas que acometem os indivíduos de baixa renda. É inegável que algumas instituições religiosas oferecem apóio aos mais necessitados sob diferentes formas (distribuição de cestas-básicas, realização de bazares, doações diversas etc.); porém, as ações políticas são, geralmente, descartadas e muitas vezes o que se oferece é uma resposta religiosa/espiritual para solucionar problemas concretos da existência humana: as diferenças de distribuição de renda e classe.