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Socialização e laços sociais

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 31-33)

A família tem sido considerada a instituição social cujo papel na socialização primária do indivíduo é mais preponderante. Nela, as condições de existência são incorporadas pela criança através da especificidade - um habitus - que comporta disposições duráveis para que esta possa mediar a sua experiência social. Porém, mais tarde, além da família, existem contactos desenvolvidos com grupos sociais que podem permitir ao aluno ter acesso a contextos e referências mais próximos aos do sistema de ensino. São laços desenvolvidos com professores, com outros familiares alheios ao quotidiano do lar (da família nuclear) ou com alguém que desenvolve condutas convergentes em relação ao sucesso escolar – socialização secundária (Roldão, 2012).

Num primeiro momento, é a convivência com os seus progenitores que permite à criança assumir como normativos determinados comportamentos e adquirir consciência das atitudes e dos papéis sociais que são expetáveis. Os momentos de rutura organizativa, de redefinição de metas e de recalibração estratégica, estão e são definidos no chamado “ciclo vital da família” (Dias, 2011). Em cada família existem determinados momentos marcantes onde, quer a sua estrutura, quer o aspeto funcional sofrem mudanças drásticas – como sejam o casamento, o nascimento do primeiro filho ou a entrada deste na escola. A aprendizagem social e cultural adquirida pela criança em contexto familiar é, mais tarde, extrapolada para outros contextos, nomeadamente para o domínio escolar. Não é um papel passivo, mas sim uma aprendizagem filtrada pela própria criança, através da sua perceção (Morgado, Dias & Paixão, 2013). A socialização é, como sublinha Corsaro (1997 in Müller, 2008), uma “reprodução interpretativa”, onde, por um lado, a estrutura social - através do ambiente familiar – inculca regras, normas e valores na criança e, por outro, permite-lhe conferir algo seu à realidade, através da sua perceção relativamente à mesma. Para este nível de socialização intersubjetiva contribui mais a qualidade das relações familiares – onde a harmonia, o diálogo e a empatia estão presentes -, do que a estrutura familiar propriamente dita, tal como Morgado, Dias e Paixão (2013) demonstram no seu estudo. As bases para a integração social dos filhos começam no contexto embrionário familiar, sendo este uma causa dos valores inculcados nas crianças e das disposições familiares propriamente ditas.

A despeito da autonomia existente para tornear as diretrizes sociais, uma perspetiva mais rígida defende que a socialização é um processo através do qual indivíduos apreendem as expetativas que lhes são dirigidas, consoante o seu papel nas relações sociais, o que lhes irá

permitir tornarem-se membros da sua cultura. Todo o rol de práticas e comportamentos é, nesta perspetiva, normativo e explicado pela própria cultura (Nash, 1990). A identidade de cada indivíduo é, segundo esta conceção de socialização, uma expetativa comportamental internalizada (Carter & Fuller, 2015). Todavia – e voltando ao caráter ativo da socialização – no estabelecimento de ensino, o aluno não evidencia plenamente a socialização que recebeu em casa. Vai-se socializando no novo ambiente, consoante a sua família, o seu grupo de pares e a sua comunidade se relacionem com a cultura dominante da sociedade (Walgrave, 2000), reproduzida nesse mesmo ambiente escolar. De facto, e muito influenciado por uma segregação escolar que se mistura, em grande medida, com a segregação residencial e social, vigente nas cidades (Room & Britton, 2006), o aluno vê-se confrontado com uma socialização ambígua dentro e fora da escola que pode ser caraterizada como uma “socialização periférica” (Van Zanten, 2005). Deste modo, às desvantagens registadas por residir num contexto comunitário culturalmente desfavorável, onde a cultura legítima se encontra desenraizada, juntam-se desvantagens causadas por esse fator - uma comunidade homogénea em termos sociais, culturais e económicos, incapaz de se integrar e ser integrada na cultura dominante:são exemplo disto, os bairros sociais nos meios urbanos.

Face a esta ambivalência na socialização, podem-se distinguir dois tipos de laços sociais: os que ligam pessoas na mesma posição em termos de hierarquia social e os que interligam pessoas de diferentes parâmetros sociais. Segundo Perri 6 (1997 in Room, 1999), as políticas sociais concentram os seus esforços em promover os laços do primeiro tipo, comprometendo o sucesso daquelas pessoas que projetam a saída da zona de vulnerabilidade social para uma zona de integração plena. Seria, assim, benéfico fornecer oportunidades – ou escadas, na categorização de Room (2000) – aos alunos que atravessam dificuldades na trajetória escolar, aproximando-os do saber transmitido pela instituição de ensino. Esse contacto seria promovido, por exemplo, refreando a segregação escolar que é por demais evidente em determinadas instituições de ensino, onde existem turmas que são divididas tendo por base o aproveitamento escolar e, de forma mais proeminente, a situação socioeconómica do agregado familiar. Dessa forma, incentivando os laços sociais entre alunos com dificuldades escolares – aqueles, à partida, oriundos de famílias com menor posse de capital cultural, social e económico – e alunos com mais à-vontade no contacto com a cultura escolar – provenientes de famílias onde a Escola é um prolongamento da socialização familiar -, aos primeiros seria dada a oportunidade de ter um contacto mais próximo com o grupo visto e tido como o exemplo manifesto do trajeto escolar “limpo”.

Com as possibilidades de saída da “zona cinzenta” aumentadas por via da promoção do segundo tipo de laços sociais, o risco de “dessocialização” (Paugam, 1999; 2003) diminui em larga escala. O aluno em dificuldades pode entrar numa trajetória escolar ascendente ao interagir com maior frequência com alunos que já se encontram nesse percurso – pese embora a menor necessidade de esforço despendido por estes últimos, como será reforçado mais adiante, quando se analisar a questão dos capitais. Tal como se pode constatar, e apesar do

foco que Paugam e Castel concedem ao emprego e à quebra do vínculo laboral, os paralelismos entre a vulnerabilidade social do trabalhador e a vulnerabilidade a que está sujeito o aluno de classe mais baixa são evidentes – ou não fosse a primeira muito explicada pela segunda. A “vulnerabilidade das massas” (Castel, 1998 in Miguel, 2015) tem a sua causa no ideário da massificação do ensino que, como já foi sublinhado, inclui e exclui na mesma medida. A reduzida exclusão social do passado justificava-se pelo menor acesso ao ensino; enquanto a excessiva exclusão social atual se conjuga através de uma definição errónea de igualdade perante e durante o tempo de escolaridade.

Não obstante o facto de os laços sociais e o sentido comunitário serem um dado adquirido no passado, não se justificando, por isso, o uso do termo de inserção social, pois a quebra do vínculo laboral acontecia somente de forma residual, hoje em dia, devido à vulnerabilidade massificada – laboral e escolar -, a inserção substitui a integração como força motora dos desígnios sociais e da coesão social (Queloz, 2000). Deste modo, vem à tona não só o vínculo laboral, mas – acrescendo a esse facto – também as relações sociais que, muitas das vezes, amparam o infortúnio profissional do indivíduo.

Em termos escolares, agir, a jusante, sob a égide da inserção, é operar numa zona onde a vulnerabilidade é já de tal ordem significativa que, ao mínimo toque, a escada resvala e compromete o acesso ao passaporte que permitiria ao aluno singrar academicamente. Por outro lado, a ação sobre a integração, numa etapa inicial, libera os amortecedores necessários para que o aluno, a despeito da condição familiar menos privilegiada, não caia no ninho de serpentes, que é um indicador da incapacidade para ser bem-sucedido no sistema de ensino. Ora, esse desfavorecimento social irá repercutir-se nos anos vindouros, aquando da entrada no ciclo laboral, demonstrando como o paralelismo entre sistema de ensino e mercado de trabalho não é estéril nem descabido.

A terminologia criada por Room (2000), abordada no parágrafo transato, emerge da necessidade de evidenciar a importância das trajetórias pessoais e familiares na explicação da integração plena – ativação de oportunidades -, por um lado, e da exclusão social – proteção deficitária perante vulnerabilidades -, por outro. Assim, o autor transmite uma ideia dinâmica de trajetória social que será útil nesta investigação, uma vez que os parâmetros escolares não se podem dissociar de todo o espetro social – aluno e família encontrarão escadas, passaportes, serpentes e amortecedores dentro do âmbito escolar, sendo que cada elemento da alegoria influirá no trajeto escolar, consoante o nível de disposições e recursos culturais, sociais, económicos e pessoais existentes em cada contexto familiar, escolar e individual, num “jogo” constante de interações.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 31-33)