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Viver o presente ou perspetivar o futuro?

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 59-63)

O contexto presente dos indivíduos tem um papel fulcral na definição das disposições familiares face ao investimento escolar, no desenvolvimento das trajetórias escolares dos alunos e na possibilidade de mudar o rumo da trajetória inicial. Face a estes três campos onde o contexto influi, quer o presente, quer o futuro, do aluno estão, assim, constantemente em jogo. Deste modo, as mudanças no contexto familiar e nas trajetórias escolares são continuamente mediadas por determinismos institucionais, num processo fluído que dificulta a habituação da família e do aluno a tais desígnios estruturais (Room & Britton, 2006).

Individualmente, em momentos específicos na vida escolar e familiar, o aluno passa por “ritos de passagem” (Müller, 2008) que marcam a transição de uma etapa para outra, tal como acontece no curso de vida familiar, já abordado anteriormente (Dias, 2011). Estas passagens são mediadas por um processo de iteração, ou seja, as fases sucedem-se, porém a fase seguinte recebe sempre a contribuição das experiências que o aluno adquiriu em fases anteriores – é um processo cumulativo de continuidades ou de ruturas. Dentro destas passagens, existem as que estão ligadas ao espetro familiar e escolar, enquanto outras se articulam mais com a identidade do aluno e com o seu próprio crescimento físico e social. Dentro das primeiras, torna-se evidente o momento em que os pais fomentam a relação do filho com o aspeto económico – alertando-o para a escassez desse capital. Por exemplo, o aluno terá disposições diferentes em relação à mesada que recebe dos pais, o que irá gerar graus de comprometimento escolar divergentes, além de uma definição de (in)sucesso também ela ambígua. No âmbito escolar, uma das fases que influencia a trajetória escolar do aluno é, a título de exemplo, a passagem de um ciclo de estudos para o outro. A maneira como esta passagem ocorre será sintomática da trajetória do estudante na etapa seguinte e, por conseguinte, irá influir na continuação ou na cessação da carreira académica. No que diz respeito às segundas passagens – as biológicas e identitárias -, são alvo de ressalva, quer a passagem para a adolescência (Saldanha, Oliveira & Azevedo, 2011) - onde o autoconceito sofre mutações -, quer a influência do grupo de pares e da filiação grupal que se dá dentro e fora dos limites da Escola. Resumindo, todos estes fatores influem no contexto social e pessoal do aluno e na alocação de recursos por parte da família, visando a aposta (ou não) na

formação académica dos mais jovens. Por outras palavras, os fatores culturais e familiares, de um lado, e os fatores biológicos e pessoais, de outro, ambos atuam nas escolhas e nas disposições que as variantes culturais assumem face à instituição de ensino.

Face ao que se tem defendido, e na linha do que Lahire (1995) preconiza, as estratégias familiares são importantes para desmistificar o papel da reprodução cultural das desigualdades sociais dentro da Escola. A respeito disto, Helling (1996) sublinha o modo como os pais vão ajustando as suas expetativas ao longo do tempo, chegando a um ponto de convergência e acordo com as dos seus filhos. Não obstante esta confluência em prol de um objetivo comum, torna-se ainda mais premente entender de que modo o aluno adquire determinadas disposições cognitivas, culturais e sociais dentro da família e as aplica, de seguida, em contexto escolar. Assim, é importante ter consciência da imensidão de processos, de disposições, de competências, de recursos, de ambivalências e de dinâmicas que influenciam o investimento da família e, particularmente, do estudante no mundo educativo. Por esse motivo, será melhor falar de variantes culturais familiares, no plural. Deste modo, face à infinidade de possibilidades de arranjos estratégicos familiares e da impossibilidade de se verem reproduzidas na família b as disposições e as dinâmicas da família a, cada unidade familiar - tal como cada aluno – tende a gerir os próprios ritmos e a interagir de um modo unívoco com as demais instituições sociais e com a comunidade onde está inserido. Não há, portanto, duas trajetórias iguais. Por mais similares que sejam, quer os capitais e recursos familiares, quer as disposições e o investimento escolar, cada contexto familiar ditará, de forma singular, como o aluno incorporará as valências referidas, ligando-o umbilicalmente ao seu (in)sucesso académico. Dito de outra forma, o percurso escolar dependerá sempre de condicionantes pessoais, familiares, comunitárias, escolares e comunicativas, estando o aluno dependente do modo como absorve e pratica a multiplicidade de disposições, expetativas e investimentos no seu quotidiano familiar, social e académico.

Sabe-se que o foco unilateral no presente castra investimentos cujos dividendos apenas serão desvelados no futuro. Porém, para determinadas famílias a trajetória de vulnerabilidade é tão premente, que se torna complicado gerar atitudes e comportamentos que tenham o investimento no futuro como pano de fundo. A despeito de serem sentidas individualmente, a verdade é que as espirais, quer ascendentes, quer descendentes, podem ser analisadas sob ponto de vista inter-geracional (Room, 2000). Por um lado, as serpentes encontradas no caminho dos familiares mais velhos reproduzem-se sem dificuldade na trajetória individual do elemento mais novo na Escola, por outro, as oportunidades (escadas) a que os pais tiveram acesso podem ser herdadas pela geração seguinte. Já aqui foi sublinhado como existem inúmeros fatores que permitem a emergência de contratrajetórias escolares. Todavia, convém ter a clarividência de se perceber que uma predisposição para o foco no presente – no caso da família em espiral negativa – tende a imortalizar as serpentes, ao coibir o acesso a proteções ou amortecedores passíveis de amenizar e, nos casos mais positivos, redirecionar o aluno para uma trajetória escolar de sucesso.

Contudo, uma visão contrária é revelada por Pajares (2005), ao referir que o aluno, no contexto de sala de aula, lida melhor com objetivos observáveis a curto prazo e que a autoeficácia e o desenvolvimento das capacidades individuais são mais salientes naqueles que se focam em objetivos facilmente identificáveis. Ora, este paradoxo entre o presente e o futuro pode ser explicado, em primeiro lugar, no contexto de sala de aula. Aí, a definição de objetivos explícitos para os alunos leva-os a relacionar-se e a motivar-se de forma inequívoca com os conteúdos escolares. Em segundo lugar, em termos de habitus familiar, como demonstram Quaresma, Abrantes e Lopes (2012: 35-6), “os sonhos futuros são engolidos pelas urgências presentes”. Por outras palavras, definindo o diapasão de disposições familiares sob uma égide imediatista, à instituição escolar é subtraído o seu papel formador. Para certos alunos, a Escola serve (apenas) para a criação de laços sociais com seus semelhantes, que serão atraídos à sua atenção e para o seu espaço de sociabilidades. Mais do que se autoexcluírem do processo educativo (Dubet, 2003; Saldana, 2013), estes alunos encontram na Escola um espaço de convívio que os faz esquecer o dia-a-dia familiar e comunitário complicado, onde o futuro é um elemento sempre presente, mas que se afasta à medida que dele se aproximam. Opostamente, nas famílias onde as oportunidades são iteradas, o futuro faz-se presente de forma implícita, quer nas interações simbólicas, quer nas dinâmicas e disposições familiares. Aliás, o aluno oriundo de uma família de classe social média/alta não necessita que a instituição escolar lhe veicule objetivos escolares de curto prazo ou palpáveis para que nela encontre adequação e continuação em termos da sua cultura familiar, uma vez que o arbitrário cultural escolar é similar ao arbitrário cultural difundido no seio familiar e comunitário.

Entre as oportunidades que promovem a ativação do aluno para enveredar por uma carreira académica superior e as vulnerabilidades que não encontram proteção suficiente para coibir a exclusão escolar (presente) e social (passada, presente e futura), são várias as possibilidades para o aluno ter uma carreira de (in)sucesso na Escola. Esta, é um espaço e um campo único onde a família, o professor, o aluno, o colega deste, a comunidade e a sociedade, num plano mais alargado, jogam os seus trunfos: revelando as suas expetativas; estereotipando consoante o background cultural, social e familiar; mediando atitudes e comportamentos em prol de objetivos – mais ou menos explícitos; condicionando decisões futuras em favor de necessidades prementes (muitas se tornam virtude); alocando recursos; legitimando a cultura dominante e legitimando-se perante a cultura dominada. As relações sociais emanadas do contexto escolar são, julga-se, o artífice de uma trajetória escolar que tantas vezes fica pelo caminho, mas que, não obstante, em tantas outras chega a um grau superior, sem nada o fazer prever. Em certas ocasiões, fintando o destino e, noutras, apenas prescrevendo-o.

II – Pesquisa Empírica

Capítulo 6

Metodologia de investigação

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 59-63)