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Sala de aula: Expetativas e discriminação positiva

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 43-45)

Um dos fatores determinantes para a explicação do (in)sucesso escolar reside no grau de expetativas inicial que o professor tem em relação a cada aluno. O primeiro irá esperar do segundo um comportamento adequado e um grau de comprometimento com valores, códigos e conteúdos difundidos na sala de aula. Todos aqueles que não seguem este modelo de integração são, como Queloz (2000) sublinha, conotados pelo professor como desviantes. Ora, esta expetativa inicial do professor revela-se mais negativa face a alunos de meios sociais mais desfavorecidos. Os docentes “estimulam-nos menos e são menos tolerantes em relação a eles” (Walgrave, 2000), além de lhes apontarem caraterísticas de indisciplina dentro da sala de aula, onde tendem a perturbar os colegas que querem, na visão dos professores, aprender. Deste modo, o sistema escolar – personificado na figura do professor – tenta sistematizar dentro da sala de aula aquilo a que Gomes (1987) define como “cliente ideal”. Dada a heterogeneidade provocada pela massificação do ensino, os professores deparam-se com uma acentuada diversidade social e cultural no seu domínio, o que acaba por lhes criar desconforto em termos pedagógicos. Em virtude dessa questão, os docentes rotulam os alunos consoante o grau de afastamento destes em relação a esse ideal pedagógico, tentando não se desviar muito das suas perceções formativas iniciais. Analogamente a esta conceção de aluno ideal, em relação aos estudantes que revelam maiores dificuldades académicas, os professores não aceitam – sem que antes se interroguem a si próprios - uma presumível melhoria dos seus resultados, já que tendem a atribuir esse trajeto ascendente do aluno a fatores exógenos à pedagogia que materializam na sala de aula. Articulando com os contributos de Erving Goffman (1988) - no seu preâmbulo pelo estigma -, é expectável do aluno que revela dificuldades iniciais (o aleijado, o incapacitado ou o indefeso, fazendo uma analogia com a categorização do autor) um tipo de comportamento consentâneo com o grau inicial de expetativas gerado pelo professor. Tudo o que não corresponda a esse juízo inicial é assumido com desconfiança pelos ditos “normais”, ou seja, por aqueles que interiorizam a pedagogia e a imagem de cliente idílico, suportando, desse modo, as atitudes dos docentes na sala de aula para com os alunos.

Porém, a sala de aula é um ambiente propício à negociação incessante entre aluno e professor. As perspetivas dessa interação moldam, e muito, os resultados escolares preditores

de um percurso de (in)sucesso, uma vez que as perceções que o professor tem em relação ao grau de comprometimento educativo do aluno revelam, indiscutivelmente, o tratamento despendido pelo primeiro em relação ao segundo. É um círculo vicioso, onde o comportamento do professor molda o comprometimento do aluno, num primeiro momento, para, de seguida, esse comprometimento influenciar a ação do professor perante o aluno (Skinner & Belmont, 1993). Face a essa influência bipartida, os papéis sociais assumidos, quer por professor, quer por estudante, radicam numa natureza dual em que as expetativas de um apenas podem ser captadas face ao papel assumido pelo outro, num vasto manancial de negociações entre as duas partes (Carter & Fuller, 2015; Schilling & Miyashiro, 2008).

Tendo em conta a influência que a interação na sala de aula exerce sobre o presente e o futuro – académico, social, cultural e profissional – do estudante, uma vez que as expetativas iniciais do professor podem, em determinados contextos, ditar o destino social através da chamada “profecia que se autorrealiza” (Abreu, 1979; Gomes, 1987; Pajares, 2005; Schilling, 2013), como pode a “interação seletiva”, tal como Gomes a observa, articular-se com a pedagogia compensatória, baseada numa discriminação positiva? Os estereótipos negativos em relação a alunos de franjas desfavorecidas da população levam os professores a manter uma “atitude pautada pela distância e marginalização” (1987: 46) que, no imediato, pode provocar o afastamento irreversível do aluno em relação aos trâmites escolares. Não obstante a aparência inclusiva da pedagogia de compensação, esta, segundo Pereira & Martins (1978: 48), tende a “aniquilar as diferenças”, ao invés de atenuar as desigualdades – estas sim, como já foi discutido no capítulo anterior, criadas e mantidas numa base relacional. Ao acenar com a bandeira da discriminação positiva, o sistema de ensino aproxima, de forma indelével, o aluno desfavorecido do tipo de “cliente ideal” que o professor projeta dentro das paredes da sala de aula. De facto, os mesmos autores criticam a criação deste tipo de políticas que, além de “silenciar” uma variante cultural familiar já, por si, afastada do mundo dos conhecimentos, valores e normas da Escola, também retira da instituição de ensino a responsabilidade face aos trajetos escolares negativos, assumindo o insucesso como consequência do período pré-escolar – responsabilizando o habitus adquirido no seio familiar. Foi a necessidade de pensar as desigualdades sociais reproduzidas dentro do aparelho escolar que levou à criação de medidas de compensação, sob o desígnio de discriminação positiva. Tendo já sido atingida a igualdade no acesso, faltava ainda somar-lhe a igualdade de resultados (Dubet, 2004; Seabra, 2009). A questão é que, ao mesmo tempo que se definem – em termos macro e meso – políticas emancipatórias face às desigualdades escolares, vai-se assistindo à perpetuação da segregação escolar em termos sociais, étnicos e do próprio aproveitamento. Como sustenta Van Zanten (2005), estas políticas tendem a encorajar a saída da classe média desse contexto escolar heterogéneo, não obstante a evidente preponderância desta classe na definição dos parâmetros educativos da sociedade, no geral, e no desenho organizativo de cada escola, em particular (Room & Britton, 2006).

Resumidamente, em face da já referida massificação do ensino, o professor vê-se diante de alunos de realidades social e culturalmente distintas e “sensíveis” (Dubet, 2003), que devem ser integradas na sociedade a todo o custo. Assim, a emergência da exclusão social, aliada aos fenómenos de insucesso e abandono escolar, precipitaram o desenho e a inclusão de programas escolares voltados para a discriminação positiva. Contudo, estes programas revelaram-se nefastos em termos individuais, quer para professores – dada a necessidade de uma readequação justificada pela heterogeneidade social patente na sala de aula (para a qual não foram preparados) -, quer para os alunos desprivilegiados – vendo a sua identidade vilipendiada, uma vez que transportam para o ambiente escolar uma bagagem cultural e social que é, nesse contexto, assumida como inapropriada, sendo, por esse motivo, neutralizada.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 43-45)