• Nenhum resultado encontrado

Violência simbólica: Oferta vs controlo

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 45-47)

Os estudantes de origem social inferior, não obstante o conflito permanente com a cultura dominante difundida no sistema de ensino, veem-se na obrigação presente – tal como na futura, enquanto adultos – de “manter relações com organizações de serviço, não só públicas como comerciais, onde se supõe que prevaleça um tratamento cortês, uniforme (…) onde surgirão oportunidades para uma preocupação com as valorações expressivas hostis baseadas num ideal virtual de classe média.” (Goffman, 1988: 157). Existe uma predeterminação societal que, desde tenra idade, coloca estes indivíduos numa espiral negativa de desvantagens face às instituições sociais, dentro das quais desempenham o seu papel social – sendo este determinado consoante o grau hierárquico conferido ao seu grupo social –, tal como foi evidenciado previamente, ao falar-se da importância do capital social como um recurso singular ao dispor de cada família.

Face a essa realidade, o aluno com uma desvantagem social e cultural de origem, vê-lhe ser sonegada a consciência cultural que aprendera em casa, no seio familiar, uma vez que esta não se encontra enquadrada com as exigências pedagógicas educativas. É, assim, nessa conjuntura que emerge a violência simbólica (Paugam, 2003). Este tipo de violência - mais do que pressupor a perda dos referentes culturais e a incorporação da cultura legítima – acomoda as classes inferiores à superioridade e legitimidade da cultura dominante (Bourdieu, 1992 in Nogueira & Nogueira, 2002) e, além disso, tende a escamotear das suas consciências as desigualdades associadas à escolaridade (Pitsoe & Letseka, 2013). A violência simbólica, ao invés da física, trabalha na criação de crenças, regras e diretrizes no âmago social e, concretamente no contexto escolar, é observável, quer no tratamento ambíguo concedido aos alunos, quer nos conteúdos programáticos que privilegiam as classes dominantes que, à partida, já possuem e manuseiam esse referencial cultural (Tiradentes, 2015).

Na Escola, segundo Rodriguez (2010), a violência simbólica é exercida por meio de quatro mecanismos que se vão articulando para a legitimar. São eles: 1) a ação pedagógica; 2) a

autoridade pedagógica; 3) o trabalho pedagógico e 4) o sistema de ensino. Em primeiro lugar, a ação pedagógica produz o seu efeito por uma via comunicativa e nunca coerciva, onde os grupos de interesse criam um quadro organizativo facilitador da imposição e da inculcação de disposições, regras, normas e valores próprios das classes dominantes. De seguida, a autoridade pedagógica remete para a autonomia que o aparelho de educação tem para exercer a violência, uma vez que é a personificação da própria cultura dominante. Em terceiro lugar, ao trabalho pedagógico cabe a função de manutenção da ordem, lembrando aos alunos oriundos da variante cultural dominada que a sua cultura é ilegítima face ao que é veiculado pelo sistema de ensino. Este trabalho é exercido e personificado pela figura do docente na sala de aula. Por último, o próprio sistema de ensino produz e reproduz, através do corpo diretivo e docente, as condições institucionais de alienação da violência ideológica que exerce. Essa alienação é, em certa medida, uma submissão voluntária que requer do aluno desprivilegiado uma determinada conformidade em relação à Escola – sendo esta um dos aparelhos ideológicos do Estado (Daldal, 2014). Curiosamente, a própria família inculca, desde cedo – na socialização primária -, mecanismos de disciplina na criança, que serão interiorizados e levados para o contexto escolar, tornando-a também (à família) num dos aparelhos ideológicos ao serviço do Estado na preservação do status quo.

Assim, a própria família, integrada em ”locais e instituições legítimas” (Lahire, 95: 336), contribui para a conversão e aculturação dos seus descendentes na “arena” escolar, através da inculcação de disposições e de um ethos – o habitus familiar – no aluno, para que este se acomode às regras próprias da Escola. Quando Foucault (Saldana, 2013) sustenta que qualquer indivíduo exerce e sofre poder nas relações sociais – onde o poder é omnipresente e omnipotente -, facilmente se depreende como a família está sujeita a essa relação – poder ideológico da cultura dominante. Todavia, não só está sujeita, como a reproduz, por via da transmissão a cada membro, nomeadamente aos mais novos, sujeitos à socialização (que não é mais do que o exercício de poder conferido pela sociedade civil à família, na docilização dos seus membros face à cultura dominante, quer integrem ou não a franja dominante da sociedade).

Face ao contexto educativo, a interação que a família e a Escola mantêm é baseada sempre na dicotomia oferta-controlo – uma oposição que radica, aliás, na própria essência da Lei que, ao serviço do Estado, determina as atitudes certas e erradas dos indivíduos na sociedade (Daldal, 2014). Em virtude disso, quando uma instituição escolar oferece serviços educativos – na forma de conteúdos programáticos – aos alunos, exige sempre algo em troca. A componente condicional aparece sob a forma de controlo social, que pressupõe sempre a posse de poder (Walgrave, 2000). Contudo, quando a balança entre a oferta e o controlo cai tendencialmente para um dos polos, torna-se complicada a instalação de um sentimento comunitário na Escola. Bernstein (1961) explica que o controlo social acontece, não raras vezes, sob a forma de punição física. Esta situação é provocada, segundo o autor inglês, pela dificuldade de fazer compreender verbalmente a estes alunos onde falharam em termos

escolares ou comportamentais. Uma situação oposta à daqueles alunos possuidores de uma linguagem formal, mais capazes de captar a mensagem. Pode-se, assim, compreender como é que apesar de oferecer a todos os estudantes – em termos teóricos – as mesmas oportunidades, nem todos sofrem na Escola o mesmo nível de controlo em termos pedagógicos. A Escola aparenta beneficiar todos os alunos com uma oferta educativa formatada e unívoca, sabendo de antemão que nem todos serão vítimas do mesmo tipo de controlo e, ademais, que este será aceite de forma diferenciada por alunos cujo ambiente familiar e comunitário cria disposições escolares opostas.

Goffman (1988), ao desdobrar o controlo social em formal e informal, demonstra como os alunos das classes dominadas parecem estar sujeitos a ambos – dentro e fora do contexto escolar -, enquanto os alunos das classes dominantes parecem apenas ser vítimas de controlo social informal – fora do perímetro escolar -, uma vez que dentro da Escola agem em conformidade e não estão em “quarentena”, como os alunos que revelam mais dificuldade de adaptação e integração. Desta forma, aos alunos portadores de um código restrito (Bernstein, 1964), é-lhes exigido o máximo empenho, para que não se transformem num fardo dentro do sistema de ensino. Muitas das vezes, esse controlo sistemático, ao invés de fazer com que os estudantes enveredem na componente programática escolar, apenas os afasta e os “arrasta” dentro da escola. Esta imagem hiperbólica cria uma dimensão quase totalitária – de instituição total (Botello, 2008; Lahire, 1995) - dentro do contexto escolar, onde se produz e reproduz a ideia de que “já que o aluno não se consegue integrar, deixemo-lo vaguear pelos corredores da instituição escolar, pois ele próprio acabará por desistir”. Nas palavras de Goffman (1988: 133), trata-se de uma “aceitação-fantasma” que irá incitar uma “normalidade-fantasma”, provocando uma “normificação” (1988: 40), ou seja, o aceitar da condição inferior por parte do próprio aluno “excluído do interior”.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 45-47)