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Habitus e vulnerabilidades familiares

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 33-36)

As perceções, os investimentos e as estratégias de cada unidade familiar face à Escola variam consoante o seu habitus. Este comporta os esquemas de apreciação de estruturas práticas,

cognitivas e avaliativas que são adquiridas pelo indivíduo através da sua experiência e posição social. Bourdieu (1989) refere que o habitus funciona não só como esquema de perceção, mas também de produção das práticas. Tal como o capital cultural – a ser debatido no ponto seguinte –, também o habitus é transmitido no seio familiar como um conjunto de atitudes e valores que medeiam o determinismo sociocultural, por um lado, e as práticas individuais, por outro (Nash, 1990; Sullivan, 2002). Segundo Nash: “the habitus is structured by principles of the structure, as a code, and practices are structured by the principles of the habitus… the embodied objectification of structure” (1990: 434). Ora, esta ideia do autor revela bem o papel mediador do habitus entre a estrutura e a ação. Assim, as hipóteses que um determinado aluno tem de singrar no sistema de ensino podem - em certa medida e em determinado contexto - ser explicadas pelo seu habitus familiar, uma vez que este determina - dentro do espaço social - a ação, os valores, as estratégias e os gostos culturais dos membros de uma determinada classe social.

Por seu turno, o espaço social subdivide-se em campos, onde os indivíduos produzem oportunidades e são constrangidos por vulnerabilidades. O campo pode variar do económico ao artístico, passando pelo escolar. Quando o habitus do indivíduo é coerente com o campo onde interage, maiores são as vantagens e os privilégios sociais adquiridos por este (Mendes & Seixas, 2003; Lee & Bowen, 2006). Interessa, de forma transversal a qualquer contexto, considerar as dificuldades de interceção entre a cultura familiar ou individual e a cultura da sociedade alargada – transmitida pela Escola. Ao sublinhar-se que o habitus funciona como esquema de produção de agência, o mesmo é referir que as famílias utilizam, de forma racional, os seus recursos, tendo em consideração as possibilidades de êxito e de fracasso de determinada aposta, nomeadamente no campo da educação. Nesse ambiente – como nos outros campos – existem capitais específicos prontos a serem mobilizados e que só nesse contexto trazem benefícios a quem deles faz usufruto. Desta forma, os capitais existentes num determinado campo vão permitir à família mediar a sua ação - relação “custo-benefício” (Boudon, 1973 in Seabra, 2009) -, ciente das vicissitudes que podem tornar a sua ação benéfica ou nefasta face aos objetivos a que se propôs.

Quando a família descapitalizada decide apostar na formação académica do seu filho, este incorre num penoso processo de “reconfiguração de habitus” (Quaresma, Abrantes & Lopes, 2012). Devido às dificuldades sentidas no contexto oposto àquele veiculado ao longo da socialização primária, estes alunos edificam e moldam frequentemente a sua identidade e dignidade através de um clima de resistência, de confrontação e, por vezes, de violência. Tal como defende Basil Bernstein (1964), esta dificuldade diferenciada de adaptação ao sistema de ensino encontra-se impregnada no acesso – também ele diferenciado – a dois códigos linguísticos distintos: o elaborado e o restrito. Por um lado, o código elaborado está presente no ambiente familiar que mais se aproxima da cultura dominante escolar, tendo uma orientação mais pessoal e menos social. É um código que precede uma linguagem cuidada por parte do locutor, que vê a experiência do seu interlocutor como diferenciada face à sua. Por

seu turno, o código restrito, tendo um cariz mais social e menos focado na capacidade comunicativa do indivíduo, está dependente da elaboração de “extraverbal channels” (1964: 63), que estão acessíveis a todos os membros da sociedade, ao contrário do código elaborado, possuído apenas por uma pequena parte dos indivíduos.

Outros autores - apesar de não descurarem a importância da distinção entre os dois códigos na ramificação do (in)sucesso escolar em termos linguísticos - preferem ressalvar a pertinência das orientações egocêntricas e sociocêntricas que cada código parece evidenciar nas opções da família e do aluno. Assim, Abrantes e Amândio (2014) falam na diferença entre o “projeto autocentrado”, dos alunos orientados para um percurso que culmina em posições de chefia, bem remuneradas e com elevado prestígio, e o “projeto sociocentrado”, relacionado com os estudantes de ciências sociais e de letras, que se perfilam para uma carreira social e cultural de preocupações em termos comunitários. Pereira e Martins (1978), por sua vez, articulam o código elaborado às sequências verbais egocêntricas, onde há um apelo à experiência singular do indivíduo e o código restrito a representações baseadas no consenso, na comunidade. Segundo Bernstein (1961), o código restrito, apesar de reforçar a coesão social e o sentimento de pertença ao grupo por parte da criança, coíbe-a de criar novos laços e dinâmicas discursivas capazes de a adaptar a contextos onde o caráter elaborado e verbal é fundamental, nomeadamente no próprio estabelecimento de ensino. Face ao exposto, caso o aluno de origens humildes queira ter uma carreira académica mais longa, que lhe abra as portas a um mercado laboral prestigiante e bem remunerado, terá de moldar os trâmites culturais restritivos, que não preenchem os requisitos que vigoram numa Escola movida a competição. Existe aquilo a que Perrenoud chama de “go-between” (Montadon & Perrenoud, 2001: 52), onde se manifesta um “conflito cultural duplo” (Lahire, 1995: 171). O estudante, por um lado, leva para a escola disposições e pressupostos comportamentais e cognitivos familiares ambíguos, que dificultam a compreensão dos reais benefícios da cultura escolar e, por outro, mesmo confrontando e mostrando resistência face às diretrizes da instituição escolar, incorpora esquemas culturais no universo escolar que traz de volta para o contexto familiar – a tal (des)fragmentação cultural e identitária. O aluno - num contexto semelhante a este, onde a vulnerabilidade da variante cultural familiar perante a cultura escolar é evidente -, no seu quotidiano escolar e familiar, depara-se com uma ambiguidade clara de valores que o fazem interrogar-se, quer acerca do papel familiar (primeiro conflito), quer sobre os benefícios que a Escola diz possuir em relação àqueles que no ensino decidem investir (segundo conflito). No final do dia, sozinho, no seu mundo, o estudante reflete sobre o conflito verificado entre duas instituições sociais interdependentes onde, afinal, tem criado, moldado e definido a sua identidade, sofrendo uma “socialização silenciosa” (Abrantes & Amândio, 2014). Sendo a Escola uma “cristalização” da cultura dominante da sociedade, tal como enuncia Walgrave (2000), as experiências escolares não se formam no vazio, mas sim por meio da convergência entre ambas as realidades – a dominante e a dominada.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 33-36)