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Capital cultural, desigualdade e diferença

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 36-38)

Daniel Bertaux (1978) definiu o capital em termos de uma relação social, que é transmitida e assumida pela posse de recursos e disposições, por via das relações interpessoais e institucionais existentes. Ou seja, o capital – pese embora o teor económico enunciado pelo autor francês – enuncia-se como um recurso dinâmico que pouco ou nada significará em estado “morto”. Dos vários tipos de capital existentes, interessa, sobretudo, focar o capital cultural e o social, pois são estes que tornam clara a relação que, quer o conhecimento, quer os laços sociais, assumem perante o fenómeno de (in)sucesso escolar. É importante começar por falar no capital cultural, ficando o capital social para um ponto posterior.

Por outro lado, para Bourdieu (1974 in Nash, 1990), a cultura é um sistema de significados organizado por princípios geradores. Ora, a posse de capital cultural, entre outros, determina – em diferentes graus e contextos – as estratégias e os investimentos das famílias em relação à Escola, colocando-as, claro está, em pé de desigualdade no que concerne à rigidez imposta pela cultura legítima difundida por essa instituição social. Uma das estratégias familiares normais em relação à transmissão de capital cultural reside na criação de bases sólidas em termos comunicacionais. Assim, “condenado a viver no estado incorporado” (Abrantes & Amândio, 2014: 14), pois só assim se manifesta como vantagem para quem o possui, é no portador deste tipo de capital – nomeadamente a família nuclear – que reside a responsabilidade da sua transmissão, sendo que diferentes modalidades de socialização traduzem-se em modos diferenciados de transferência.

Em suma, o capital cultural refere-se ao tipo de linguagem, orientações, atitudes e esquemas de perceção que são transmitidos à criança por via da socialização familiar e comunitária (Bourdieu, 1973, 1977, 1992; Bourdieu & Passeron, 1977 in Pitsoe & Letseka, 2013) ou, por outras palavras, à familiaridade existente com a cultura dominante da sociedade e à capacidade de compreender e fazer usufruto de uma linguagem educada (Sullivan, 2002) – código elaborado. Este tipo de capital pode existir em três formatos diferenciados: 1) incorporado; 2) objetivado e 3) institucionalizado. O capital cultural incorporado diz respeito a disposições duráveis do corpo e da mente, nomeadamente, a linguagem, a cultura ou a relação com a Escola; por sua vez, o objetivado enuncia os bens materiais à mercê de serem incorporados, como livros, enciclopédias e outros objetos culturais; por último, o capital cultural institucionalizado comporta os títulos e os certificados académicos obtidos (Seabra, 2009).

Posto isto, é importante realçar a importância da passagem de um capital cultural morto (objetivado) para um capital cultural incorporado, pois as desigualdades sociais, mais do que as diferenças, visam a vertente dinâmica que irá tornar um determinado bem desejável e, por via disso, legítimo (Lahire, 2003, 2008). Quem é que, afinal, define a cultura objetiva desejável? Serão, por certo, as elites. Assim, estas elites tentarão ao máximo dificultar o

crescente competição para almejar esse capital – o caso do diploma, assumindo o formato cultural institucionalizado -, tenderá a desvalorizá-lo. Esta é a prova em como ao aluno não basta possuir capital cultural para ter um percurso escolar positivo. É, acima de tudo, necessário que esse capital seja incorporado através das disposições, comportamentos e estratégias familiares consentâneas com as expetativas veiculadas pela cultura dominante materializada no contexto escolar.

Falar em desigualdades pressupõe tratar algo que emerge de uma mesma natureza. De facto, só se começou a falar em desigualdades quando alunos de diversos e antagónicos quadrantes sociais partilharam o mesmo espaço escolar. Até então, fora das lides educativas, as classes subalternas eram vistas com diferença ou indiferença pelas classes que compunham o padrão escolar – a elite. Quanto à indiferença, esta pode ser olhada, relativamente à diferença, como sendo um ato que a redefine, que a ignora ou que a despreza (Barros, 2006). Tratar a indiferença, tal como toda a discussão em torno da inclusão (Schilling & Miyashiro, 2008), revela-se um ato bastante ambíguo. Por um lado, pode comportar um sentido que relativiza a diferença em si própria, como por exemplo, no contexto em que os professores agem com indiferença perante o mau comportamento, quer do aluno aplicado, quer do aluno desleixado – castigando os dois em igual medida; pode, também, presumir uma explicação que ignore a diferença, quando o professor não toma uma atitude pedagógica positiva para com o aluno – cuja família revela pouco investimento escolar - que revelou dificuldades no último teste; por último, assume um sentido de desprezo, quando o professor – mesmo ciente da injustiça da situação – exclui da participação na sala de aula o aluno que tem mais dificuldade em verbalizar o conteúdo da matéria. Nos dois últimos casos, o âmago da questão está na consciência (ou falta dela) que o professor exibe face à injustiça que perpetua na sala de aula, ora ignorando, ora menosprezando. Por conseguinte, reside no ganho de consciência, quer de dominante (professor), quer de dominado (aluno), a transformação das diferenças em desigualdades escolares.

Esta transformação não acontece no vazio. Segundo Lahire (2003, 2008), o momento histórico que passou a definir a desigualdade escolar em termos opostos aos da diferença emergiu quando o “grau de desejabilidade coletiva” amplo face ao diploma, o tornou num capital altamente apetecível para a maioria da sociedade. Assim, quanto mais a sociedade acredita na legitimidade de um determinado canal de conhecimento, de um saber, de uma prática ou de um bem, maior será o sentimento de injustiça quando a distribuição desses bens ou saberes se revela desigual pelo todo social. Dirigindo a ideia do autor francês para esta investigação, só se pode referir que as desigualdades sociais se reproduzem na Escola sob a forma de desigualdades escolares, quando, quer as diferenças de rendimento escolar, quer as diferenças interclassistas, se transformam num verdadeiro handicap para o aluno – uma vantagem para o que detém capital cultural consentâneo com a cultura escolar e uma desvantagem para o aluno cuja variante cultural não coincide com a cultura difundida na/pela Escola. Em resumo, como defende Barros (2006), enquanto a diferença emana do

mundo natural humano, não podendo ser erradicada por via da ação do Homem, a desigualdade, por seu turno, indica uma contradição e tem sempre uma componente relacional reversível. Por outras palavras, “tem-se” desigualdade ou “está-se” de forma desigual em relação a algo ou alguém e “é-se” diferente de algo ou alguém. O “ter” e o “estar” evidenciam a componente relacional, onde a comunicação, os jogos de poder e a consciência assumem o papel principal. Por outro lado, o “ser” é mais estático e permanece no campo semântico das diferenças.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 36-38)